De tanto escrever e repetir a expressão “O Meu Cristo
Partido”, o possessivo “meu” tinha lançado raízes no mais recôndito do meu ser,
criando em mim, consciente e inconscientemente, um sentimento inalienável e um
direito incontroverso de absoluta posse sobre o Meu Cristo Partido.
Não tinha sido eu a encontrá-lo? Não o tinha comprado com o
meu dinheiro? (…)
Logo o Cristo era meu. Só e exclusivamente meu.
E como o tesouro mais valioso da minha existência o
conservava eu no meu escritório, sempre fechado à chave.
Ramón Cué
in, O Meu Cristo Partido de Casa em Casa
Para o mais
desprevenido, parece que o título do livro O
Meu Cristo Partido de Casa em Casa, gera alguma contradição com o pequeno
excerto, onde o autor ao reclamar para si o direito
incontroverso de absoluta posse da
escultura mutilada de Cristo, não deixaria margem de um qualquer movimento para
que a pequena escultura, pudesse andar
de casa em casa a dar-se a todos os que o quisessem receber.
Tudo está correcto,
porém.
Ramón Cué ao encontrar
aquele Cristo partido, sem um braço e uma perna, numa “feira da ladra” de Sevilha, avaramente
o descreve com um possessivo “meu”, a
ponto de o fechar à chave e com o desejo confessado de o não emprestar a quem
quer que fosse.
Tem este livro a
particularidade do narrador entrar em diálogo com Cristo, numa linguagem entre
a mundana deste e a missionária do Mestre.
Sobre este assunto e num
livro anterior, o autor, num diálogo travado com o vendedor da feira de
Sevilha, soube deste que a escultura teria vindo das montanhas de Aracena e as
mutilações se deviam a profanações da guerra, mas que as poderia remediar junto
de um restaurador seu vizinho, o que mereceu, de imediato, uma recusa
pertinente de Cristo e ser assim colocado no seu escritório.
Estupefacto, perante
aquela atitude, tenta retorquir-lhe: Mas, vê-lo
assim é para mim uma dor contínua, tendo obtido com resposta,
entre outras, as seguintes inquietações evangélicas de Cristo: Não me restabeleça (…) Vendo-me assim, quero servir de chave para a dor humana. (…)
Divinamente, é posto o dedo na ferida.
Cristo é um Mestre.
Efectivamente, de que
serve uma devoção que tranquiliza as consciências, tendo um Cristo bonito, se
nos esquecemos dos que sofrem e dos que tendo braços, não os têm para
trabalhar, porque não arranjam emprego?
De que serve, pois,
beijar um Cristo bonito – obra de arte – se é ofendida, diariamente, a obra de arte que é o homem, filho de Deus e
irmão de Cristo, que se fez um igual a nós, excepto no pecado?
O comprador daquela
escultura mutilada acabou por compreender tudo isto.
Ele., que se dizia
dono: Não tinha sido ele a encontrá-lo? Não o tinha comprado com o seu dinheiro?, acabaria, depois de muitas
peripécias – que tornam o livro de leitura obrigatória – por abandonar o
sentido de posse e dar o seu “Cristo Partido” de oferenda aos homens, de casa em casa, formando uma vitrina
onde estavam expostas lembranças de lágrimas,
beijos, súplicas, carícias, abraços, queixas, suspiros (…)
E é, revendo-se, na sua
atitude anterior que o autor nos diz: À
beira d’Ele, já não me sinto só.
N’Ele estou unido a todos os irmãos quem como eu, o amaram
e beijaram.
É esta, finalmente, a
mensagem de amor humano que o autor nos quer dar.
Cristo não é exclusivo
de ninguém.
Veio ao mundo para ser
de todos os homens e não para ser fechado à chave.
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