Quando o
mercado se fecha e todos voltam para casa, à luz do crepúsculo, eu me sento
junto do caminho para ver-te passar em tua barca, cruzando a água escura com os
raios do poente em sua vela. Olho a tua figura silenciosa em pé junto ao timão,
e, de repente, percebo que os teus olhos se fixam em mim. Paro de cantar e te
chamo, pedindo que me leves para a outra margem.
Rabindranath Tagore
in, Travessia.
O grande místico
indiano com a arte poética de que encheu a vida encheu de amor todos os seus caminhos. Por amor deles traçou para memória da sua vida
exemplar nas poucas palavras acima transcritas, um belo quadro do quotidiano, que
no caso se passou na da Índia, sua Pátria, como podia passar-se num outro
qualquer lugar do mundo.
Acabara-se o dia de
trabalho de que era sinal ter-se fechado o mercado.
Na ida para casa,
fechado o mercado, alguém ficou para trás, extasiado, olhando o rio à luz
crepuscular, ansioso por ver o espectáculo de uma barca que passava levando
estampados na vela os raios já frouxos do sol poente.
Fixa os olhos,
arroubados, na figura do barqueiro em pé
junto ao timão, mas dá-se conta que os olhos dele já se haviam fixado nele,
que na sua postura estática olhava o homem da barca, admirando o silêncio e o
modo como manobrava a pequena embarcação sobre as águas do rio.
É aqui que começa a
desenrolar-se a cena fraterna que bem merece um comentário.
A amizade é o amor sem asas, no dizer eloquente de
Lord Byron, um conceito feliz que cabe inteiro nesta cena a partir do momento
em que os olhos do barqueiro se fixaram no outro postado na margem do rio, como
se a partir daquele momento, entre os dois se tivesse estabelecido um diálogo
de uma amizade que sem nada dizer, ficara selada, pelos olhares que se haviam
trocado.
Parando de cantar, o
homem que ia para casa pediu para ser levado para a outra margem do rio, o que,
embora não esteja dito, aconteceu.
Passar para a outra margem,
eis o grande momento que nos pode acontecer
Não se trata, somente,
de vencer um obstáculo físico, tal como o que é descrito pela cena
protagonizada pelo barqueiro e por aquele que o olhava.
Trata-se de passar para
a outra margem da vida, ao encontro de momentos sadios geradores de felicidade,
vencendo as tempestades humanas que sempre acontecem.
O barqueiro de Tagore é
um exemplo do que devia ser a amizade humana que não pode passar ao largo sem
olhar para aquele que num dado momento lhe pareça necessitar de ajuda.
Ao fixar o olhar no
homem da margem, o barqueiro mostrou-se desde logo disponível para o
transportar para a outra margem, encurtando-lhe o caminho de regresso a casa.
Mostrou à evidência
como todos devíamos ser barqueiros em cima do grande rio da vida, na
expectativa de haver sempre alguém na margem à espera de receber um olhar
quente de fraternidade humana que dê coragem para pedir ajuda e ser levado na barca que o possa levar para
local mais seguro, onde se possam ouvir as canções de amor que se haviam deixado
de ouvir na outra margem, onde apenas se ouviam as canções dos desesperados.
É esta a lição que nos
dá o belo trecho de Tagore.
Pode até, a água do rio
em que vamos ser escura como ele diz,
mas o que é importante é que os raios do
poente não deixem nunca de se projectar na vela que devia ser a alma humana capaz de atitudes de amizade pelo
outro, no cumprimento evangélico de uma directiva que faz de cada homem um
amigo de Deus.
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