A BENÇÃO, SENHOR PAI!
No livro: Quando os Lobos Uivam – que guardo na
minha biblioteca como uma preciosidade, acrescida por se tratar de uma edição
de 1959 feita no Brasil por interdição da mesma ser feita em Portugal, por
motivos bem conhecidos – Aquilino Ribeiro, coloca um dos heróis do livro, Manuel Louvadeus, dez anos
depois, à porta da sua casa no torrão natal, chegado à hora da ceia, das
longínquas paragens de Mato Grosso. Estava ali a arranjar coragem para bater à
porta, de ouvido à escuta, a dar-se conta do tinir dos garfos e a ouvir a voz
de Filomena no seu sotaque ralhado: Miga bem, Jaime, que só tens caldo!
Depois de alguma
espera, decidiu-se e martelou de rijo e afoito na velha aldraba puída de tanto
se lhe pegar.
Logo que sentiu correr
o fecho, Manuel Louvadeus deu de caras com o quadro da sua família, de malgas
em punho à roda do lume, onde o cepo ardia ao fundo na pedra lar e a sua
lumalha verde a descompor a claridade da candeia que voltejava ao centro
na ponta do nagalho.
O reencontro com a
família foi emocionante, mas o momento maior e mais espiritualmente vivido com
toda a sua carga de afecto, misto de respeito e gratidão, foi quando o Jaime,
após ter posto a tigela na pilheira e quando esperava que o pai o
olhasse ter reparado que já este lhe erguia as mãos, carinhosamente.
Foi, então, que o filho
ante aquele gesto antigo e bem conhecido e usual no tempo se curvou e disse com
toda a ternura de que foi capaz:
-A benção, senhor
pai!
Este cerimonial que era
um velho e riquíssimo hábito, especialmente na província portuguesa, diluiu-se
quase de todo, no nosso tempo. Perdeu-se, por isso, um modo importante da
tradicional religião familiar que ele escondia, na prática ancestral que ia
beber no gesto bíblico que tinha a sua eflorescência mais remota em Isaac e no
seu filho Jacob.
É de realçar o facto de
Aquilino Ribeiro ter setenta anos quando escreveu a obra poderosa que foi um
grito contra o poder de então, e não se ter esquecido de apontar o pedido da
benção do filho ao pai, mesmo quando, como ele descreve, o pai emigrado não
dava notícias à família ia para seis anos.
Mas era o pai que
estava ali, vindo de longas paragens...
O pai tinha voltado.
O grande escritor,
oriundo de uma família da Beira Alta, fez questão de deixar registado para a
posteridade o gesto do pedido da benção, que tinha tanto de belo como de
profundamente encantador, por ir beber no mais fundo das raízes da cultura
milenar do povo português.
Era, para além do mais,
um acto cheio de simbolismo.
Encerrava
em si mesmo, uma religiosidade própria de um povo bom e humilde que
transportava para aquele gesto toda a carga afectiva e respeitosa devida entre
duas gerações: a do pai, plenamente responsável do seu papel de defesa de
valores e consciente do dever da honra e da moral das suas responsabilidades
sociais, enquanto a do filho, conhecedora do que representava para o
desenvolvimento humano e equilíbrio
social o papel do progenitor, lhe prestava sem rebuço a homenagem devida
naquele pedido singularmente belo.
Havia, então, no tempo,
um conceito correcto do pai representar na família – a par da Mãe – algo de
Deus, pela imensidade do amor que dava aos filhos e, até, de anjo, pela
incomensurável solicitude da sua disponibilidade sempre disposta a defender o
lar contra todos os perigos.
Considerado o maior
protector do lar, o pai exercia o poder da dar a benção aos filhos, vivendo já
o espírito da igreja doméstica, um conceito eclesial que só viria a
implantar-se na sociedade com o advento do Concílio Vaticano II.
Infelizmente, já não
encontrou de pé, em toda a sua grandeza o gesto antigo
e
O tempo encarregara-se
de alterar a grandeza do quadro, sem no entanto ter alterado para melhor o
relacionamento entre pais e filhos.
E
a sociedade nada ganhou com a perda do gesto antigo e de tão grande significado
de amor e gratidão:
-A benção, senhor pai!
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