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domingo, 9 de junho de 2013

A bênção, senhor pai!

A BENÇÃO, SENHOR PAI!
No livro: Quando os Lobos Uivam – que guardo na minha biblioteca como uma preciosidade, acrescida por se tratar de uma edição de 1959 feita no Brasil por interdição da mesma ser feita em Portugal, por motivos bem conhecidos – Aquilino Ribeiro, coloca um dos  heróis do livro, Manuel Louvadeus, dez anos depois, à porta da sua casa no torrão natal, chegado à hora da ceia, das longínquas paragens de Mato Grosso. Estava ali a arranjar coragem para bater à porta, de ouvido à escuta, a dar-se conta do tinir dos garfos e a ouvir a voz de Filomena no seu sotaque ralhado: Miga bem, Jaime, que só tens caldo!
Depois de alguma espera, decidiu-se e martelou de rijo e afoito na velha aldraba puída de tanto se lhe pegar.
Logo que sentiu correr o fecho, Manuel Louvadeus deu de caras com o quadro da sua família, de malgas em punho à roda do lume, onde o cepo ardia ao fundo na pedra lar e a sua lumalha verde a descompor a claridade da candeia que voltejava ao centro na ponta do nagalho.
O reencontro com a família foi emocionante, mas o momento maior e mais espiritualmente vivido com toda a sua carga de afecto, misto de respeito e gratidão, foi quando o Jaime, após ter posto a tigela na pilheira e quando esperava que o pai o olhasse ter reparado que já este lhe erguia as mãos, carinhosamente.
Foi, então, que o filho ante aquele gesto antigo e bem conhecido e usual no tempo se curvou e disse com toda a ternura de que foi capaz:
-A benção, senhor pai!
Este cerimonial que era um velho e riquíssimo hábito, especialmente na província portuguesa, diluiu-se quase de todo, no nosso tempo. Perdeu-se, por isso, um modo importante da tradicional religião familiar que ele escondia, na prática ancestral que ia beber no gesto bíblico que tinha a sua eflorescência mais remota em Isaac e no seu filho Jacob.
É de realçar o facto de Aquilino Ribeiro ter setenta anos quando escreveu a obra poderosa que foi um grito contra o poder de então, e não se ter esquecido de apontar o pedido da benção do filho ao pai, mesmo quando, como ele descreve, o pai emigrado não dava notícias à família ia para seis anos.
Mas era o pai que estava ali, vindo de longas paragens...
O pai tinha voltado.
O grande escritor, oriundo de uma família da Beira Alta, fez questão de deixar registado para a posteridade o gesto do pedido da benção, que tinha tanto de belo como de profundamente encantador, por ir beber no mais fundo das raízes da cultura milenar do povo português.
Era, para além do mais, um acto cheio de simbolismo.
    Encerrava em si mesmo, uma religiosidade própria de um povo bom e humilde que transportava para aquele gesto toda a carga afectiva e respeitosa devida entre duas gerações: a do pai, plenamente responsável do seu papel de defesa de valores e consciente do dever da honra e da moral das suas responsabilidades sociais, enquanto a do filho, conhecedora do que representava para o desenvolvimento humano e  equilíbrio social o papel do progenitor, lhe prestava sem rebuço a homenagem devida naquele pedido singularmente belo.
Havia, então, no tempo, um conceito correcto do pai representar na família – a par da Mãe – algo de Deus, pela imensidade do amor que dava aos filhos e, até, de anjo, pela incomensurável solicitude da sua disponibilidade sempre disposta a defender o lar contra todos os perigos.
Considerado o maior protector do lar, o pai exercia o poder da dar a benção aos filhos, vivendo já o espírito da igreja doméstica, um conceito eclesial que só viria a implantar-se na sociedade com o advento do Concílio Vaticano II.
Infelizmente, já não encontrou de pé, em toda a sua grandeza o gesto antigo
e
O tempo encarregara-se de alterar a grandeza do quadro, sem no entanto ter alterado para melhor o relacionamento entre pais e filhos.
E a sociedade nada ganhou com a perda do gesto antigo e de tão grande significado de amor e gratidão:
-A benção, senhor pai!

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