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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

"O Leilão da Casa da Mariquinhas"

O FADO
Pintura de José Malhoa - 1910
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in, "Alma de Marialvas" - Órgão dos Marialvas de S. Cristóvão - Lisboa, Julho de 1957
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Um feliz acaso levou-me, hoje, até à leitura deste velho número do da "Alma dos Marialvas", que constituiu - conforme informação da "Wikipédia" - a Enciclopédia Livre - um número único, publicado em Julho de 1957, eventualmente comemorativo do 18º aniversário do grupo "Marialvas de S. Cristovão", constando, na última página do mesmo, o programa referente ao dia assinalado. Vários são os temas focados ao longo do jornal: o percurso histórico dos "Marialvas" como pequena coletividade; um conto histórico decorrido durante a I Guerra Mundial, protagonizado pelos marinheiros portugueses do caça-minas Augusto Castilho; o auxílio prestado aos pobres pelos "Marialvas", orgulhosos de "vestir os nus" (lema do agrupamento); poesia variada, e a tradição das touradas. E vários são os seus colaboradores: Joaquim Gonçalves Piçarra, Francisco M. de Almeida, Afonso dos Santos, António José da Cunha, Luís José Simões, Maria Amélia Carvalho de Almeida, entre outros. 

De folha em folha, deliciado com a leitura tão antiga, os meus olhos caíram e ficaram presos ao poema "O Leilão da Casa da Mariquinhas" que Alfredo Marceneiro imortalizou com a sua voz de grande fadista desta "Lisboa alfacinha" ao cantar com a sua voz característica esta letra de João Linhares Barbosa - o maior poeta do fado que Lisboa conheceu - e foi num misto de saudade, assombro e de uma grande ternura por aquelas duas personagens que Deus lá tem que li e reli esta letra famosa que encantou tantos amantes do fado e assim continua pela vida fora.

No tempo, estava longe de pensar o autor da letra e a voz que a tornou conhecida, que o FADO português viria a alcançar o honroso título "Património Oral e Imaterial da Humanidade" outorgado pela Unesco em Novembro de 2011, retirando a esta forma de cantar que vai buscar a sua raiz à marinhagem as naus das descobertas, dando aso a que só em 1840, o fado como canção popular tivesse passado a ser conhecido "nas ruas de Lisboa"  tendo sobressaído um nome: o "Fado do Marinheiro".

Segundo a Wikipédia é este  fado que vai se tornar o modelo de todos os outros géneros de fado que mais tarde surgiriam como o fado corrido que surgiu a seguir e depois deste o fado da cotovia. E com o fado surgiram os fadistas, com os seus modos característicos de se vestirem, as suas atitudes não convencionais, desafiadoras por vezes, que se viam em frequentes contendas com grupos rivais. Um fadista, ou faia, de 1840 seria reconhecido pela sua maneira de trajar.

"Se, por um instante"...



domingo, 28 de outubro de 2018

Um poema em Cruz de Fagundes Varella


Este poema de Fagundes Varella - um filho do Rio de Janeiro - que segundo depoimentos de contemporâneos seus da Faculdade de Direito de S. Paulo costumava andar desajeitado e com as vestes em desalinho, sempre com um esgar de dor estampado no rosto, sinais de uma vida desatinada marcada pela bebida em excesso.

Diz-se que no tempo em que perdeu a primeira esposa e o filho, encontrou na religião o consolo da sua alma, pertencendo a esse tempo um fase de poemas de carácter místico-religioso.
É dessa fase este poema em Cruz.

Morreu jovem, tendo deixado uma obra centrada no Romanismo que então se vivia nas Letras brasileiras, onde pontificou o lirismo amoroso, a religiosidade, e a exaltação da Natureza, sem contudo, deixar de aflorar o sentimento poético pelo aspecto social sobre a abolição da escravatura.


Fagundes Varella (São João Marcos, 17 de agosto de 1841 — Niterói, 18 de fevereiro de 1875) foi um poeta romantista brasileiro da 2ª Geração, patrono na Academia Brasileira de Letras
Filho do magistrado Emiliano Fagundes Varella e de Emília de Andrade, ambos de tradicionais famílias fluminenses. Era bisneto do barão de Rio Claro.

Poeta romântico e boémio inveterado, Fagundes Varella foi um dos maiores expoentes da poesia brasileira, em seu tempo. Tendo ingressado no curso de Direito (e frequentado a Faculdade de Direito de São Paulo e a Faculdade de Direito do Recife), abandonou o curso no quarto ano. Foi a transição entre a segunda e a terceira geração romântica.
Diria, reafirmando sua vocação exclusiva para a arte, no poema "Mimosa", na boca duma personagem: "Não sirvo para doutor"...

Casando-se muito novo (aos vinte e um anos) com Alice Guilhermina Luande, filha de dono de um circo, teve um filho que veio a morrer aos três meses. Este fato inspirou-lhe o poema "Cântico do Calvário", expressão máxima de seus versos, tão jovem ainda. Sobre estes versos, analisou Manuel Bandeira:
"...uma das mais belas e sentidas nênias da poesia em língua portuguesa. Nela, pela força do sentimento sincero, o Poeta atingiu aos vinte anos uma altura que, não igualada depois, permaneceu como um cimo isolado em toda a sua poesia."
Mudou-se para Paris aos 20 anos e voltou aos 27. Casou-se novamente com uma prima - Maria Belisária de Brito Lambert, sendo novamente pai de duas meninas e um menino, também falecido prematuramente.

Embriagando-se e escrevendo, faleceu ainda jovem, vivendo à custa do pai, passando boa parte do tempo no campo, seu ambiente predileto.

Fagundes Varella morreu com 34 anos de idade.

Fonte: Wikpédia, a Enciclopédia livre

Ora, valha-nos... nem sei quem...

https://www.rtp.pt de 23 de Outubro de 2018
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O Parlamento possui para apoio económico de uma "Unidade Técnica de Apoio Orçamental" UTAO, cuja finalidade para além de apoio à leitura dos Orçamentos de Estado, ajuda à compreensão e eventuais armadilhas e outra minudências de que são prósperos aqueles documentos essenciais à nossa vida colectiva.

Como se pode ver a UTAO não se coíbe de afirmar que o Orçamento de Estado para 2019 "esconde um défice maior", razão porque no seus mapas o défice corresponde a 0,5% e não 0,2% como o Governo defende.

Que não senhor. Não é assim... e o Governo é crítico desta opinião.

Eis, porque, mudaram-se os tempos, mudaram-se as vontades - parafraseando o Poeta - e aquilo a que assistimos é que no Governo anterior quando a UTAO o criticava era uma entidade competente e agora, na crítica que faz ao actual Governo é ignorante.

Ora, valha-nos... nem sei quem...
Deus não... que Deus tem mais que fazer que aturar estes desconchavos!

"O que mais me impressiona"...



"Honra e Justiça a Cavaco Silva"


Honra e Justiça a Cavaco Silva

Tanto quanto julgo saber, disse um dia Aníbal Cavaco Silva que, “Não somos donos da terra, mas apenas os seus hóspedes transitórios”.

Frase sábia e bem demonstrativa da maturidade do homem que mais tempo e com maior sucesso governou na história da democracia portuguesa. Goste-se mais ou menos disso, esta é a realidade. A realidade pessoal e política de um homem que ao contrário dos de hoje marcou a sua época. Daqui a 50 anos todos continuarão a saber quem foi Cavaco Silva. Por sua vez muitos dos seus detratores, julgo nem virem a constar das notas de rodapé da história do nosso país. Posto isto, sem querer desvirtuar o sentido da citada afirmação do ex. Primeiro Ministro e Presidente da República não resisto ainda assim a fazer-lhe uma adenda.

Cavaco Silva não foi dono da terra, foi também ele um hóspede transitório da legitimação por sufrágio, mas uma coisa é certa, o que nunca foi nem é transitório é o impacto que tudo quanto diga e faça tem nos restantes atores políticos. Cavaco já não manda, mas como sempre ainda os mói. O recalcamento de muitos, por verem nele, o que gostavam de ser ou ter sido e não são, continua como sempre a fazê-los espumar de raiva. Mas terão de espumar até que sejam atingidos por um qualquer esgotamento nervoso. Começa a ser, portanto, a meu ver, ridícula a forma como todos “malham” em Cavaco sempre que este diz alguma coisa. Escreveu um primeiro livro de memórias, o que a maior parte dos políticos importantes fazem, caiu o Carmo e a Trindade com José Sócrates, entre outros, em horário nobre, a lançar tiros de pólvora seca por todo e para todo o lado.

Algum comentário que faça, surgem logo os arautos da verdade ou os papagaios amestrados dizendo que com eles demonstra falta de sentido de Estado. Pergunto: Qual é político que hoje o demonstra? Estimado Carlos César, diga-me, é o Senhor? Se comenta algo sobre a postura da atual presidência é uma deselegância para com o atual titular do cargo e os que já o foram. Pergunto de novo: Os outros não o faziam? Mais: E porque não o devem poder fazer? E não satisfeito ainda pergunto: Estou enganado ou Marcelo Rebelo de Sousa passou anos e anos, semanalmente a fazê-lo e, agora, parece não lhe agradar que outros o façam? Podem dizer. “Bem, mas o Marcelo aí não era Presidente”. Pois não! E Cavaco também já não é! Chega desta palhaçada.

Cavaco Silva como qualquer outro político fez coisas boas e menos boas, tomou decisões mais e menos acertadas, os seus últimos anos foram de facto cinzentos, mas ainda assim um cinzento verdadeiro ao contrário do falso cor de rosa com que muitos hoje pintam a cara e com ela aparecem em público. Aníbal Cavaco Silva foi e continua a ser o político mais influente e com maior poder formal e informal no país. Em quarenta e poucos anos de democracia, destes, governou em vinte. Merece, portanto, respeito. Foi o único homem que enquanto primeiro ministro fez obra e lançou o país para a frente. E não me venham com o argumento de que “ah, obrigado, com o dinheiro que nessa altura vinha lá de fora também eu.” Tretas! Depois disso veio na mesma e o descalabro está à vista.

Transcrição “ipsis-verbis” e com a devida vénia de um texto de Rodrigo Alves Taxa, in “Jornal i” de 26 de Outubro de 2018
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"20 valores com tendência para subir".

Era assim que se manifestava um saudoso professor de Português que eu tive, e que se manifestava sempre deste modo quando uma redacção lhe agradava.
Sendo, apenas, um modo de expressar a satisfação que tal leitura lhe dera como docente e leitor - sabia a turma - que o professor fazia desse hábito um incentivo ao grupo que lhe estava confiado, e que o aluno que lhe merecia aquele louvor iria ter boa nota.

Faço o mesmo a este texto de Rodrigo Alves Taxa, porquanto, subscrevo na íntegra tudo quanto diz, lamentando não ser eu o autor de tão asisadas palavras, na certeza que tenho que os maldizentes de Cavaco Silva - um homem que se fez a pulso - não sendo filho de gente rica e por isso não ter nascido "num berço de oiro", quando se escrever a História dos primeiros decénios da Democracia Portuguesa, o seu nome passadas as paixões políticas do tempo que passa, não vai ser esquecido.

"Honra e Justiça a Cavaco Silva".

"Cisnes Brancos "


Cisnes Brancos

V

Cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?
O sol não beija mais os flancos
Da montanha onde morre a tarde.
O cisnes brancos, dolorida
Minh’alma sente dores novas.
Cheguei à terra prometida:
É um deserto cheio de covas.
Voai para outras risonhas plagas,
Cisnes brancos! Sede felizes...
Deixai-me só com as minhas chagas,
E só com as minhas cicatrizes.
Venham as aves agoireiras,
De risada que esfria os ossos...
Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.
Queimando a carne como brasas,
Venham as tentações daninhas,
Que eu lhes porei, bem sob as asas,
A alma cheia de ladainhas.
O cisnes brancos, cisnes brancos,
Doce afago de alva plumagem!
Minh’alma morre aos solavancos
Nesta medonha carruagem...


(Alphonsus de Gumarães - 18780-1921)
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Quase toda a poesia deste literato brasileiro é de pendor místico e na qual - como se fosse um fadário - o poeta assume perante a religiosidade de que ele revestiu os seus textos algo do sentido de aceitação do modo como ele sentiu pulsar a vida que Deis lhe deu dentro da sua alma propensa ao sentimento da dor de não ver o mundo dentro dos parâmetros que a sua sensibilidade exigia, marcada pelo simbolismo.brasileiro.

Neste poema a que o poeta deu o nome de "Cisnes Brancos" ele é, marcadamente alegórico à brancura da sua alma, que quanto a ele havia perdido pelas vicissitudes da vida que se lhe deparou bem longe dos sonhos que acalentara e por isso, é com algum desalento que ele escreve:

Cisnes brancos, cisnes brancos,
Porque viestes, se era tão tarde?

Faz esta pergunta inquietante para logo a seguir e numa reflexão dolorida acentuar, ao dizer que o sol havia deixado de beijar "os flancos / da montanha", onde morria "a tarde", continuando assim nesta alegoria em que o místico da sua chegada "à terra prometida", que bem longe de ser a terra por analogia bíblica àquela onde "jorrava o leite e o mel", Alphonsus de Guimarães, via "covas" o que o leva a pedir - com o desalento e, possivelmente, com mágoa - que os "Cisnes Brancos" voassem  dali e fossem para longe apontando-lhes um desejo: "Sede felizes"...

E é nesta linha - depois de mandar embora os "Cisnes Brancos" - com cuja alvura, quanto à cor ele desejou viver, sentindo que já não era possível pela dureza das cores da vida que veio a encontrar, que num desabafo, como quem se atropela a si mesmo num desafio à dor, que ele pede: "Venham as aves agoirentas"

Minh’alma, cheia de caveiras,
Está branca de padre-nossos.

O que faz pensar é isto: o poeta, naquele momento de desalento, embora afirme, quase como morta a sua alma nas caveiras de que nos fala, assume a linha mística que nunca o abandonou, porque apesar da tristeza de ter deixado de ver na sua alma a brancura que desejou, diz que ela "Está branca de padre-nossos". 

E estava, certamente!

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Um pedaço da História do último quartel do século XIX


No dia 7 de Março de 1880, tendo como pano de fundo o Ultimatum inglês de 11 de Janeiro de 1890, Antero de Quental foi convidado e aceitou a presidência da LIGA PATRIÓTICA DO NORTE e superintender na feitura dos seus Estatutos, começando, no Preâmbulo do discurso que proferiu, por dizer: 

Meus senhores, creio firmemente que a fundação da «Liga Patriótica do Norte» será a primeira pedra do edifício da restauração das forças nacionais. Não será esta porém uma obra de momentâneo entusiasmo, mas de aturada paciência, de patriótica e esclarecida perseverança.

Já em pleno acto discursivo, num dado momento, disse o seguinte:

A vida actual, para ser autónoma e independente, tem de ser remodelada. A nação tem de emendar erros profundos e numerosos, acumulados durante muitos anos de imprevidência, de egoísmo, de maus governos e de corrompidos costumes públicos. Esta situação é tanto mais grave, quanto gradualmente se foi estabelecendo entre a nação e os governantes um verdadeiro divórcio, divórcio à muito latente e que a crise actual veio apenas patentear em toda a sua cruel realidade. Os governos, em Portugal, deixaram há muito de representar genuinamente os interesses e o sentir da nação. Nem por isso, porém, a acção da «Liga» será revolucionaria. Pelo contrario, a «Liga» considera um tal divorcio como uma calamidade, e a sua acção tenderá a restabelecer a natural harmonia entre o pensamento nacional e o seu órgão, o Estado. Fora das competições da falsa política, que nos tem dividido e enfraquecido, mas por isso mesmo no terreno da verdadeira política, que é a dos grandes interesses nacionais, fora dos partidos, porque superior a eles, a «Liga» fará ouvir aos poderes públicos a voz da nação: e essa voz persistente, firme e cheia de autoridade obrigá-los-á, por muito inveterado que seja o seu endurecimento, a converterem-se á sua verdadeira missão, que é a dos representantes e zeladores dos interesses da nação, e não só dos interesses materiais, mas dos mais elevados, os interesses morares, e entre estes proeminentemente o da dignidade nacional. A moralização dos poderes públicos, tal é a primeira condição do renascimento e integridade da vida social portuguesa.

A Liga não vingou, como se sabe.

Li, há dias, sobre este assunto um texto de Amadeu Carvalho Homem - que se reproduz com a devida vénia -  e que no seu último parágrafo diz assim: 

Eça de Queirós designou a Liga como o “derradeiro Fantasma” de Antero. E, com efeito, Antero iria tropeçar em mais uma desilusão, em mais uma razão para o motivo depressivo que o haveria de matar. Mas ninguém matou a Liga; ela feneceu porque o Portugal do tempo lhe virou ostensivamente as costas. É provável que o mesmo viesse a acontecer, se tal fosse o caso, no nosso tempo. Portugal é assim, é isto! E novamente daremos a palavra a Eça para que ele nos descreva não tanto a verdade objectiva da morte da Liga, mas a representação simbólica do seu fim: «Na sessão em que se leram os consideráveis Estatutos só havia, na vastidão dos bancos, quinze membros que bocejavam. E numa outra final, como ventava e chovia, só apareceram dois membros da Liga, o presidente que era Antero de Quental, e o secretário que era o Conde de Resende. Ambos se olharam pensativamente, deram duas voltas à chave da casa para sempre inútil, e vieram, sob o vento e sob a chuva, acabar a sua noite em Santo Ovídio», lugar onde vivia o Conde. E numa carta escrita em Vila do Conde, dirigida a Henrique das Neves, com data de 22 de Julho de 1890, é o próprio Antero de Quental a apresentar assim a certidão de óbito da Liga Patriótica do Norte: «A Liga morreu afinal de pura inanição porque ninguém, no fundo, queria saber nem de colónias, nem de desforra, nem de reformas sociais. O que passou durante este Inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós».
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Digo eu, a terminar, que há nas palavras de Antero de Quental - esquecido o motivo que gerou a aparição inglória da Liga - uma verdade, como esta:

Esta situação é tanto mais grave, quanto gradualmente se foi estabelecendo entre a nação e os governantes um verdadeiro divórcio, divórcio à muito latente e que a crise actual veio apenas patentear em toda a sua cruel realidade. Os governos, em Portugal, deixaram há muito de representar genuinamente os interesses e o sentir da nação. 

Isto é uma verdade.

Verdadeiramente, ninguém sabe o nome do representante do círculo político que representa no Parlamento um dado pedaço da Nação portuguesa onde cabe um determinado número de cidadãos, porquanto, os deputados são escolhidos por cada um dos Directórios dos partidos a quem ficam sujeitos, pelo que, ou um dia mudamos isto ou, então, caminhamos a passos largos para o "divórcio" de que falou Antero de Quental, entre a Nação e os governantes.

Uma reflexão indesejada



https://www.sapo.pt/ de 26 de Outubro e 2018
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Em Portugal é assim!
Ninguém sabe de nada!
A responsabilidade morreu... por tanta irresponsabilidade!
Valha-nos Deus!

E, foi, pensando em tudo isto, convencido que o Primeiro-Ministro de Portugal "desconhece o memorando" e que o Presidente da República - Comandante Supremo das Forças Armadas - também não sabe nada de como se passou e como se passou o roubo das armas em Tancos e o seu "miraculoso" achamento num matagal da Chamusca, que o velho português que sou, numa revolta profunda foi à procura do poema PORTUGAL de Miguel Torga para o colocar aqui para quem o quiser ler.


                                                     
Portugal, "Meu velho Pais de marinheiros" no dizer de um outro poeta português, António Nobre - no SÓ - nesta hora que vivo e em cima da interrogação que faço à minha alma serrana, dou comigo a pensar em dois versos que podemos ler na primeira estrofe do  poema de Miguel Torga, que reverencialmente aqui deixo assinalados para quem fizer o favor de me ler, outorgando-me de um direito - que não tenho - mas que ousa falar sobre o PORTUGAL que passa e sobre ele, fazer minhas as palavras do Poeta:

Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.

Mas há uma diferença importante.
Miguel Torga sabia quem foi que "desfigurou" Portugal... e eu, ao certo, não sei!

Mas sei - isso sei - que Portugal está desfigurado!

Defeito meu, decerto, que sou um velho com a toleima de o ver neste tempo de tantas diferenças, como o vi, mas correcto e respeitador de princípios que deviam ser inelutáveis, quando, afinal, podiam ser vencidos...
Eu é que pensei que a velha PRAÇA FORTE era assim... e, afinal, não era!
Defeito meu!

"O homem é"...



Os últimos dias de Alexandre Herculano testemunhados por Bulhão Pato


Este texto dolorido de Bulhão Pato que foi um incondicional amigo de Alexandre Herculano vale por dois motivos fundamentais:
  • Por ser uma prova do poder da amizade quando ela é - como devia ser - um dos bens maiores que os homens podem der entre si.
  • Por ser um texto magnífico e único que nos dá conta da morte de um dos maiores vultos da Língua Portuguesa.
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Casa de Alexandre Herculano em Vale de Lobos


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OS ÚLTIMOS DIAS DE ALEXANDRE HERCULANO

Sábado – 8 de Setembro de 1877 – depois de jantar, saí da casa, onde então morava – Calçada da Estrela, próximo ao largo –, e fui visitar o meu amigo Zacarias d'Aça, que habitava na Rua de São Félix, à La
Eram dois passos. Ia conversar e convidá-lo para darmos, no dia seguinte, uma volta de caça pelo juncal da Costa. Ia com o ânimo desafogado, bem disposto, como vulgarmente se diz.
Estava uma tarde magnífica, iluminada pelo Sol, ainda vivo, do declinar do Verão.
Quando entrei em casa do meu amigo, achei-o preocupado e triste.
Perguntei-lhe se tinha alguma coisa. Respondeu-me que não. Em seguida propus-lhe o nosso passeio à Costa. Calou-se um momento: depois disse-me, com certa precipitação:

-É verdade, o Alexandre Herculano está doente. Parece-me ser coisa grave. O Reis (Henrique Augusto de Sousa Reis, tenente-coronel de artilharia, amigo de Herculano) já partiu para lá com o dr. Alves Branco.
Apertou-se-me o coração, que estava expansivo e alegre, dizendo comigo:
– O mestre está morto!
Escrevi um bilhete a minha irmã, e saí imediatamente. Zacarias d'Aça acompanhou-me.

Chegámos à Livraria Bertrand, onde encontrei Augusto Saraiva de Carvalho. Perguntei-lhe novas.
– No telegrama que recebo agora, diz-se que é uma perniciosa – respondeu-me ele.
Segui para o caminho-de-ferro. Tinha-se aberto a porta. A casa estava deserta. Entrei a passear de alto a baixo. Os viajantes vinham confluindo. Eu acotovelava este, pisava aquele...

Há horas em que nós quase perdemos a consciência do mundo exterior.
Minutos antes de partir o comboio apareceu à porta o dr. José de Avelar.
Fiz-lhe logo uma série de perguntas importunas. Supunha, alucinadamente, que o médico me pudesse consolar!
– Sossega-te. Eu não sei nada. Lá veremos o que há.
Chegámos a Vale de Lobos às 11 horas da noite, pouco mais ou menos.

Estavam lá o médico assistente, dr. Pedroso e Alves Branco. As fisionomias de ambos não me influíram ânimo. Outro tanto me sucedeu, quando José de Avelar voltou do quarto do doente.
Alexandre Herculano estava no pleno uso das suas faculdades, porém, extremamente agitado.
Sobre a madrugada partimos. Poucas palavras trocámos. José de Avelar disse para o seu colega Alves Branco:
-Não gosto disto.
– Nem eu! – respondeu Alves Branco.

Depois começaram a falar, na linguagem da ciência. julguei perceber que o mal não estava ainda bem caracterizado, mas que o prognóstico era mau.
Não me atrevi a perguntar nada.

Num telegrama de domingo – 9 – havia algumas palavras um nadinha animadoras.
Uma carta de José Basto, escrita ao irmão João Basto e datada de domingo à noite, dizia que o doente tomara os caldos com menos fastio e até pedira uma colher de Vinho do Porto, coisa que até aí lhe repugnava grandemente.
Fui, a correr, levar esta notícia a Henrique Reis e José de Avelar, que esperavam por mim na Tabacaria Lusitana. Naquelas circunstâncias esta notícia deu-nos alma nova.

Reis disse-me:

– Daqui por meia hora devo ter telegrama em casa. Se as notícias forem boas, vamos dar um passeio ao campo e depois de jantar partimos para Vale de Lobos.
Passada meia 'hora acompanhei Henrique até sua casa, em frente da Biblioteca. Fiquei à espera no largo. Bastou-me vê-lo sair da porta, com o telegrama na mão, para me convencer que as novas eram lastimosas!
Não me enganei.

António da Silva Túlio, extremamente comovido, tinha corrido ao Paço a pedir a Magalhães Coutinho que acudisse com a sua ciência e grande talento ao amigo de tantos anos.
Mandou-se pôr um expresso. Ás seis e meia entrávamos na estação. Lá estava Magalhães Coutinho. Partimos. Éramos cinco: Magalhães Coutinho, João Galhardo, sobrinho de Alexandre Herculano por afinidade, Henrique de Sousa Reis, José de Avelar e eu.
xpresso silvava constantemente, cortando o terreno, como as aves cortam os ares. Pareceu-nos que ia devagar!

Chegando a Vale de Lobos Magalhães Coutinho não auscultou o doente. Tomou-lhe o pulso, e disse-lhe algumas frases vagas. Falou-lhe, com insistência, de um alto personagem, que se interessava pelo seu estado.
Quando Magalhães Coutinho saiu do quarto, Alexandre Herculano, muito comovido, disse para José de Avelar:
– Isto dá vontade de a gente morrer.

Era a frieza desconsolada do médico e do amigo? Seria sentir que o homem de superior talento, talento que ele apreciava tanto, não lhe podendo já acudir com a ciência, queria, àquelas tardias horas, consolá-lo com a satisfação das vaidades humanas?
Fosse o que fosse, alguma coisa acerba lhe atravessou o espírito nesse atribulado momento!
Dali a pouco, recobrando a sua habitual serenidade, disse-me:

– Os de casa, coitados, andam com a cabeça perdida. Dê uma vista de olhos àquilo lá por baixo, para que arranjem a ceia. Veja os melões. Este ano são magníficos.
De madrugada regressámos a Lisboa.
Nesse dia à noite – 11 – José de Avelar voltou a Vale de Lobos.

Damos-lhe agora a palavra:
«Meu querido Bulhão Pato. – Para completares a tua triste narrativa, queres que reconte o que se passou, desde o dia em que tiveste de retirar de Vale de Lobos e eu tive de ficar ao lado do nosso nobilíssimo e chorado amigo, na qualidade de enfermeiro, qualidade que nunca ultrapassei, como sabes. Vou cumprir as tuas ordens, e em breves palavras direi os poucos e melancólicos episódios que a minha fraca memória não deixou escapar.
No dia 12 resolveram propor ao enfermo que aproveitasse a presença do tabelião – que era seu respeitoso amigo e que o vinha visitar – para fazer o seu testamento, ao que ele acedeu sem a menor hesitação, demonstrando, todavia, bem acentuadamente num quase desdenhoso sorriso, que não acreditava na coincidência daquela visita.

Assisti ao acto como testemunha.

Ditou tudo, palavra por palavra, com a maior serenidade, e sem diferença de tom na voz, quando falou das disposições do seu próprio enterro, que deixava ao arbítrio e vontade de sua viúva.
Fui eu e Santos que o amparámos, para se sentar na cama e assinar o testamento. Como a primeira pena – que era de ave, e com essas é que sempre escrevia – não servisse, por estar ressequida e com os bicos revirados, por não ter uso havia alguns dias, fui ao escritório procurar outra, que preparei rapidamente, molhando-a na tinta, e colocando-lha entre os dedos.

Com estas curtas demoras, e na posição que conservava – ainda que amparado nos braços de Santos – tinha-se afadigado extraordinariamente; a respiração era já muito frequente e curtíssima, porque a maior parte dos pulmões não funcionava e só com muito esforço e vigor de vontade conseguiu – a muito custo e com letra muito tremida e deformada – assinar o seu – A. Herculano.

A palavra que, decerto, o grande escritor traçara sempre com menos atenção e quase automaticamente, foi a última que escreveu e com tantas dificuldades e cansado trabalho, como quem realmente grava no bronze eterno a rubrica da própria imortalidade!
Deixou-se cair, ofegante, sobre as almofadas, com a respiração estrídula e fervorosa de quem já não tinha força para expectorar.
Disse-me ainda que os rapazes – os seus testamenteiros – poderiam publicar uns cinco volumes de opúsculos com os manuscritos, que deixava, e os artigos dispersos nos jornais.
Depois ficou num torpor de repouso aparente, e nós deixámo-lo como a dormitar.
Estava exausto; poucas horas tinham de decorrer para começar a agonia.
De noite voltaste, e como não o desamparaste mais, melhor do que eu sabes como se passaram os últimos momentos do homem, do grande e inimitável historiador!
Teu velho amigo
José de Avelar

Os telegramas do dia 12 eram cada vez mais aterradores.
Henrique de Sousa Reis estava descoroçoado, mas queria ainda levar o dr. Alves Branco a ver o seu amigo.
Era um fio de esperança; agarrava-se a el
No comboio da noite partimos.
A viagem foi soturna.
Quando chegámos a Vale de Lobos e entrámos no quarto, Alexandre Herculano olhou para Henrique e abraçou-o.

Era um agradecimento mudo pela sua solicitude.
O dr. Alves Branco observou detidamente o enfermo. Não despregávamos os olhos dele. O habilíssimo médico forcejava por aparentar a máxima serenidade, falando afectivamente com Alexandre Herculano, que lhe dizia:
– Ainda que chegasse a levantar-me daqui, como ficaria eu? Valeria a pena esgotar os recursos da ciência com um homem, que já nada poderia produzir? Estou cansado, doutor, tenho trabalhado muito!
Quando entrámos no escritório, Alves Branco sentou-se, esteve alguns momentos calado e depois, como respondendo à nossa ansiosa expectativa, disse-nos, com as lágrimas nos olhos:

– É um homem irremediavelmente perdido!

Meia hora depois Henrique, morta a esperança, voltava com o doutor para Lisboa. Eu ficava.
Abraçámo-nos sem trocar palavra.
Sobre a madrugada desci à casa de jantar, sentei-me numa cadeira de braços, e adormeci. Dali a pouco acordei sobressaltado.
Cantavam os pássaros, vinha rompendo a manhã.
Subi ao quarto. Eduardo Galhardo, sobrinho de Herculano, filho de sua irmã, estava ali.
A luz, que entrava pelas frinchas da janela, sobrelevava já ao darão mortiço da lâmpada acesa no quarto próximo ao do enfermo.

Alexandre Herculano disse:
– Abram a janela. Quero ver as árvores.

Eduardo abriu as portas da janela. O orvalho, aos clarões vivos e virginais da alvorada, brilhava como pedras preciosas, correndo em lágrimas pelos vidros empanados.
Eduardo limpou os vidros com o lenço. Nesse mesmo momento tinham entrado no quarto José Bastos, José Cândido dos Santos, um dedicado amigo de Vale de Lobos, hoje morto, a Exª Srª D. Mariana Hermínia Meira, e as amigas íntimas, que a acompanhavam. Não me recordo de algumas pessoas mais.
A luz da manhã crescia em ondas. Alexandre Herculano estava extremamente pálido. O queixo inferior, que de ordinário, quando falava, tremia um pouco, agora tremia constante e fortemente.

Não havia nem lágrimas nos olhos, nem palavras na boca de ninguém.
Nada às vezes é mais eloquente, do que o completo silêncio!
Herculano, vendo entrar as senhoras, olhou fixo para sua mulher, que ele amava extremosamente, com expressão dolorosa e afectiva.
Depois, estendendo o braço, disse com energia:

– Levem daqui as mulheres. Mulheres não são para ver isto!

Que se passaria naquele forte, e ao mesmo tempo amantíssimo coração, ao proferir estas palavras em tal instante e com tal hombridade! ?
O médico assistente, dr. Pedroso, chegou pelas oito horas. Na consternação da sua boa e inteligente fisionomia lia-se a sentença fatal!

O criado Manuel, que Alexandre Herculano tivera em sua casa de pequeno e mandara educar, veio trazer-lhe um caldo.

Herculano fez um gesto repulsivo.
Manuel insistiu solicitamente.
O doente respondeu:
– Bebe-o tu, coitado, que necessitas, eu já não preciso de nada!

Às onze horas da manhã chegou o duque de Palmela.
O duque, desde muito rapaz, tivera relações íntimas com Alexandre Herculano.
Quando ele entrou no quarto, Alexandre Herculano estava deitado sobre o lado esquerdo. Sem proferir palavra, estendeu o braço direito, e lançou-o em volta do pescoço do seu amigo.
O duque fez grande esforço para conter o ímpeto da comoção; ainda assim não o pôde conseguir.
Nas largas e aflitivas horas daquele dia – horas negras que, por uma antítese cruel, contrastavam com o aspecto do Vale, cujas árvores e vinhedos, batidos pelo Sol magnífico, pareciam nadar num banho de luz – houve para mim um momento de singular consolo.
Vendo que a respiração do doente era por extremo anelante, o que me oprimia o peito, perguntei-lhe, como – maquinalmente:
– Custa-lhe muito a respirar?
-Não, não, respiro bem, muito bem.
Disse isto com tanta convicção e naturalidade, que eu fiquei aliviado de um grande peso!
Queixava-se muito de dores no lugar do cáustico. Pediu que lho tirassem. Como houvesse hesitação disse:

– Tirem, tirem. Agora para que serve?

Os olhos, que ele tinha de um grande brilho, apesar da terrível enfermidade, não haviam amortecido muito; conservavam a sua expressão reflexiva e boa.
O semblante estava dolorido, macerado; mas não havia sombras, que as não tinha, aquela alma límpida e serena!

Não cabe aqui nestas linhas o retrato moral desse homem verdadeiramente superior.
Um dia, talvez em breve, tentarei fazê-lo, narrando factos da sua vida particular, factos característicos – eloquentes! Ã falta de arte haverá verdade e sinceridade. Conheci muito de perto aquela vida imaculada no decurso de trinta anos.

Volto à minha narrativa.
A respiração continuava anelante, porém, menos ruidosa. Cada vez maior dificuldade de expectorar.
Tinha alguns minutos de aparente sonolência; depois, estremecendo, abria os olhos.
Seriam três da tarde. Interrompendo um longo silêncio, disse, apontando para os pés:

– A morte já aí vem a subir.

Em seguida, levando a mão à testa ampla e proeminente, bateu repetidas vezes, acrescentando:
– Isto ainda está bom. Foi muito rijo.
Esteve alguns minutos – fitando-me e continuou:
– Agora, vocês é que ficam sendo os velhos!

Nas horas em que estive ao pé dele, durante a enfermidade, foi nesse momento que, pela primeira vez, lhe vi os olhos húmidos de lágrimas.
A tarde começou a declinar.
Eu estava no gabinete de trabalho próximo do quarto. Eduardo Galhardo chegou-se a mim.
– Olha, o tio recitou agora alguns versos, mas eu não pude perceber bem.
Abeirei-me do leito e falei-lhe.

Respondeu:
– Ainda lhe comprava mais dois centos.
Tornei a falar-lhe.
Repetiu as mesmas palavras e, passado breve espaço, acrescentou:
– Tanchões de oliveiras.
Os olhos haviam tomado expressão diversa – espantados, desvairados!

Estava em delírio.
Saí, ou antes, fugi do quarto.
Quando vi transtornada aquela soberana razão que desde os meus dezasseis anos me habituara a venerar e a admirar, em diurna convivência, perdi completamente o ânimo.
Sem me despedir de ninguém meti-me com o duque de Palmela numa caleche e parti.
Dali a pouco mais de duas horas, Alexandre Herculano estava morto

Voltei no dia seguinte – 14 à noite. Não achei condução na Ribeira de Santarém, e só na cidade, de madrugada, pude obter um trem, que me levasse a Vale de Lobos.
Era a última despedida.
A alma humana, sob qualquer forma, há-de tender sempre para estas manifestações, ter estas exigências, por mais que os espíritos positivos lhes chamem puerilidade.
Não foram, há pouco ainda, os comunistas da França, que não acreditam em Deus, levar coroas de perpétuas à vala, onde haviam caído, trucidados pela reacção aterrada e enfurecida –, o medo é feroz! – milhares dos seus camaradas?

Eram vermelhas as coroas.
A cor que importa?
Quando entrei no Vale, vinha clareando a manhã.
As duas enormes faias do eremitério, meneando-se e acurvando-se com a aragem viva da madrugada, pareciam chamar, convidando o recém-chegado a que viesse comemorar com uma lágrima a solidão em que as deixara a perda do seu amigo!

O Sol, crescendo em torrentes de luz, inundava dali a pouco a paisagem.
No ar, onde rutilavam colunas de pó doirado, nos claros das alamedas, zumbiam os insectos com uma vibração alegre – irónica e cruel para a alma dos tristes!

As folhas de terra do fundo do vale e as encostas de bacelo, denunciando próspera colheita, estavam ali para confirmar a solicitude e mestria da mão que as cultivara.
Vale de Lobos, nos últimos anos, foi uma granja modelo, onde até os mais contumazes na rotina vinham estudar e aprender.
Era ainda um serviço prestado por aquele homem de eleição, entre tantos que fizera ao seu país.

Com o altear do dia foram chegando os que vinham para o acompanhar no préstito
O firmamento sem uma nuvem, de um azul vivo e profundo, ostentava a sua serenidade olímpica sobre as lágrimas e misérias deste mundo!
As águas da mina, refervendo, desciam por encanamentos, para irem regar a várzea; as vacas turinas, com a barbela pendendo em dobras, o pescoço recachado, os úberes túrgidos, repletas e descansando, deitadas no ervaçal, voltavam vagarosamente a cabeça, a reparar para a linha negra e taciturna dos convidados, que seguia pela bordada do vale, e fitavam, estremecendo, a orelha velosa, como atónitas de verem na sua alegre paisagem aqueles inusitados e sombrios vultos!

Na clareira do vale, e no fundo verde escuro do outeiro, ressaíam as casas da aldeia com as chapadas de luz da força do dia.
Entre os que seguiam no préstito um homem de verdadeira ciência e talento – António Augusto de Aguiar – proferiu, à beira da sepultura do grande (historiador, algumas palavras notáveis e comoventes. Não as ouvi, porque não fui ao cemitério.
Os camponeses ofereciam ramos de oliveira às pessoas que tinham vindo de Lisboa.

As oliveiras, que ele lhes ensinara a tratar!
Prestavam esta homenagem, na sua rústica e afectuosa sinceridade, não ao escritor que não conheciam, mas ao amigo de tantos anos, que respeitavam, porque lhes acudira sempre com o conselho e com o remédio.
Daqui a poucos dias completam-se três anos – 13 de Setembro que desapareceu a luz de um dos mais elevados engenhos que tem tido Portugal e acabou para mim um grande amigo

Estas linhas são um desafogo.
Creio que o País não verá com indiferença a história, religiosamente verdadeira, das últimas horas e das últimas palavras do seu mais ilustre cidadão.

Agosto 30, 1880.

Fonte: "Projecto Vercial"