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quarta-feira, 17 de outubro de 2018

"Livro de Horas" - Um poema de Miguel Torga



LIVRO DE HORAS

Aqui, diante de mim,
Eu, pecador, me confesso
De ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
Que vão ao leme da nau
Nesta deriva em que vou.

Me confesso
Possesso
Das virtudes teologais,
Que são três,
E dos pecados mortais,
Que são sete,
Quando a terra não repete
Que são mais.

Me confesso
O dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
E o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo
Andanças
Do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
E luar de charco, é mistura.
De ser a corda do arco
Que atira setas acima
E abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
Que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
Desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser Homem.
De ser um anjo caído
Do tal céu que Deus governa;
De ser um monstro saído
Do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
Para dizer que sou eu
Aqui, diante de mim!

Miguel Torga . in, “O outro Livro de Job” 1936

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Sempre latente em Miguel Torga a problemática religiosa porque ela foi o grande combate da sua vida, nascida de uma revolta do menino de S. Martinho de Anta contra a transcendência com que se veio a confrontar na sua vida de adulto, mas de todo este drama em que a ambiguidade e a contradição existiram, não deixa de ser um ponto de interrogação o facto do Poeta se revoltar contra Deus, mas sem nunca se ter definido - como tantos homens ilustres do seu tempo o fizeram - com ateu, porquanto a sua negação embora lhe tenha perturbado a razão, tal facto não o coibiu de em muitas das suas poesias Deus estar lá presente na dúvida e na afrmação de se lhe bater à porta como alguém, que na aflição chama o médico.

Torga viveu nessa negação inquietante por entender que contra Deus devia afirmar o Homem e a necessidade deste se realizar na verdade da Terra e, daí, um seu constante monólogo com Deus, sentindo a sua falta a que as suas concepções racionalistas se opunham, tornando-o inatingível.

Neste "LIVRO DE HORAS" a honradez de carácter que ele bebeu a partir da sua terra transmontana está presente isso mesmo: Me confesso / O dono das minhas horas, para mais adiante, sem rodeios, mágoas ou qualquer relutância humana de si mesmo dizer "ser um anjo caído" , quando muito longe de o ser, olhando o percurso social e humano da sua vida, Torga foi - isso, sim - um anjo que nunca abandonou, verdadeiramente, o céu de Deus da sua infância.

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