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segunda-feira, 1 de outubro de 2018

"O Senhor Diabo"


"O Senhor Diabo" é um conto de Eça de Queirós publicado no dia 20 de Outubro de 1867 na "Gazeta de Portugal", oriundo do seu tempo juvenil - tinha então 22 anos -  mas onde já estava patente a sua ousada pena que então partia para a profícua formação literária que o veio a distinguir, mais tarde por volta de 1870, de entre os seus pares da "geração de setenta" - assim chamada - e onde houve vultos como Antero de Quental, Manuel de Arriaga, Oliveira Martins, Ramalho Ortigão e Teófilo Braga que veio a ser Presidente do Governo Provisório republicano

Conhecem o Diabo? - esta é a pergunta que num dado ponto inicial do texto Eça de Queirós faz aos seus leitores, para de seguida explanar com a sagacidade exemplar que lhe serviu para o resto da sua vida literária, o seguinte:

Não serei eu quem lhes conte a vida dele. E, todavia, sei de cor a sua legenda trágica, luminosa, celeste, grotesca e suave! O Diabo é a figura mais dramática da História da Alma. A sua vida é a grande aventura do Mal. Foi ele que inventou os enfeites que enlanguescem a alma, e as armas que ensanguentam o corpo.

E, todavia, em certos momentos da história, o Diabo é o representante imenso do direito humano. Quer a liberdade, a fecundidade,a força, a lei. É então uma espécie de Pã sinistro, onde rugem as fundas rebeliões da Natureza.

Combate o sacerdócio e a virgindade; aconselha a Cristo que viva, e aos místicos que entrem na humanidade.É incompreensível: tortura os santos e defende a Igreja. No século 16 é o maior zelador da colheita dos dízimos.É envenenador e estrangulador. É impostor, tirano, vaidoso e traidor.

Todavia,conspira contra os imperadores da Alemanha; consulta Aristóteles e Santo Agostinho, e suplicia Judas que vendeu Cristo e Bruto que apunhalou César.O Diabo ao mesmo tempo tem uma tristeza imensa e doce.Tem talvez nostalgia do Céu! Ainda novo, quando os astros lhe chamavam Lúcifer, o que leva a luz, revoltase contra Jeová e comanda uma grande batalha entre as nuvens.

Depois tenta Eva, engana o profeta Daniel, apupa Jó, tortura Sara e em Babilónia é jogador, palhaço, difamador, libertino e carrasco. Quando os deuses foram exilados, ele acampa com eles nas florestas húmidas da Gália e embarca expedições olímpicas nos navios do imperador Constâncio.

Cheio de medo diante dos olhos tristes de Jesus, vem torturar os monges do Ocidente.Escarnecia S. Macário, cantava salmos na igreja de Alexandria, oferecia ramos de cravos a Santa Pelágia, roubava as galinhas do abade de Cluny, espicaçava os olhos de S. Sulpício e à noite vinha, cansado e empoeirado, bater à portaria do convento dos dominicanos em Florença e ia dormir na cela de Savonarola.

Estudava o hebreu, discutia com Lutero, anotava glosas para Calvino, lia atentamente a Bíblia e vinha ao anoitecer para as encruzilhadas da Alemanha jogar,com os frades mendicantes, sentados na relva, sobre a sela do seu cavalo.Intentava processos contra a Virgem; e era o pontífice da missa negra, depois de ter inspirado os juízes de Sócrates.Nos seus velhos dias, ele que tinha discutido com Átila planos de batalha,deu-se ao pecado da gula. E Rabelais, quando o viu assim, fatigado, engelhado, calvo, gordo e sonolento, apupou-o. Então o demonógrafo Wier escreve contra ele panfletos sanguinolentos e Voltaire criva-o de epigramas.

(..)

Este escrito juvenil de Eça de Queirós, pelo seu fino recorte literário põe no devido lugar a figura do Diabo - Satã, Demónio ou Lúcifer como também é tratado - é a figura tentadora de que a Bíblia Sagrada nos fala e a quem não escapou o próprio Jesus Cristo, como se pode ler em S. Mateus, cap. 4, vers. 4 a 11. 

O tentador aproximou-se dele e lhe disse: Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães. .Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus . O demónio transportou-o à Cidade Santa, colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: .Se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proteger-te-ão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra . Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus.  O demónio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: .Dar-te-ei tudo isto se, prostrando-te diante de mim, me adorares. .Respondeu-lhe Jesus: Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás. Em seguida, o demónio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo." 

Eça de Queirós com o seu fino sarcasmo já presente na sua idade juvenil  fez entrar "O Senhor Diabo" na vida de muitas personagens históricas, desde Imperadores, a filósofos, a santos, a Judas e a Cristo, a Eva, a profetas, a monges e monjas,  a padres e outros como reformadores religiosos e até com a Virgem, com guerreiros e com figuras do Renascimento,  sem faltar aos modos apaixonados dedicados a uma Maria que "na varanda fiava a sua estriga" com Jusel - o seu enamorado ali perto "encostado ao pilar" a fiar "os seus desejos"  sobre o amor que lhe ia no peito pela sua amada de a ter, um dia, como esposa dentro do seu lar.

Mas "O Senhor Diabo" lá estava a minar os sãos desejos de Jusel, enquanto lhe cantava esta trova enganadora:
Os teus olhos, bem-amada,
São duas noites cerradas.
Mas os lábios são de luz
Lá se cantam alvoradas.
Os teus seios, minha graça,
São duas portas de cera,
Fora a minha boca um sol
Como ele as derretera!
Os teus lábios, flor de carne,
São portas do Paraíso:
E o banquinho de S. Pedro
É no teu dente do siso.
Queria ter uma camisa
De um tecido bem fiado
Feita de todos os ais
Que o teu peito já tem dado.
Quando nos formos casar
Canta missa o rouxinol
E o teu vestido de noiva
Será tecido de sol!
A bênção nos deitará
Algum antigo carvalho!
E por enfeites de boda

Teremos gotas de orvalhos!

É assim "O Senhor Diabo"!

Manhoso e cheio de malícia aquele "anjo de Deus" expulso da corte celestial ficou por aí sem tempo e sem lugar a cumprir a sua vingança, ao entrar em todas as actividades do homem, tentando-o às piores aberrações mundanas com o fito do desviar do bem comportamental que o liga à Divindade - Fonte de Todo o Bem - para lhe denegrir os princípios.

O Diabo é isso.
"A sua vida é a grande aventura do Mal", como diz no seu conto Eça de Queirós.

Vive todos os dias connosco com os seus modos subreptícios, manhosos, maldosos e descuidados com o desejo de lançar o homem contra a Fonte de Todo o Bem, com o desejo inconfessado de lhe impor as suas atrocidades inumanas e desviantes do bem social, pelo que, disperso e rude na sua maldade pertinaz não cessa de desejar corromper a sociedade por ser nesse campo que ele trava a sua luta contra Deus.

"O Senhor Diabo" como enfaticamente Eça de Queirós o apelidou, é um "senhor" que vive ao nosso lado, desejando entrar no Senhor que deve ser todo o homem e que, mal este se descuida perdeu a senhoria que podia fazer dele um membro forte e vivo da sociedade, por ter cedido à irrequietude de um mundo que por demais se entrega, sem cuidar, nas garras do "Diabo à solta" que anda por aí.

E, por fim, pergunto se o Diabo num dado tempo e lugar não tomou conta de Eça de Queirós, quando ele, em assomos agudos deixou resvalar a sua pena a favor de cenas e costumes próprios da sanha daquela figura do mal, porquanto da sua pena infantigável saíram escritos puros no modo linguístico, mas nos quais as cores carregadas de males sociais que ele retrata em muitos dos seus livros não são obra daquele Diabo de que ele nos falou nos anos áureos da sua juventude?

São-no, decerto!

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