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quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

O Peso do João




O Peso do João

Aconteceu ontem: 
dia vinte e seis de Janeiro, do ano
de mil novecentos e noventa e oito. 
Eram quatro horas da tarde.

Tinhas cinco meses e uns dias. 
A tua avó Lena vestiu-te a primor:
uma calcinhas com alças dobravam os teus ombritos 
e abotoavam à frente
sobre uma camisinha amarela-canário. 
Nos teus pézinhos calçou-te
uns sapatinhos acamurçados com debrum vermelho... 
e na cabeça,
tapando as tuas orelhinhas enfiou-te um barretinho amarelo
que condizia tão bem com o conjunto, 
que tu ficaste um brinquinho!
Depois disso, que demorou um tempo, 
a avó Lena abalou contigo
todo aconchegado na concha quente dos seus braços... 
e disse-me:

- Vou ali à Farmácia. Vou pesar o João e já volto - 
e saíu toda vaidosa! Pudera!

Olhei-te, quando saíste a porta. Ias muito contente...
 e gralhaste numa despedida,
como se me dissesses: - Vou ali e já volto, meu avô!
- Foi assim que entendi o sorriso do teu olhar -  naquilo que disseste...
Quando regressaste vinhas calado. 
Dormias serenamente o sono justo dos meninos...
Os teus olhitos vivos e quentes como duas brasas haviam cedido
à cadência dos passos compassado da tua avó... 
que demorou naquele passo uma eternidade!
No sono que dormias 
o teu corpito era um novelo que inchava mais o peito da tua avó,

Inchada, ainda, de um santo orgulho de te ter levado 
naquele passeio, pelo meio da tarde
e, também, pela notícia dos teus 

oito quilos, novecentos e quarenta gramas!

- está forte, o João - disse toda orgulhosa de ti - 
vê como está lindo este menino!
E eu vi-te melhor. 
Vi-te uma vez mais com estes olhos de avô que te amam muito
e, de facto, vi como estavas lindo, mais agora, 
que vinhas com as duas faces mais rosadas!...
Acompanhei-te, depois, até ao berço... 
e olhei-te, ainda, mais e mais... e rezei a Deus
para que o teu peso de hoje 
faça de ti num dia que há-de vir, um homem possante.

Um peso-pesado... mas, no meu pensamento - 
o que eu pedi a Deus - é que permitisse
que tu o fosses, não tanto na estatura física, 
mas no espírito, que é leve como uma pena
mas torna os homens assim, com peso perante a vida. 
Pesos-pesados na arte e na cultura
e em tudo o mais em que o homem se faz e se cumpre!

E, foi assim, que junto do teu berço, 
calado, mas falando de ti a Deus, que me lembrei
dos muitos pesos-pesados 
que têm passado pelo mundo e deixaram caminhos para andar.

Segue, João, por um deles...  faz tu mesmo o teu caminho!

Há - podes crer 
-  muitos caminhos para os homens inteiros... 
para os que são verticais!
E neste divagar, dei comigo a misturar pesos: 
o teu peso real de pessoa, no dia de hoje...
o teu peso, quando fores um homem, 
calcando com força as pedras do caminho!
Mas, sobretudo, dei comigo a pensar 
no peso espiritual da força que eu gostaria que tivesses!

No arreganho que é preciso para que sejas um homem inteiro...
e, foi, desta mistura de pesos... 
uns que o são e outro que o não é,
que estive, nem sei quanto tempo a olhar para o sono que dormias 
e te fazia mais bonito!

Deus queira, querido João, 
que durmas sempre assim: sereno por teres cumprido o teu dever.
E satisfeito por teres sido sempre um homem, 
aconteça o que acontecer... sempre com peso
nas decisões que é preciso ter nas muitas tarefas 
que vais certamente encontrar pelo caminho.

Com peso neste mundo tão precisado de pesos-pesados no saber!
Rezei assim, para que tal aconteça...
E vou continuar a rezar por ti enquanto tiver vida,
para que Deus - que é meu amigo - faça de ti, João
 - um peso-pesado - no mundo!

 26 de Janeiro de 1998

A tua primeira corrida


     A TUA PRIMEIRA CORRIDA 

Querido  Vasquinho:
Olhei, rendido, a graça dos teus primeiros passos...
Foi a tua primeira corrida!

Aconteceu, ontem, ao cair da noite.
Tinhas comido a tua refeição e havias tomado o teu banho.
A tua Mãe, solícita, tinha-te vestido todo de azul
e calçara-te umas meias brancas...

Ficaste lindo  dentro do “parque” 
que havia na sala maior da tua casa.
Dentro dele, havia uma profusão imensa de brinquedos,
até que, primeiro, um, e depois, outro e outro até ao último,
todos voaram,  até caírem  com estrondo no chão.
Limpaste o “terreno” de empecilhos...
eram assim os teus brinquedos -  ante os teus intentos.
Depois, num rodopio, fincaste as tuas mãositas
nos bordos  do “parque”... a tua primeira pista de corridas
e ergueste o teu corpito, junto a um dos cantos
e, num relance, olhaste, interrogador, o outro
como quem estuda o “terreno” e o seu tamanho.

Depois, largaste as mãos
 e ficaste gracioso, num “tem-tem...”
Foi um encantamento.
Porém, o mais lindo, não foi apenas isto.
Num repente, puseste asas leves nos teus pesinhos
E correste em frente, 
até ao outro lado com uma gargalhada!
Havias vencido a tua primeira corrida, num espaço “enorme”
Para os teus robustos e saudáveis nove meses!

Deus queira, Vasquinho, que esta vitória sobre ti mesmo
seja a primeira das muitas nas corridas que vais ter...
e que seja sempre assim, pela vida fora.
É este o meu desejo e, também, o da tua avó,
que assistiu agachada, á frente do parque,
na expectativa de te levantar, se tu caísses.
Não foi preciso, porque tu és um campeão!

Como eu, a tua avó 
que gosta muito de ti - foi a testemunha
dos teus primeiros passos... 
da tua primeira e grande vitória!
E, como eu, deixa aqui, um beijo do tamanho do mundo
e um desejo ardente, para que em todas em tuas corridas,
pela lonjura da vida, 
chegues sempre ao outro lado sempre inteiro
e como aconteceu nesta primeira vez, sorridente!

Que tu, querido Vasquinho, 
tenhas sempre a alegria de ontem,
dentro do “parque” que havia na sala maior da tua casa...

Mas, se um dia não chegares ao fim de um caminho traçado,
isto é, ao outro lado, pensa nisto:
é porque o caminho 
era muito comprido para as forças daquele dia.
Porque - acredita - 
quando queremos, nunca se perdem  corridas!
o que é preciso, é recomeçar sempre no mesmo ponto
até que surja, mesmo longe, o outro lado do “parque”
Faz sempre como ontem: era grande a lonjura... e venceste!

É este o desejo dos teus avós,
que sentiram uma santa vaidade pela tua grande corrida
e sorriram contentes com as tuas gargalhadas
e com teu encantamento pela tua primeira vitória!


14 de Outubro de 1997



















































      

À Paulecas




À PAULECAS
(Nos seus dez anos)


Minha rosa em botão...
És a flor que vai abrindo
Um mimoso coração
Pulando alegre e rindo!

Minha rosa cor de rosa:
- Minha vida gira, rodando
Na órbita carinhosa
Que tu me vais emprestando!

Nasceste ontem... hà dez anos...
Ai, como o tempo passou!
Esse tempo sem enganos...
Que só a mim enganou!

Ó minha rosa pequena,
Não desabroches, ainda...
Que murcharia de pena
A tua face tão linda!

1977

Inventário de fim de ano




INVENTÁRIO 
DE FIM DE ANO
  
No ano que finda hoje
Como me dói a realidade
Do meu menino que foge
Ao fugir de si...
Dos jogos pueris, da tenra idade!

Ai, que bom era, meu menino,
Ter-te sempre pequenino!

E que os meus braços
Nunca fossem curtos
Para abraçar o teu corpo
E prender o teu destino!

Mas, já que assim não é,
Que Deus me dê a ventura
De p’la vida fora o meu abraço
Ser sempre assim:
Um abraço enorme,
Grande como o mundo...
E que te sintas sempre pequenino
Ao pé de mim!

Embora sejas, e Deus o queira
Um homem possante e sadio.
E eu, um velhinho gasto...
Chegado ao fim!

1972

quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Até um dia destes, minha Mãe!


CARTA PARA A MINHA MÃE

15 de Setembro de 2010


Mãe, eu sei que vives longe e sei que não há correio, daqueles fardados que tu sabes, para te levarem esta carta às lonjuras da Casa onde vives.
Eu sei de tudo isso, Mãe, mas sei, porque tu me ensinaste que eu tenho um Anjo da Guarda para fazer o serviço do meu correio pessoal e é com ele que estou contando para te levar direitinha esta carta onde vai, também direitinha e inabalável a minha ternura de amor filial.

Este dia 15 de Setembro era o dia dos teus anos.

Era hábito meu, nesse dia, dar-te um beijo especial, ainda que a prenda material nem sempre acompanhasse o sentido imaterial do beijo que te dava.
Mas tu compreendias.
O beijo era especial, porque um dia, magnanimamente abriste o teu corpo cheio de dores,  deste-me ao mundo e agradeceste a Deus as dores que te causei e, depois, sorriste cheia de alegria ao olhar o corpito frágil, sadio e perfeito, que viria a ser forte, mas que a vida foi tornando menos sadio.

É assim, que hoje, o corpo forte que me deste está a voltar ao princípio: à fragilidade do meu nascimento, porque o corpo sadio se vai perdendo no desgaste próprio da natureza humana e a perfeição que era um encanto teu no corpo que me deste, essa minha mãe, está alquebrada pela ferrugem dos anos e deu lugar àquela outra perfeição que nunca esquecias de me pedir que a alcançasse  - e que luto, ainda, para a  conseguir  na minha moldura mental - no intuito de a guardar incólume como a coisa mais preciosa da vida na esperança de o Deus que nós partilhámos enquanto viveste, me chamar pelo meu nome.

Escrevo-te esta carta no dia em que fazias anos para te dizer o seguinte:

Hoje, quis o destino, que pela primeira vez tenha ido fazer no Hospital de Santo António dos Capuchos, em Lisboa, um tratamento ao líquido vital que faz bater o meu coração, porque, como acima te disse o aspecto sadio que me deste por vontade de Deus, também pela Sua vontade se está a perder, necessitando que a ciência dos homens que o mesmo Deus comanda vá arranjando maneira de me dar mais algum tempo para ver se eu consigo atingir a perfeição humana que sempre me pediste.

Na cadeira do Hospital, nas duas horas em que o pessoal de enfermagem, eficientemente, ia mudando os apetrechos médicos, pensei que era o dia dos teus anos -  15 de Setembro -  um dia em que corria para os teus braços, sempre que pude ou de te mandava beijos, na certeza que em troca tinha o teu mavioso “bem hajas, meu filho” a que não falava o teu desejo profundo:

Que Deus te abençoes, e te dê saúde e paz”.

Mãe, peço-te que me mandes pelo meu Anjo da Guarda estas mesmas palavras, porque preciso de mais um pouco de saúde e, também, de mais um pouco de paz.
Tu sabes porquê.
Não preciso de mais nada.
Tenho riqueza que basta, porque me basta saber que tenho uma companheira excelente e dos filhos maravilhosos, para os quais te peço a bênção do nosso Deus.

   Até um dias destes, minha Mãe!

Em tua memória, Mãe!



    EM TUA MEMÓRIA, MÃE


Como se fosse uma finíssima escultura
de um qualquer afamado artista de Atenas
era uma estátua grega o teu rosto mortuário.
Era de tal modo a talha e a linha pura
que o teu rosto escondia as suas penas
e tinha o ar de quem rezava o seu Rosário.

Apesar disso, Mãe,
apesar da tua serenidade amortalhada
e do ar que tinhas... como se dormisses
por teres chegado ao fim da estrada
nunca supus que após o fim da tua vida
deixasses tanto vazio e tanto escuro!
É que tudo é mais longe e é mais além...
e é por me faltar a tua guarida
que em cada passo encontro um muro.

Ensina-me, Mãe, o modo de o vencer.
Que há vidas que tenho de cumprir
e sortes onde não posso perder.
Conto contigo, minha Mãe,
embora nunca mais me digas adeus
quando saía comovido do teu ninho
- que era a nossa casa da aldeia -
e me perdia na curva do caminho.

Sabes, Mãe, dou graças ao destino
por ter sido eu quem te havia de cerrar os olhos.
- Os teus olhos quase cegos - mas que se abriam
 para me ver, como se não houvesse crescido
e fosse sempre ao teu olhar o teu menino!
Graças, Mãe, pela tua força e pelo teu querer
Graças, Mãe, por tudo o que me ensinaste,
Graças, Mãe, pela tua alegria de viver
Graças, Mãe, por tudo quanto amaste
Graças, Mãe, por tudo quanto me deste:
- os teus inolvidáveis presentes.

Graças, Mãe, pelo teu amor à terra
e às suas gentes.
E agora, Mãe, embala-me docemente,
como se eu fosse - e era para ti -
o teu menino... sempre em teus braços.
E reza por mim no alvor celeste
para que eu vença todos os cansaços
e me erga sempre em cada um dos passos
que tenha de cumprir na vida que me deste!

sábado, 5 de janeiro de 2019

Olha as minhas mãos...


Foto captada com a devida vénia do Jornal "Expresso" de 5 de Janeiro de 2019
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       Olha as minhas mãos

Foram jovens e pujantes,
fortes e ágeis e construíram coisas…
Com elas ergui catedrais
e casas humildes.
Foi com elas que ganhei honradamente a vida
trabalhando horas a fio… horas demais,
tantas vezes!

Mas havia prazos a cumprir.

E lá em casa, aqueles que dependiam de mim,
e que viviam à mercê do trabalho das minhas mãos
e me pediam – e com todo o direito –
que lhes desse o essencial…
que fosse, ao menos, o pão-nosso de cada dia,
sempre que nisto pensava, as minhas  mãos
nunca se cansaram!

Hoje estão assim…

Velhas e enrugadas, tendo em cada ruga
esforços e vitórias de muitos trabalhos.
Mas, também, o sabor amargo de algumas derrotas
das quais, penso, o vencedor foi a ingratidão
de um Mundo por demais incompreensivo
com os mais fracos… e me pediam impossíveis!

Mas, tudo lá vai…

Dou graças a Deus pelas minhas mãos enrugadas,
por serem, cada uma, das que, amorosamente
seguras entres as tuas,
mapas de muitos caminhos vencidos..
porque, podes crer, todos aqueles que me derrotaram
por me terem pedido, esforços sobre-humanos
em certos dias em que lhes faltou a caridade humana,
eu venci-os a todos,
porque foi sempre minha a vitória do dia seguinte.

E foram as tuas mãos macias
que agora acariciam as minhas mãos enrugadas,
as causadoras de todas as batalhas que venci,
porque foi por amor das tuas mãos,
que eram então, pequeninas,
que eu senti o grito de ganhar  
por cima de todos os esforços, 
o pão-nosso de cada dia!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Em tua lembrança, Pai


MEMÓRIA PATERNA

Pai:
Caíste de pé, como querias!

Tal como o carvalho cansado
Das invernias
Se despediu da floresta,
Também tu caíste
E acabaste os dias!

Só que,
O carvalho caiu cansado
Farto de se reverdecer.
E tu, Pai,
Caído em plena rua fulminado
Tinhas, ainda, vidas por fazer!
Vidas de que eras arquitecto.
E sonhos que só tu sonhavas
Debaixo do humilde tecto
Da casa da aldeia, que tanto amavas!

Pai: Conta comigo.

Hei-de realizar aquilo
Que deixaste inacabado
Ou por fazer!
Dorme no seio de Deus
E sê tranquilo...
Eu sei dos sonhos
Que tinha p’ra viver!

Pai:

Peço-te, estando agora reunido
Ao Deus da minha crença sem enganos,
Que Ele me dê o teu poder caído,
E sejas tu, ainda, o leme  e o sentido
Da vida que me deste há tantos anos!

E como tu,
Um dia, findos os que o Céu me destinar
Eu caia sobre as pedras da calçada...
E que cerre docemente o meu olhar
Sob a luz silente e branca do luar
E tenha um lírio roxo de almofada!

E fique, como tu, com um sorriso
A abençoar o mundo inteiro.
Para que o dia do fim, sendo de Juízo
Me encontre redimido e verdadeiro!

E como a tua, serena,
Na glória celeste
Cumpra a minha última novena
E ser feliz... não tendo pena
Da vida que me deste!

4 de Fevereiro de 1977


Hoje, pai - que farias 107 anos se ainda vivesses - nesta comunhão dos santos em que eu acredito como uma união espiritual antropocêntrica entre vivos e mortos, e cujo conjunto abarca o Corpo Místico da Igreja que me tem ajudado a erguer a vida tendo por cabeça Jesus Cristo - cujo nascimento nos aprestamos para celebrar - lembrei-me da tua memória inefável e associei-te ao que é dito na Primeira Carta aos Efésios (2,19-20) por S. Paulo, um convertido, ao lembrar a união que existe entre os que viveram mais perto ou mais longe da Casa de Deus:  Portanto, já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus.

E é por eu saber que para além de teres sido meu pai terreno - pela graça de Deus -  hoje, és, também, meu irmão na casa de Deus nesta comunhão de almas de concidadãos, neste dia, uma vez mais, lembro a tua memória imorredoira.

No tempo devido e movido pela dor da tua perda e da lembrança da nossa ida - a teu pedido - num certo dia já longe, ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima, escrevi com a saudade que continua viva este poema de Amor paternal que faz parte do meu acervo de intimidades, mas hoje torno público, não tendo pena da vida que me deste -  porque tem valido a pena  - e muito agradecido a Deus de me ter ajudado a concluir coisas que deixaste por fazer, por ter vindo muito cedo para ti na seara da vida a ceifa do trigo que tu foste.

Pai: é de um trigo de natureza diferente, mas tornado - Pão de Deus - que vou alimentando a vida que me deste.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

O bucolismo das velhas fontes das aldeias!

in, Revista "Branco & Negro" de 17 de Mao de 1896
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Há, no silêncio da água que corre escondida nos canos das fontes que serviam antigamente as aldeias, um mistério da Natureza, porque não nasceram ali pela acção humana, mas brotaram em locais - muitas vezes paradisíacos - como par emoldurar o ambiente campestre, ouvindo-se, apenas, quando ao encher dos cântaros e à medida que a água subia, subia igualmente a sua canção de amor nas notas que se faziam ouvir até estes transbordarem.

Tudo isto é quase um passado sem retorno e as poucas fontes que existem, ainda, perderam muito da sua antiga poesia - como atesta a velha gravura que se reproduz - estando muito delas ao abandono, sem contudo, a maravilha da nascente continuar a sua presença nas bicas de onde a água sai, serena e pura, continuando a sua canção, agora sem ter ouvintes.

Um dia, já longe - como eu me recordo! - quando me dei conta pelas visitas que fazia à aldeia onde nasci, que fica num fundo de um vale entre montes, que a velha fonte que desedentou a casa dos meus avós, ia morrendo no esquecimento, escrevi com alguma ternura e em seu louvor a quadra simples que deixo aqui.

Ó velha fonte cantante
Se te matarem, um dia,
A alma da própria aldeia
Há-de morrer nesse instante.

A velha fonte ainda não morreu e de todas as vezes que vou à minha aldeia vou visitá-la e numa saudade vibrante lembro a minha santa avó, que um dia, era eu criança, junto à fonte me deu o lanche da tarde que ainda hoje me sabe - e muito bem - acompanhado por um púcaro de água... das mesma água que hoje, desaproveitada continua a correr num caudal diminuído, como se a velha fonte "soubesse" que não fazendo agora tanta falta, faz correr, apenas a água necessária para manter viva a lembrança antiga de todo o bem que fez!

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O meu velho "Cine-Royal"!

in, "Restos de Colecção" - captação de imagens, com a devida vénia
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Recordo-me...

Era, então, um adolescente, morador do Bairro da Graça, tendo quase à mão este antigo cinema que preencheu - e muito - a minha mocidade, quando, com os outros da minha igualha e como eu, estudantes-trabalhadores, aos sábados combinávamos a ida "ao nimas", normalmente na sessão da noite, naquele local mítico que exibia com orgulho o facto de ser o cinema que estreou em Lisboa o primeiro sonoro da Cidade.

Um dos arrumadores - nome vulgar que era dado aos empregados que conduziam aos lugares os espectadores - era pai do um amigo meu que Deus já chamou, e que se encarregava, antecipadamente de reservar lugares para o grupo, dado que naquele tempo, acontecia muitas vezes que os 900 lugares repartidos entre a 1ª e 2 plateias, balcão e camarotes, esgotavam.

Recordo-me...

Corria o dia 3 de Março de 1976 quando foi realizada a última sessão cinematográfica no "Cine-Royal" com o filme "Voluntários à Força" e tanto bastou para reunir os que, do velho grupo puderam estar presentes, para, saudosamente vermos fechar a porta da frontaria onde a estrela que encima o frontão - a marca do seu proprietário Agapito Serra Fernandes - ficou ali sem o brilho dos dias antigos da minha juventude que, muitas vezes, calcorreou a Rua Senhora do Monte, vizinha do miradouro do mesmo nome, para ver e admirar meia-Lisboa.

Recordo-me...

E dou graças a Deus por isso, quando passo pela Rua da Graça e ao olhar a fachada que denota nos traços que lhe deu o seu autor, Arq. Norte Júnior, um encanto que nunca lhe soube ver na minha juventude, como ela na pureza das suas linhas dentro do estilo arte-nova, continua a ser a marca indelével do meu velho "Cine-Royal", hoje, descaracterizado e onde se calou para sempre o barulho característico da velha máquina projectora de tantos filmes que me encantaram!

Recordo-me...  

Recordo-me da velha rapaziada.
Dos tempos em que ir "ao nimas" era um festa que ás vezes acabava dentro do velho edifício, no bar onde gastávamos as parcas moedas nos "pirolitos" de saudosa memória, pela esbelteza da garrafa, a que alguns chamavam - o frasco da bola -  mas sobretudo pelo sabor gaseificado do líquido contido hermeticamnete pela tal bola de vidro, que era usada como berlinde quando as garrafas se partiam... ou a nossa traquinice as partia para recolher as bolas...

Recordo-me...

E lamento que o meu velho "Cine-Royal" esteja transformado numa área comercial de uma cadeia de bens alimentícios, dando a tão belo edifício um destino tão diverso e onde os filmes que passam, são hoje, os filmes sem graça de muitos que entram e saem com desejo de comprar aquilo que não podem!

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A terra, a lavra, os velhos lavradores... e alguma saudade!

A lavra da terra
Gravura publicada pela Revista "Occidente" de 21 de Julho de 1887


O antigo lavrador do arado e grade puxados pela força animal dos bois de trabalho já não existe que não seja na lembrança dos mais velhos - como eu - que tive a sorte de os ver, ainda, empenhados na faina dos campos a abrir os sulcos, que depois eram gradados em demoradas idas e vindas dos animais com o fim de desfazer os torrões da terra mais firme, por forma à dar às superfícies lavradas a textura da lavoura.
                           
grade


Segundo se crê há 4.500 anos  a.C. o ser humano fixou-se e passou a usar os galhos das árvores mais densas e duras - que foram os arados primitivos -  para revolver a terra e semear as sementes, tendo com esta prática passado a dominar a terra, o que lhe permitiu criar os primeiros povoados, ao que consta nos vales férteis da Mesopotâmia irrigados com as águas dos rios Tigre e Eufrates.

Não é este o local nem tampouco se pretende assinalar pelos séculos fora a evolução deste utensílio que passou da matéria vegetal para a mais sofisticada das técnicas mecânicas que explodiram no século XIX e preencheu quase todo o século imediato, tendo dado ao lavrador uma ferramenta indispensável ao amanho das terras.

Apontamento, apenas, de um tempo em que no remanso das aldeias mais escondidas entre montes o arado e a grade - hoje peças de museu - foram importantes e indispensáveis, como o foram os bois possantes que acudiam, lestos à voz do lavrador.

Recordo-me de os ver passar ao fim do dia, nos tempos da minha adolescência, a caminho da corte, mansos e bons com o seu olhar sereno que sempre me impressionou e que um dia - muitos anos depois - recordei num poema que a minha saudade ditou, acordando em mim a lembrança da boeirinha - a doce mulher de um lavradaor da minha aldeia - que costumava conduzir os bois depois da lavra dos campos.

BUCÓLICO

Ó terra da Beira, distante...
Quanto de ti me contenta!
O ar,
A luz,
O céu azul sem tormenta!

Terra onde um dia nasci
Entre pinhais e penedos...
Ai, quanto me prende a ti:
O milheiral,
Verde e doirado,
Cheio de segredos!
O ribeiro manso
Por entre salgueirais
Limando penedos!

Os carros de bois
À tardinha,
Lentos e mansos
Pela mão da boieirinha!

Os teus pinhais
E os montes floridos
De cores vivas
Como vitrais!
A tua capelinha
Co’a torre sineira
Muito branquinha!
Mas de tudo
O que mais me enleia
E enternece
É a paz
Da minh’aldeia...
Que noutro lado
Não acontece!

1972