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sábado, 8 de dezembro de 2018

Os actos humanos e a sua obediência à lei natural


Negada a dependência de Deus desaparece o princípio formal da obrigação, e suprimido o princípio formal da obrigação, que não é outro senão a autoridade divina, se destrói, ou ao menos temos de repelir por inútil, a lei natural, norma próxima da moralidade dos atos humanos, e sem obrigação moral as leis carecem de eficácia, e de finalidade os ditames da consciência; e feito isto, a vida humana é impossível, a sociedade se converte em uma agrupação artificial mais ou menos sabiamente organizada, porém, sem consistência fixa, porque carece de uma comunidade de princípios morais, laço espiritual que liga as gerações, unificando seus esforços em ordem ao progresso e à felicidade, sem a ideia de Deus a autoridade não pode intimar seus mandatos nem o direito possui virtude para impor seus axiomas, nem se concebe sanção eterna sem um legislador que premeie e castigue aos homens segundo suas obras. 

E sem autoridade, sem consciência, sem direito, teremos uma associação de animais dirigidos pelos instintos, não uma sociedade de homens governada pela razão. 

os Proclamada a moral independente, converte-se o homem em fim de si mesmo, inclinado unicamente para o gozo dos bens materiais, a vontade não encontra nessa moral um estímulo que a impulsione à virtude nem um freio às suas concupiscências, nem uma energia que domine suas paixões e dome seus apetites, haverá apenas uma desordem completa nas faculdades morais da alma.

P. Eugenio Cantera
in, Jesus Cristo e os Filósofos - Cap, V, nº2 Jesus Cristo e a Moral

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

"Misericordia et misera"


No final do Angelus de domingo 20 de Novembro, o Papa Francisco assinou a sua carta apostólica «Misericordia et misera» dirigida à Igreja inteira para que continue a viver a misericórdia experimentada durante todo o jubileu extraordinário que ocorreu desde o dia 8 de Dezembro de 2015 a 20 de Novembro de 2016.

Documento importante para crentes e não crentes, porquanto a misericórdia que se define, pela compaixão pelo outro ou pela indulgência para com os seus defeitos, exigindo, por isso, o acto de os compreender e perdoar - na certeza que o homem é um ser imperfeito - esta chamada de atenção do Papa Francisco, serve essencialmente, para lembrar que encerrado o Ano Jubilar consagrado à Misericórdia, o seu sentido  e a sua vivência real no concreto dos dias tem de estar presente na acção de cada homem em relação aos seu semelhante.

Nota: As separações dos parágrafos do texto que se publica na íntegra e das partes, é da nossa conta.


CARTA APOSTÓLICA
Misericordia
 et misera
DO SANTO PADRE 
FRANCISCO
NO TERMO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO
 DA MISERICÓRDIA
Francisco
a quantos lerem esta Carta Apostólica
misericórdia e paz!

Misericórdia e mísera (misericordia et misera) são as duas palavras que Santo Agostinho utiliza para descrever o encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8, 1-11). Não podia encontrar expressão mais bela e coerente do que esta, para fazer compreender o mistério do amor de Deus quando vem ao encontro do pecador: «Ficaram apenas eles dois: a mísera e a misericórdia».[1] Quanta piedade e justiça divina nesta narração! O seu ensinamento, ao mesmo tempo que ilumina a conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, indica o caminho que somos chamados a percorrer no futuro.

1. Esta página do Evangelho pode, com justa razão, ser considerada como ícone de tudo o que celebramos no Ano Santo, um tempo rico em misericórdia, a qual pede para continuar a ser celebrada e vivida nas nossas comunidades. Com efeito, a misericórdia não se pode reduzir a um parêntese na vida da Igreja, mas constitui a sua própria existência, que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho. Tudo se revela na misericórdia; tudo se compendia no amor misericordioso do Pai.

Encontraram-se uma mulher e Jesus: ela, adúltera e – segundo a Lei – julgada passível de lapidação; Ele que, com a sua pregação e o dom total de Si mesmo que O levará até à cruz, reconduziu a lei mosaica ao seu intento originário genuíno. No centro, não temos a lei e a justiça legal, mas o amor de Deus, que sabe ler no coração de cada pessoa incluindo o seu desejo mais oculto e que deve ter a primazia sobre tudo. Entretanto, nesta narração evangélica, não se encontram o pecado e o juízo em abstrato, mas uma pecadora e o Salvador. Jesus fixou nos olhos aquela mulher e leu no seu coração: lá encontrou o desejo de ser compreendida, perdoada e libertada. A miséria do pecado foi revestida pela misericórdia do amor. Da parte de Jesus, nenhum juízo que não estivesse repassado de piedade e compaixão pela condição da pecadora. A quem pretendia julgá-la e condená-la à morte, Jesus responde com um longo silêncio, cujo intuito é deixar emergir a voz de Deus tanto na consciência da mulher como nas dos seus acusadores. Estes deixam cair as pedras das mãos e vão-se embora um a um (cf. Jo 8, 9). E, depois daquele silêncio, Jesus diz: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? (...) Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar» (8, 10.11). Desta forma, ajuda-a a olhar para o futuro com esperança, pronta a recomeçar a sua vida; a partir de agora, se quiser, poderá «proceder no amor» (Ef 5, 2). Depois que se revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por causa do pecado, tal condição é dominada pelo amor que consente de olhar mais além e viver de maneira diferente.

2. Aliás Jesus ensinara-o claramente quando, em casa dum fariseu que O convidara para almoçar, se aproximou d’Ele uma mulher conhecida por todos como pecadora (cf. Lc 7, 36-50). Esta ungira com perfume os pés de Jesus, banhara-os com as suas lágrimas e enxugara-os com os seus cabelos (cf. 7, 37-38). À reação escandalizada do fariseu, Jesus retorquiu: «São perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa, pouco ama» (7, 47).

perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda a sua vida. Não há página do Evangelho que possa ser subtraída a este imperativo do amor que chega até ao perdão. Até nos últimos momentos da sua existência terrena, ao ser pregado na cruz, Jesus tem palavras de perdão: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34).

Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o abraço do seu perdão. É por este motivo que nenhum de nós pode pôr condições à misericórdia; esta permanece sempre um ato de gratuidade do Pai celeste, um amor incondicional e não merecido. Por isso, não podemos correr o risco de nos opor à plena liberdade do amor com que Deus entra na vida de cada pessoa.
A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e muda a vida. É assim que se manifesta o seu mistério divino. Deus é misericordioso (cf. Ex 34, 6), a sua misericórdia é eterna (cf. Sal 136/135), de geração em geração abraça cada pessoa que confia n’Ele e transforma-a, dando-lhe a sua própria vida.

3. Quanta alegria brotou no coração destas duas mulheres: a adúltera e a pecadora! O perdão fê-las sentirem-se, finalmente, livres e felizes como nunca antes. As lágrimas da vergonha e do sofrimento transformaram-se no sorriso de quem sabe que é amado. A misericórdia suscita alegria, porque o coração se abre à esperança duma vida nova. A alegria do perdão é indescritível, mas transparece em nós sempre que a experimentamos. Na sua origem, está o amor com que Deus vem ao nosso encontro, rompendo o círculo de egoísmo que nos envolve, para fazer também de nós instrumentos de misericórdia.
Como são significativas, também para nós, estas palavras antigas que guiavam os primeiros cristãos: «Reveste-te de alegria, que é sempre agradável a Deus e por Ele bem acolhida. Todo o homem alegre trabalha bem, pensa bem e despreza a tristeza. (...) Viverão em Deus todas as pessoas que afastam a tristeza e se revestem de toda a alegria».[2] Experimentar a misericórdia dá alegria; não no-la deixemos roubar pelas várias aflições e preocupações. Que ela permaneça bem enraizada no nosso coração e sempre nos faça olhar com serenidade a vida do dia-a-dia.

Numa cultura frequentemente dominada pela tecnologia, parecem multiplicar-se as formas de tristeza e solidão em que caem as pessoas, incluindo muitos jovens. Com efeito, o futuro parece estar refém da incerteza, que não permite ter estabilidade. É assim que muitas vezes surgem sentimentos de melancolia, tristeza e tédio, que podem, pouco a pouco, levar ao desespero. Há necessidade de testemunhas de esperança e de alegria verdadeira, para expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil com paraísos artificiais. O vazio profundo de tanta gente pode ser preenchido pela esperança que trazemos no coração e pela alegria que brota dela. Há tanta necessidade de reconhecer a alegria que se revela no coração tocado pela misericórdia! Por isso guardemos como um tesouro estas palavras do Apóstolo: «Alegrai-vos sempre no Senhor!» (Flp 4, 4; cf. 1 Ts 5, 16).

4. Celebramos um Ano intenso, durante o qual nos foi concedida, em abundância, a graça da misericórdia. Como um vento impetuoso e salutar, a bondade e a misericórdia do Senhor derramaram-se sobre o mundo inteiro. E perante este olhar amoroso de Deus, que se fixou de maneira tão prolongada sobre cada um de nós, não se pode ficar indiferente, porque muda a vida.
Antes de mais nada, sentimos necessidade de agradecer ao Senhor, dizendo-Lhe: «Vós abençoastes a vossa terra (…). Perdoastes as culpas do vosso povo» (Sal 85/84, 2.3). Foi mesmo assim: Deus esmagou as nossas culpas e lançou ao fundo do mar os nossos pecados (cf. Miq 7, 19); já não Se lembra deles, lançou-os para trás de Si (cf. Is 38, 17); como o Oriente está afastado do Ocidente, assim os nossos pecados estão longe d’Ele (cf. Sal 103/102, 12).

Neste Ano Santo, a Igreja pôde colocar-se à escuta e experimentou com grande intensidade a presença e proximidade do Pai, que, por obra do Espírito Santo, lhe tornou mais evidente o dom e o mandato de Jesus Cristo relativo ao perdão. Foi realmente uma nova visita do Senhor ao meio de nós. Sentimos o seu sopro vital efundir-se sobre a Igreja, enquanto, mais uma vez, as suas palavras indicavam a missão: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos» (Jo 20, 22-23).

5. Agora, concluído este Jubileu, é tempo de olhar para diante e compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria e entusiasmo, a experimentar a riqueza da misericórdia divina. As nossas comunidades serão capazes de permanecer vivas e dinâmicas na obra da nova evangelização na medida em que a «conversão pastoral», que estamos chamados a viver,[3] for plasmada dia após dia pela força renovadora da misericórdia. Não limitemos a sua ação; não entristeçamos o Espírito que indica sempre novas sendas a percorrer para levar a todos o Evangelho da salvação.

Em primeiro lugar, somos chamados a celebrar a misericórdia. Quanta riqueza está presente na oração da Igreja, quando invoca a Deus como Pai misericordioso! Na liturgia, não só se evoca repetidamente a misericórdia, mas é realmente recebida e vivida. Desde o início até ao fim da Celebração Eucarística, a misericórdia reaparece várias vezes no diálogo entre a assembleia orante e o coração do Pai, que rejubila quando pode derramar o seu amor misericordioso. Logo na altura do pedido inicial de perdão com a invocação «Senhor, tende piedade de nós», somos tranquilizados: «Deus todo-poderoso tenha compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna». É com esta confiança que a comunidade se reúne na presença do Senhor, especialmente no dia semanal que recorda a ressurreição. Muitas orações ditas «coletas» procuram recordar-nos o grande dom da misericórdia. No tempo da Quaresma, por exemplo, rezamos com estas palavras: «Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda a bondade, que nos fizestes encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno os remédios do pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa misericórdia».[4]Mais adiante, somos introduzidos na Oração Eucarística pelo Prefácio que proclama: «Na vossa infinita misericórdia, de tal modo amastes o mundo que nos enviastes Jesus Cristo, nosso Salvador, em tudo semelhante ao homem, menos no pecado».[5] Aliás a própria Oração Eucarística IV é um hino à misericórdia de Deus: «Na vossa misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles que Vos procuram Vos encontrem». E «tende misericórdia de nós, Senhor»[6] é a súplica premente que o sacerdote faz na Oração Eucarística para implorar a participação na vida eterna. Depois do Pai-Nosso, o sacerdote prolonga a oração invocando a paz e a libertação do pecado, «ajudados pela vossa misericórdia» e, antes da saudação da paz que os participantes trocam entre si como expressão de fraternidade e amor mútuo à luz do perdão recebido, o celebrante reza de novo: «Não olheis aos nossos pecados, mas à fé da vossa Igreja».[7] Através destas palavras, pedimos com humilde confiança o dom da unidade e da paz para a Santa Mãe Igreja. Assim a celebração da misericórdia divina culmina no Sacrifício Eucarístico, memorial do mistério pascal de Cristo, do qual brota a salvação para todo o ser humano, a história e o mundo inteiro. Em suma, cada momento da Celebração Eucarística faz referimento à misericórdia de Deus.

Mas, em toda a vida sacramental, é-nos dada com abundância a misericórdia. Realmente é significativo que a Igreja tenha querido fazer explicitamente apelo à misericórdia na fórmula dos dois sacramentos chamados «de cura»: a Reconciliação e a Unção dos Enfermos. Assim reza a fórmula da absolvição: «Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e infundiu o Espírito para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz»;[8] e ao ungir a pessoa doente: «Por esta santa Unção e pela sua piíssima misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo».[9] Deste modo, a referência à misericórdia na oração da Igreja, longe de ser apenas parenética, é altamente realizadora, ou seja, enquanto a invocamos com fé, é-nos concedida; enquanto a confessamos viva e real, efetivamente transforma-nos. Este é um conteúdo fundamental da nossa fé, que devemos conservar em toda a sua originalidade: ainda antes e acima da revelação do pecado, temos a revelação do amor com que Deus criou o mundo e os seres humanos. O amor é o primeiro ato com que Deus Se deu a conhecer e vem ao nosso encontro. Por isso mantenhamos o coração aberto à confiança de ser amados por Deus. O seu amor sempre nos precede, acompanha e permanece connosco, não obstante o nosso pecado.

6. Neste contexto, assume significado particular também a escuta da Palavra de Deus. Cada domingo, a Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã, para que o Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério pascal.[10] Na Celebração Eucarística, é como se assistíssemos a um verdadeiro diálogo entre Deus e o seu povo. Com efeito, na proclamação das Leituras bíblicas, repassa-se a história da nossa salvação através da obra incessante de misericórdia que é anunciada. Deus fala-nos ainda hoje como a amigos, «convive» connosco[11] oferecendo-nos a sua companhia e mostrando-nos a senda da vida. A sua Palavra faz-se intérprete dos nossos pedidos e preocupações e, simultaneamente, resposta fecunda para podermos experimentar concretamente a sua proximidade. Quão grande importância adquire a homilia, onde «a verdade anda de mãos dadas com a beleza e o bem»,[12] para fazer vibrar o coração dos crentes perante a grandeza da misericórdia! Recomendo vivamente a preparação da homilia e o cuidado na sua proclamação. Será tanto mais frutuosa quanto mais o sacerdote tiver experimentado em si mesmo a bondade misericordiosa do Senhor. Comunicar a certeza de que Deus nos ama não é um exercício de retórica, mas condição de credibilidade do próprio sacerdócio. Por conseguinte, viver a misericórdia é a via mestra para fazê-la tornar-se um verdadeiro anúncio de consolação e conversão na vida pastoral. A homilia, como também a catequese, precisam de ser sempre sustentadas por este coração pulsante da vida cristã.

7. A Bíblia é a grande narração que relata as maravilhas da misericórdia de Deus. Nela, cada página está imbuída do amor do Pai, que, desde a criação, quis imprimir no universo os sinais de seu amor. O Espírito Santo, através das palavras dos profetas e dos escritos sapienciais, moldou a história de Israel no reconhecimento da ternura e proximidade de Deus, não obstante a infidelidade do povo. A vida de Jesus e a sua pregação marcam, de forma determinante, a história da comunidade cristã, que compreendeu a sua missão com base no mandato que Cristo lhe confiou de ser instrumento permanente da sua misericórdia e do seu perdão (cf. Jo 20, 23). Através da Sagrada Escritura, mantida viva pela fé da Igreja, o Senhor continua a falar à sua Esposa, indicando-lhe as sendas a percorrer para que o Evangelho da salvação chegue a todos. É meu vivo desejo que a Palavra de Deus seja cada vez mais celebrada, conhecida e difundida, para que se possa, através dela, compreender melhor o mistério de amor que dimana daquela fonte de misericórdia. Claramente no-lo recorda o Apóstolo: «Toda a Escritura é inspirada por Deus e adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (2 Tm 3, 16).
Seria conveniente que cada comunidade pudesse, num domingo do Ano Litúrgico, renovar o compromisso em prol da difusão, conhecimento e aprofundamento da Sagrada Escritura: um domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo. Não há de faltar a criatividade para enriquecer o momento com iniciativas que estimulem os crentes a ser instrumentos vivos de transmissão da Palavra. Entre tais iniciativas, conta-se certamente uma difusão mais ampla da lectio divina, para que, através da leitura orante do texto sagrado, a vida espiritual encontre apoio e crescimento. A lectio divina sobre os temas da misericórdia consentirá verificar a grande fecundidade que deriva do texto sagrado, lido à luz de toda a tradição espiritual da Igreja, que leva necessariamente a gestos e obras concretas de caridade.[13]

8. A celebração da misericórdia tem lugar, duma forma muito particular, no sacramento da Reconciliação. Este é o momento em que sentimos o abraço do Pai, que vem ao nosso encontro para nos restituir a graça de voltarmos a ser seus filhos. Nós somos pecadores e carregamos connosco o peso da contradição entre o que quereríamos fazer e aquilo que, ao invés, acabamos concretamente por fazer (cf. Rm 7, 14-21); mas a graça sempre nos precede e assume o rosto da misericórdia que se torna eficaz na reconciliação e no perdão. Deus faz-nos compreender o seu amor imenso precisamente à vista da nossa realidade de pecadores. A graça é mais forte, e supera qualquer possível resistência, porque o amor tudo vence (cf. 1 Cor 13, 7).
No sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e convida a experimentar de novo a sua proximidade. É um perdão que pode ser obtido, começando antes de mais nada por viver a caridade. Assim no-lo recorda o apóstolo Pedro, quando escreve que «o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Ped 4, 8). Só Deus perdoa os pecados, mas também nos pede que estejamos prontos a perdoar aos outros, como Ele perdoa a nós: «Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido» (Mt 6, 12). Como é triste quando ficamos fechados em nós mesmos, incapazes de perdoar! Prevalecem o ressentimento, a ira, a vingança, tornando a vida infeliz e frustrando o jubiloso compromisso pela misericórdia.

9. Uma experiência de graça que a Igreja viveu, com tanta eficácia, no Ano Jubilar foi, certamente, o serviço dos Missionários da Misericórdia. A sua ação pastoral pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas vai ao encontro de todos como um Pai. Recebi muitos testemunhos de alegria pelo renovado encontro com o Senhor no sacramento da Confissão. Não percamos a oportunidade de viver a fé, inclusive como experiência da reconciliação. «Reconciliai-vos com Deus» (2 Cor 5, 20): é o convite que ainda hoje dirige o Apóstolo a cada crente para lhe fazer descobrir a força do amor que o torna uma «nova criação» (2 Cor 5, 17).
Quero expressar a minha gratidão a todos os Missionários da Misericórdia pelo valioso serviço oferecido para tornar eficaz a graça do perdão. Mas este ministério extraordinário não termina com o encerramento da Porta Santa. De facto desejo que permaneça ainda, até novas ordens, como sinal concreto de que a graça do Jubileu continua a ser viva e eficaz nas várias partes do mundo. Será responsabilidade do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização seguir, neste período, os Missionários da Misericórdia, como expressão direta da minha solicitude e proximidade e encontrar as formas mais coerentes para o exercício deste precioso ministério.

10. Aos sacerdotes, renovo o convite para se prepararem com grande cuidado para o ministério da Confissão, que é uma verdadeira missão sacerdotal. Agradeço-vos vivamente pelo vosso serviço e peço-vos para serdes acolhedores com todos, testemunhas da ternura paterna não obstante a gravidade do pecado, solícitos em ajudar a refletir sobre o mal cometido, clarosao apresentar os princípios morais, disponíveis para acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando com paciência o seu passo, clarividentes no discernimento de cada um dos casos, generosos na concessão do perdão de Deus. Como Jesus, perante a adúltera, optou por permanecer em silêncio para a salvar da condenação à morte, assim também o sacerdote no confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que cada penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas ministro da misericórdia.

11. Gostaria que todos nós meditássemos as palavras do Apóstolo, escritas no final da sua vida, quando confessa a Timóteo ser o primeiro dos pecadores, mas «justamente por isso alcancei misericórdia» (1 Tm 1, 16). As suas palavras têm uma força que irrompe também em nós levando-nos a refletir sobre a nossa existência vendo em ação a misericórdia de Deus na mudança, conversão e transformação do nosso coração: «Dou graças Àquele que me conforta, Cristo Jesus Nosso Senhor, por me ter considerado digno de confiança, pondo-me ao seu serviço, a mim que antes fora blasfemo, perseguidor e violento. Mas alcancei misericórdia» (1 Tm 1, 12-13).
Por isso lembremos, com paixão pastoral sempre renovada, as palavras do Apóstolo: «Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18). Nós, primeiro, fomos perdoados, tendo em vista este ministério; tornamo-nos testemunhas em primeira mão da universalidade do perdão. Não há lei nem preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho que regressa a Ele reconhecendo que errou, mas decidido a começar de novo. Deter-se apenas na lei equivale a invalidar a fé e a misericórdia divina. Há um valor preparatório na lei (cf. Gal 3, 24), cujo fim é o amor (cf. 1 Tm 1, 5). Mas o cristão é chamado a viver a novidade do Evangelho, «a lei do Espírito que dá vida em Cristo Jesus» (Rm 8, 2). Mesmo nos casos mais complexos, onde se é tentado a fazer prevalecer uma justiça que deriva apenas das normas, deve-se crer na força que brota da graça divina.
Nós, confessores, temos experiência de muitas conversões que ocorrem diante dos nossos olhos. Sintamos, portanto, a responsabilidade de gestos e palavras que possam chegar ao fundo do coração do penitente, para que descubra a proximidade e a ternura do Pai que perdoa. Não invalidemos estes momentos com comportamentos que possam contradizer a experiência da misericórdia que se procura; mas, antes, ajudemos a iluminar o espaço da consciência pessoal com o amor infinito de Deus (cf. 1 Jo 3, 20).
O sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai que espera o seu regresso e, ao mesmo tempo, a todos seja oferecida a possibilidade de experimentar a força libertadora do perdão.
Uma ocasião propícia pode ser a celebração da iniciativa 24 horas para o Senhor nas proximidades do IV domingo da Quaresma, que goza já de amplo consenso nas dioceses e continua a ser um forte apelo pastoral para viver intensamente o sacramento da Confissão.

12. Em virtude desta exigência, para que nenhum obstáculo exista entre o pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora a todos os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de absolver a todas as pessoas que incorreram no pecado do aborto. Aquilo que eu concedera de forma limitada ao período jubilar[14] fica agora alargado no tempo, não obstante qualquer disposição em contrário. Quero reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado, porque põe fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e devo afirmar que não existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir, quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai. Portanto, cada sacerdote faça-se guia, apoio e conforto no acompanhamento dos penitentes neste caminho de especial reconciliação.

No Ano do Jubileu, aos fiéis que por variados motivos frequentam as igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X, tinha-lhes concedido receber válida e licitamente a absolvição sacramental dos seus pecados.[15] Para o bem pastoral destes fiéis e confiando na boa vontade dos seus sacerdotes para que se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena comunhão na Igreja Católica, estabeleço por minha própria decisão de estender esta faculdade para além do período jubilar, até novas disposições sobre o assunto, a fim de que a ninguém falte jamais o sinal sacramental da reconciliação através do perdão da Igreja.
13. A misericórdia possui também o rosto da consolação. «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40, 1): são as palavras sinceras que o profeta faz ouvir ainda hoje, para que possa chegar uma palavra de esperança a quantos estão no sofrimento e na aflição. Nunca deixemos que nos roubem a esperança que provém da fé no Senhor ressuscitado. É verdade que muitas vezes somos sujeitos a dura prova, mas não deve jamais esmorecer a certeza de que o Senhor nos ama. A sua misericórdia expressa-se também na proximidade, no carinho e no apoio que muitos irmãos e irmãs podem oferecer quando sobrevêm os dias da tristeza e da aflição. Enxugar as lágrimas é uma ação concreta que rompe o círculo de solidão onde muitas vezes se fica encerrado.
Todos precisamos de consolação, porque ninguém está imune do sofrimento, da tribulação e da incompreensão. Quanta dor pode causar uma palavra maldosa, fruto da inveja, do ciúme e da ira! Quanto sofrimento provoca a experiência da traição, da violência e do abandono! Quanta amargura perante a morte das pessoas queridas! E, todavia, Deus nunca está longe quando se vivem estes dramas. Uma palavra que anima, um abraço que te faz sentir compreendido, uma carícia que deixa perceber o amor, uma oração que permite ser mais forte... são todas expressões da proximidade de Deus através da consolação oferecida pelos irmãos.

Às vezes, poderá ser de grande ajuda também o silêncio; porque em certas ocasiões não há palavras para responder às perguntas de quem sofre. Mas, à falta da palavra, pode suprir a compaixão de quem está presente, próximo, ama e estende a mão. Não é verdade que o silêncio seja um ato de rendição; pelo contrário, é um momento de força e de amor. O próprio silêncio pertence à nossa linguagem de consolação, porque se transforma num gesto concreto de partilha e participação no sofrimento do irmão.
14. Num momento particular como o nosso que, entre muitas crises, regista também a da família, é importante fazer chegar uma palavra de força consoladora às nossas famílias. O dom do matrimónio é uma grande vocação, que se há de viver, com a graça de Cristo, no amor generoso, fiel e paciente. A beleza da família permanece inalterada, apesar de tantas sombras e propostas alternativas: «a alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da Igreja».[16] A senda da vida que leva um homem e uma mulher a encontrarem-se, amarem-se e prometerem reciprocamente, diante de Deus, uma fidelidade para sempre, é muitas vezes interrompida pelo sofrimento, a traição e a solidão. A alegria pelo dom dos filhos não está imune das preocupações sentidas pelos pais com o seu crescimento e formação, com um futuro digno de ser vivido intensamente.

A graça do sacramento do Matrimónio não só fortalece a família, para que seja o lugar privilegiado onde se vive a misericórdia, mas também compromete a comunidade cristã e toda a atividade pastoral para pôr em realce o grande valor propositivo da família. Por isso, este Ano Jubilar não pode perder de vista a complexidade da realidade familiar atual. A experiência da misericórdia torna-nos capazes de encarar todas as dificuldades humanas com a atitude do amor de Deus, que não Se cansa de acolher e acompanhar.[17]
Não podemos esquecer que cada um traz consigo a riqueza e o peso da sua própria história, que nos distingue de qualquer outra pessoa. A nossa vida, com as suas alegrias e os seus sofrimentos, é algo único e irrepetível que se desenrola sob o olhar misericordioso de Deus. Isto requer, sobretudo por parte do sacerdote, um discernimento espiritual atento, profundo e clarividente, para que toda a pessoa sem exceção, em qualquer situação que viva, possa sentir-se concretamente acolhida por Deus, participar ativamente na vida da comunidade e estar inserida naquele Povo de Deus que incansavelmente caminha para a plenitude do reino de Deus, reino de justiça, de amor, de perdão e de misericórdia.

15. Reveste-se de particular importância o momento da morte. A Igreja viveu sempre esta dramática passagem à luz da ressurreição de Jesus Cristo, que abriu a estrada para a certeza da vida futura. Temos aqui um grande desafio a abraçar, sobretudo na cultura contemporânea que, muitas vezes, tende a banalizar a morte até reduzi-la a simples ficção ou a ocultá-la. Ao contrário, a morte há de ser enfrentada e preparada como uma passagem que, embora dolorosa e inevitável, é cheia de sentido: o ato extremo de amor para com as pessoas que se deixam e para com Deus a cujo encontro se vai. Em todas as religiões, o momento da morte – como aliás o do nascimento – é acompanhado por uma presença religiosa. Nós vivemos a experiência das exéquias como uma oração cheia de esperança para a alma da pessoa falecida e para dar consolação àqueles que sofrem a separação da pessoa amada.
Estou convencido de que há necessidade, na pastoral animada por uma fé viva, de tornar palpável como os sinais litúrgicos e as nossas orações são expressão da misericórdia do Senhor. É Ele próprio que oferece palavras de esperança, porque nada nem ninguém poderá separar-nos jamais do seu amor (cf. Rm 8, 35.38-39). A partilha deste momento pelo sacerdote é um acompanhamento importante, porque lhe permite viver a proximidade à comunidade cristã no momento de fraqueza, solidão, incerteza e pranto.

16. Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia do nosso coração permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se inclina sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós possamos imitá-Lo inclinando-nos sobre os irmãos. A saudade que muitos sentem de regressar à casa do Pai, que aguarda a sua chegada, é suscitada também por testemunhas sinceras e generosas da ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos neste Ano Jubilar, introduziu-nos no caminho da caridade, que somos chamados a percorrer todos os dias com fidelidade e alegria. É a estrada da misericórdia que torna possível encontrar tantos irmãos e irmãs que estendem a mão para que alguém a possa agarrar a fim de caminharem juntos.
Querer estar perto de Cristo exige fazer-se próximo dos irmãos, porque nada é mais agradável ao Pai do que um sinal concreto de misericórdia. Por sua própria natureza, a misericórdia torna-se visível e palpável numa ação concreta e dinâmica. Uma vez que se experimentou a misericórdia em toda a sua verdade, nunca mais se volta atrás: cresce continuamente e transforma a vida. É, na verdade, uma nova criação que faz um coração novo, capaz de amar plenamente, e purifica os olhos para reconhecerem as necessidades mais ocultas. Como são verdadeiras as palavras com que a Igreja reza na Vigília Pascal, depois da leitura da narração da criação: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes…»![18]

A misericórdia renova e redime, porque é o encontro de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem. Este inflama-se e o primeiro cura-o: o coração de pedra fica transformado em coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de amar, não obstante o seu pecado. Nisto se nota que somos verdadeiramente uma «nova criação» (Gal 6, 15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma vida nova; fui «misericordiado» e, consequentemente, feito instrumento da misericórdia.
17. Durante o Ano Santo, especialmente nas «sextas-feiras da misericórdia», pude verificar concretamente a grande quantidade de bem que existe no mundo. Com frequência, não é conhecido porque se realiza diariamente de forma discreta e silenciosa. Embora não façam notícia, existem muitos sinais concretos de bondade e ternura para com os mais humildes e indefesos, os que vivem mais sozinhos e abandonados. Há verdadeiros protagonistas da caridade, que não deixam faltar a solidariedade aos mais pobres e infelizes. Agradecemos ao Senhor por estes dons preciosos, que convidam a descobrir a alegria de aproximar-se da humanidade ferida. Com gratidão, penso nos inúmeros voluntários que diariamente dedicam o seu tempo a manifestar a presença e proximidade de Deus com a sua entrega. O seu serviço é uma genuína obra de misericórdia, que ajuda muitas pessoas a aproximar-se da Igreja.

18. É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia para dar vida a muitas obras novas, fruto da graça. A Igreja precisa de narrar hoje aqueles «muitos outros sinais» que Jesus realizou e que «não estão escritos» (Jo 20, 30), de modo que sejam expressão eloquente da fecundidade do amor de Cristo e da comunidade que vive d’Ele. Já se passaram mais de dois mil anos, e todavia as obras de misericórdia continuam a tornar visível a bondade de Deus.
Ainda hoje populações inteiras padecem a fome e a sede, sendo grande a preocupação suscitada pelas imagens de crianças que não têm nada para se alimentar. Multidões de pessoas continuam a emigrar dum país para outro à procura de alimento, trabalho, casa e paz. A doença, nas suas várias formas, é um motivo permanente de aflição que requer ajuda, consolação e apoio. Os estabelecimentos prisionais são lugares onde muitas vezes, à pena restritiva da liberdade, se juntam transtornos por vezes graves devido às condições desumanas de vida. O analfabetismo ainda é muito difuso, impedindo aos meninos e meninas de se formarem, expondo-os a novas formas de escravidão. A cultura do individualismo exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de solidariedade e responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a ser hoje um desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior obstáculo para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana.

Em suma, as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até aos nossos dias a verificação da grande e positiva incidência da misericórdia como valor social. Com efeito, esta impele a arregaçar as mangas para restituir dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados connosco a construir uma «cidade fiável».[19]
19. Muitos sinais concretos de misericórdia foram realizados durante este Ano Santo. Comunidades, famílias e indivíduos crentes redescobriram a alegria da partilha e a beleza da solidariedade. Mas não basta. O mundo continua a gerar novas formas de pobreza espiritual e material, que comprometem a dignidade das pessoas. É por isso que a Igreja deve permanecer vigilante e pronta para individuar novas obras de misericórdia e implementá-las com generosidade e entusiasmo.
Assim, ponhamos todo o esforço em dar formas concretas à caridade e, ao mesmo tempo, entender melhor as obras de misericórdia. Com efeito, esta possui um efeito inclusivo pelo que tende a difundir-se como uma nódoa de azeite e não conhece limites. E, neste sentido, somos chamados a dar um novo rosto às obras de misericórdia que conhecemos desde sempre. De facto a misericórdia extravasa; vai sempre mais além, é fecunda. É como o fermento que faz levedar a massa (cf. Mt 13, 33), e como o grão de mostarda que se transforma numa árvore (cf. Lc 13, 19).

A título de exemplo, basta pensar na obra de misericórdia corporal vestir quem está nu (cf. Mt 25, 36.38.43.44). A mesma nos reconduz aos primórdios, ao jardim do Éden, quando Adão e Eva descobriram que estavam nus e, ouvindo aproximar-Se o Senhor, tiveram vergonha e esconderam-se (cf. Gn 3, 7-8). Sabemos que o Senhor castigou-os; no entanto, Ele «fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os» (Gn 3, 21). A vergonha é superada e a dignidade restituída.
Fixemos o olhar também em Jesus no Gólgota. Na cruz, o Filho de Deus está nu; a sua túnica foi sorteada e levada pelos soldados (cf. Jo 19, 23-24); Ele não tem mais nada. Na cruz, manifesta-se ao máximo a partilha de Jesus com as pessoas que perderam a dignidade, por terem sido privadas do necessário. Assim como a Igreja é chamada a ser a «túnica de Cristo»[20] para revestir o seu Senhor, assim também ela se comprometeu a tornar-se solidária com os nus da terra a fim de recuperarem a dignidade de que foram despojados. Assim as palavras de Jesus – «estava nu e destes-me que vestir» (Mt 25, 36) – obrigam-nos a não desviar o olhar das novas formas de pobreza e marginalização que impedem às pessoas de viverem com dignidade.

Não ter trabalho nem receber um salário justo, não poder ter uma casa ou uma terra onde habitar, ser discriminados pela fé, a raça, a posição social... estas e muitas outras são condições que atentam contra a dignidade da pessoa; frente a elas, a ação misericordiosa dos cristãos responde, antes de mais nada, com a vigilância e a solidariedade. Hoje são tantas as situações em que podemos restituir dignidade às pessoas, consentindo-lhes uma vida humana. Basta pensar em tantos meninos e meninas que sofrem violências de vários tipos, que lhes roubam a alegria da vida. Os seus rostos tristes e desorientados permanecem impressos na minha mente; pedem a nossa ajuda para serem libertados da escravidão do mundo contemporâneo. Estas crianças são os jovens de amanhã; como estamos a prepará-las para viverem com dignidade e responsabilidade? Com que esperança podem elas enfrentar o seu presente e o seu futuro?
caráter social da misericórdia exige que não permaneçamos inertes mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os planos e os projetos não fiquem letra morta. Que o Espírito Santo nos ajude a estar sempre prontos a prestar de forma efetiva e desinteressada a nossa contribuição, para que a justiça e uma vida digna não permaneçam meras palavras de circunstância, mas sejam o compromisso concreto de quem pretende testemunhar a presença do Reino de Deus.

20. Somos chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia, com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos irmãos. As obras de misericórdia são «artesanais»: nenhuma delas é cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil modos e, embora seja único o Deus que as inspira e única a «matéria» de que são feitas, ou seja, a própria misericórdia, cada uma adquire uma forma distinta.
Com efeito, as obras de misericórdia, tocam toda a vida duma pessoa. Por isso, temos possibilidade de criar uma verdadeira revolução cultural precisamente a partir da simplicidade de gestos que podem alcançar o corpo e o espírito, isto é, a vida das pessoas. É um compromisso que a comunidade cristã pode assumir, na certeza de que a Palavra do Senhor não cessa de a chamar para sair da indiferença e do individualismo em que somos tentados a fechar-nos levando uma existência cómoda e sem problemas. «Os pobres, sempre os tendes convosco» (Jo 12, 8): disse Jesus aos seus discípulos. Não há desculpa que possa justificar a incúria, quando sabemos que Ele Se identificou com cada um deles.
A cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil à ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na solidariedade concreta para com os pobres. É um convite premente para não se equivocar onde é determinante comprometer-se. A tentação de se limitar a fazer a «teoria da misericórdia» é superada na medida em que esta se faz vida diária de participação e partilha. Aliás, nunca devemos esquecer as palavras com que o apóstolo Paulo – ao contar o encontro depois da sua conversão com Pedro, Tiago e João – põe em realce um aspeto essencial da sua missão e de toda a vida cristã: «Só nos disseram que nos devíamos lembrar dos pobres – o que procurei fazer com o maior empenho» (Gal 2, 10). Não podemos esquecer-nos dos pobres: trata-se dum convite hoje mais atual do que nunca, que se impõe pela sua evidência evangélica.

21. Que a experiência do Jubileu imprima em nós estas palavras do apóstolo Pedro: outrora «não tínheis alcançado misericórdia e agora alcançastes misericórdia» (1 Ped 2, 10). Não guardemos ciosamente só para nós tudo o que recebemos; saibamos partilhá-lo com os irmãos atribulados, para que sejam sustentados pela força da misericórdia do Pai. As nossas comunidades abram-se para alcançar a todas as pessoas que vivem no seu território, para que chegue a todas a carícia de Deus através do testemunho dos crentes.
Este é o tempo da misericórdia. Cada dia da nossa caminhada é marcado pela presença de Deus, que guia os nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no coração para o plasmar e torná-lo capaz de amar. É o tempo da misericórdia para todos e cada um, para que ninguém possa pensar que é alheio à proximidade de Deus e à força da sua ternura. É o tempo da misericórdia para que quantos se sentem fracos e indefesos, afastados e sozinhos possam individuar a presença de irmãos e irmãs que os sustentam nas suas necessidades. É o tempo da misericórdia para que os pobres sintam pousado sobre si o olhar respeitoso mas atento daqueles que, vencida a indiferença, descobrem o essencial da vida. É o tempo da misericórdia para que cada pecador não se canse de pedir perdão e sentir a mão do Pai, que sempre acolhe e abraça.

À luz do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente», celebrado quando já se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as catedrais e santuários do mundo, intuí que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário, se deve celebrar em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo Comum, o Dia Mundial dos Pobres. Será a mais digna preparação para bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras de misericórdia (cf. Mt 25, 31-46). Será um Dia que vai ajudar as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16, 19-21). Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização (cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.

22. Sobre nós permanecem pousados os olhos misericordiosos da Santa Mãe de Deus. Ela é a primeira que abre a procissão e nos acompanha no testemunho do amor. A Mãe da Misericórdia reúne a todos sob a proteção do seu manto, como A quis frequentemente representar a arte. Confiemos na sua ajuda materna e sigamos a indicação perene que nos dá de olhar para Jesus, rosto radiante da misericórdia de Deus.

Dado em Roma, junto de São Pedro, em 20 de novembro – Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo – do Ano do Senhor de 2016, quarto do meu pontificado.

FRANCISCO



[1] In Johannis 33, 5.
[2] Hermas, O Pastor, 42, 1-4.
[3] Cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 27.
[4] Missal Romano, III Domingo da Quaresma.
[5] Ibid., Prefácio VII dos Domingos do Tempo Comum.
[6] Ibid., Oração Eucarística II.
[7] Ibid., Ritos da Comunhão.
[8] Ritual da Penitência, n. 46.
[9] Ritual da Unção dos Enfermos, n. 76.
[10] Cf. Concílio Ecuménico Vaticano II, Const. Sacrosanctum Concilium, 106.
[11] Idem,Const. dogm. Dei Verbum, 2.
[12] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium, 142.
[13] Cf. Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 86-87.
[15] Cf. ibidem.
[16] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia, 1.
[17] Cf. ibid., 291-300.
[18] Missal Romano, Vigília Pascal, Oração depois da Primeira Leitura.
[19] Bento XVI, Carta enc. Lumen fidei, 50.
[20] Cipriano, A unidade da Igreja Católica, 7.


quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Dia 8 de Setembro: Natividade da Mãe de Deus


SERMÃO DO NASCIMENTO DA VIRGEM MARIA DEBAIXO DA INVOCAÇÃO DE N. SENHORA DA LUZ, TÍTULO DA IGREJA E COLÉGIO DA COMPANHIA DE JESUS,
NA CIDADE DE S. LUÍS DO MARANHÃO. ANO DE 1657

De qua natus est Jesus.[1]

I

Por que no dia do nascimento da Virgem nos propõe a Igreja o Evangelho do nascimento de Cristo? O sol nasce duas vezes; quando aparece a luz e quando aparece o astro. Desse modo é que se deve interpretar o que dizem os evangelistas e o Gênesis. Quem é o sol duas vezes nascido? É Cristo, que nasceu quando nasceu Maria em Nazaré, e quando ele próprio nasceu em Belém.

Celebramos hoje o nascimento; mas que nascimento celebramos? Se o perguntarmos à Igreja, responde que o nascimento de Maria; se consultarmos o Evangelho, lemos nele o nascimento de Jesus: De qua natus est Jesus. Assim temos encontrados nas mesmas palavras que propus, o texto como mistério, o tema com o sermão, e um nascimento com outro. Se a Igreja celebrara neste dia o nascimento glorioso de Cristo, muito acomodado Evangelho nos mandava ler; mas o dia e o nascimento que festejamos não é o do Filho, é o da Mãe. Pois se ainda hoje nasce a Mãe, como nos mostra já a Igreja e o Evangelho não a Mãe, senão o Filho nascido: De qua natus est Jesus? Só no dia de Nossa Senhora da Luz se pudera responder cabalmente a esta dúvida. O sol, se bem advertirdes, tem dois nascimentos: um nascimento com que nasce quando nasce, e outro nascimento com que nasce antes de nascer. Aquela primeira luz da manhã que apaga ou acende as sombras da noite, cuja luz é? E luz do sol. E esse sol então está já nascido? Não e sim. Não, porque ainda não está nascido em si mesmo. Sim, porque já está nascido na sua luz. De sorte que naturalmente vêem os nossos olhos ao sol duas vezes nascido: nascido quando nasce, e nascido antes de nascer.

Grande prova temos desta filosofia na mesma história evangélica, e é um dos mais aparentes encontros que se acham em toda ela. Partiram as Marias ao sepulcro na manhã do terceiro dia, e referindo o evangelista, S. Marcos a hora a que chega­ram, diz assim: Valde mane una subbatorum veniunt ad monumentum orto jam sole: Ao domingo muito de madrugada chegaram ao sepulcro sendo já o sol nascido (Mc. 16, 2). Notável dizer! Se era já o sol nascido: Orto jam sole, como era muito de madrugada: Valde mane? E se era muito de madrugada; Valde mane, como era já o sol nascido: Orto jam sole? Tudo era e tudo podia ser, diz Santo Agostinho, porque era o sol nascido antes de nascer.[2] Ora vede. O tempo em que vieram as Marias ao sepulcro era muito de madrugada: Valde mane, diz S. Marcos; Valde diluculo, diz S. Lucas (Lc. 24, 2). Era muito de madrugada: Valde mane? Logo já havia alguma luz que isso quer dizer diluculo. Havia luz? Logo, já o sol estava nascido: Orto jam sole. Provo a conseqüência, porque o sol, como dizíamos, tem dois nascimentos: um nascimento quando vem arraiando aquela primeira luz da manhã a que chamamos aurora; outro nascimento quando o sol descobre, ou acaba de desaparecer em si mesmo. E como o sol não só nasce quando nasce em si mesmo, senão também quando nasce na sua luz, por isso disse o evangelista com toda a verdade, que era de madrugada e que era o sol nascido. Nenhuma destas palavras é minha; todas são da glosa de Lirano seguindo a Santo Agostinho: Valde mane, orto jam sole: Sol enim potest oriri dupliciter: uno modo perfecte, quando primo egreditur et apparet super terram; alio modo, quando lux ejus incipit apparere, scilicet in aurora, et sic accipitur hic ortus solis.[3] Não o podia dizer mais em português. De maneira que àquela primeira luz com que se rompem as trevas da noite, chamou S. Marcos nascimento do sol, porque em todo o rigor da verdade evangélica, não só nasce o sol quando nasce em si mesmo, senão quando nasce na sua luz. Um nascimento do sol é quando nasce em si mesmo e aparece sobre a terra: Quando primo egreditur et apparet super terram; o outro nascimento é antes de nascer em si mesmo, quando nasce e aparece a sua luz: Quando lux ejus incipit apparere. É o que estamos vendo neste dia, e o que nos está pregando a Igreja neste Evangelho. O dia mostra-nos nascida a luz, o Evangelho mostra-nos nascido o sol, e tudo é. Não é o dia em que o sol apareceu nascido sobre a terra: Quando primo egreditur et apparet super terram, mas é o dia em que aparece nascido na luz da sua aurora: Quando lux ejus incipit apparere, scilicet in aurora: porque, se o sol não está ainda nascido em si mesmo, já está nascido na luz de que há de nascer: De qua natus est Jesus.

Estava dito. Mas por que parecerá novidade dar dois nascimentos e dois dias de nascimentos a Cristo, saibam os curiosos que não é novidade nova senão mui antiga, e uma das mais bem retratadas verdades que o Criador do mundo nos pintou no princípio dele. No primeiro dia do mundo criou Deus a luz, no quarto dia criou o sol. Sobre estes dois dias e estas duas criações há grande batalha entre os doutores, porque se o sol é a fonte da luz, que luz é esta que foi criada antes do sol? Ou é a mesma luz do sol, ou é outra luz diferente? Se é a mesma, por que não foi criada no mesmo dia? E se é diferente, que luz é, ou que luz pode haver diferente da luz do sol? Santo Tomás, e com ele o sentir mais comum dos teólogos, resolve que a luz que Deus criou o primeiro dia foi a mesma luz de que formou o sol ao dia quarto. De modo que em ambos estes dias e em ambas estas criações foi criado o sol. No primeiro dia foi criado o sol informe; no quarto dia foi criado o sol formado. São os termos de que usa Santo Tomás. No primeiro dia foi criado o sol informe, porque foi criado em forma de luz; no quarto dia foi criado o sol formado, porque foi criado em forma de sol.[4] Em conclusão, que entre todas as criaturas só o sol teve dois dias de nascimento: o primeiro dia e o quarto dia. O quarto dia em que nasceu em si mesmo, e o primeiro em que nasceu na sua luz. O quarto dia em que nasceu sol formado, e o primeiro em que nasceu na luz de que se formou. Pode haver propriedade mais pró­pria? Agora pergunto eu, se alguém me não entendeu ainda: quem é este sol duas vezes nascido? E quem é esta luz de que se formou este sol? O sol é Jesus, a luz é Maria, diz Alberto Magno. E não era necessário que ele o dissesse. Assim como o sol nasceu duas vezes, e teve dois dias de nascimento; assim como o sol nasceu uma vez quando nascido e outra antes de nascer; assim como o sol uma vez nasceu em si mesmo, e outra na sua luz; assim, nem mais nem menos, o sol Divino, Cristo, nasceu duas vezes e teve dois dias de nascimento. Um dia em que nasceu em Belém, outro em que nasceu em Nazaré. Um dia em que nasceu quando nascido, que foi em vinte e cinco de dezembro, e outro dia em que nasceu antes de nascer, que foi neste venturoso dia. Um dia em que nasceu de sua Mãe, outro dia em que nasceu com ela. Um dia em que nasceu em si mesmo, outro dia em que nasceu naquela de quem nasceu: De qua natus est Jesus.

Temos introduzido e concordado o Evangelho, que não é a menor dificuldade deste dia. Para satisfazermos à segunda obrigação, que não é senão a primeira, peça­mos à Senhora da Luz nos comunique um raio da sua. Ave Maria.

II

Razões por que devemos festejar este dia antes por nascimento da luz que por nascimento do sol. Cristo sol de justiça, e a Senhora da Luz, Mãe de misericórdia.

De qua natus est Jesus. Suposto que temos neste natus do Evangelho dois nascidos, e nesse nascimento dois nascimentos: o nascimento da luz, Maria, nascida em si mesma, e o nascimento do sol, Cristo, nascido na sua luz, qual destes nasci­mentos faz mais alegre este dia? E por qual deles o devemos mais festejar? Por dia do nascimento da luz, ou por dia do nascimento do sol? Com licença do mesmo sol, ou com lisonja sua, digo que por dia do nascimento da luz. E por quê? Não por uma razão, nem por duas, senão por muitas. Só quatro apontarei, porque desejo ser bre­ve. Primeira razão: porque a luz é mais privilegiada que o sol. Segunda: porque é mais benigna. Terceira: porque é mais universal. Quarta: porque é mais apressada para nosso bem. Por todos estes títulos é mais para festejar este dia por dia do nasci­mento da luz, que por dia, ou por véspera, do nascimento do sol.

Mas porque este sol e esta luz, entre os quais havemos de fazer a comparação, parecem extremos incomparáveis, como verdadeiramente é incomparável Cristo sobre todas as puras criaturas, entrando também neste número sua mesma mãe, antes que eu comece a me desempenhar deste grande assunto, ou a empenhar-me nele, declaro que em tudo o que disser, procede a comparação entre Cristo como Sol de justiça, e a Senhora da Luz, como Mãe de misericórdia, e que assim como os efeitos da luz se referem à primeira fonte dela, que é o sol, assim todos os que obra a Senhora em nosso favor, são nascidos e derivados do mesmo Cristo, cuja bondade e providência ordenou que todos passassem e se nos comunicassem por mão de sua Mãe, como advogada e medianeira nossa, e dispensadora universal de suas graças. Assim o supõe com S. Bernardo a mais pia e bem recebida teologia: Nihil Deus nos habere voluit, quod per manus Mariae non transisset.[5] Isto posto:

III

Primeira razão: a luz é mais privilegiada que o sol. A luz, e não o sol, é a chave que abre as portas do dia. O dia é filho da luz e não do sol. O papel importan­te da luz na criação do mundo. O nascimento da Virgem e a criação da luz.

Começando pelo primeiro título, de ser a luz mais privilegiada, digo que é mais privilegiada a luz que o sol, porque o dia, que é a vida e a formosura do mundo, não o faz o nascimento do sol, senão o nascimento da luz. É advertência de Santo Ambrósio, e advertência que quis o grande doutor que soubéssemos que era sua: Advertimus quod lucis ortus, antequam solis, diem videatur aperire: Tenho adverti­do, diz Santo Ambrósio, que o que primeiro abre e faz o dia, é o nascimento da luz, e não o do 501.[6] Está esta grande máquina e variedade do universo coberta de trevas, está o mundo todo fechado no cárcere da noite, e qual é a chave que abre as portas ao dia? O sol? Não, senão a luz, porque ao aparecer do sol, já o mundo está patente e descoberto: Diem sol clarificat, lux facit: O sol faz o dia mais claro, mas a luz é a que faz o dia. E se não, vede, diz o santo: Frequenter coelum nubibus texitur, ut sol tegatur, nec ullus radius ejus appareat; lux tamen diem demonstrat: Quantas vezes acontece forrar-se o céu de nuvens espessas, com que não aparece o sol, nem o menor de seus raios, e contudo, ainda que não vemos o sol, vemos o dia. Por quê? Porque no-lo mostra a luz. Bem se segue logo que o dia, tão necessário e tão provei­toso ao mundo, é filho da luz, e não filho do sol.

Parece que tem alguma coisa de sofístico este discurso de Santo Ambrósio, por­que sendo a luz efeito do sol, quem faz a luz faz o dia. Assim parece, mas não é assim. E quero dar uma prova valente a uma razão que parece fraca. Noutras ocasiões decla­ramos a Escritura com o santo; agora declararemos o santo com a Escritura. Diz Santo Ambrósio que o dia é filho da luz, e não do sol. Provo e pergunto: O sol, em que dia o criou Deus? Diz a Sagrada Escritura que criou Deus o sol ao dia quarto: Luminare majus, ut praeesset diei; et factum est dies quartus (Gên. 1, 16, 19). Deus criou o sol ao dia quarto? Logo, antes de haver sol já havia dias. Antes de haver sol já havia dias? Logo o dia não é filho do sol. Pois de quem é filho? É filho da luz. O mesmo texto sagrado: In principio creavit Deus caelum et terram (Gên.1, U: No princípio, antes de haver dia nem noite, nem tempo, criou Deus o céu e a terra. Et tenebrae erant super faciem abyssi: E o mundo todo estava sepultado em um abismo de trevas. Dixitque Deus, fiat lux, et facta est lux: Disse Deus, faça-se a luz, e foi feita a luz. Appellavitque lucem diem, et tenebras noctem. Et factus est dies unus: E chamou Deus à luz dia, e às trevas noite, deste modo se fez o primeiro dia que houve no mundo (Gên.1, 2, 3, 5). De maneira, como bem dizia Santo Ambrósio, que o dia é filho da luz e não do sol; ao nascimento da luz e não ao do sol deve o mundo o benefício do dia. O tempo ditosíssimo da lei da graça em que estamos é odiado mundo; o tempo da lei da natureza e da lei escrita, que já passou, foi a noite. Assim o diz S. Paulo: Nox praecessit, dies auteum appropinquavit.[7] E quem foi a aurora que amanheceu ao mundo este dia tão alegre, tão salutífero e tão vital, senão aquela luz divina? O sol fez o dia mais claro, mas a luz, a que rompeu as trevas, a luz foi a que venceu e despojou a noite, a luz foi a que fez o dia: Diem sol clarificat, lux facit. Grande privilégio da luz sobre o sol, que ela e não ele, ou ao menos, que ela primeiro que ele, seja a autora do dia.

Mas eu, sem me sair do mesmo passo, ainda hei de dizer outro privilégio maior da mesma luz. Criou Deus a luz três dias antes de criar o sol. Tanto que houve sol no mundo, logo houve também olhos que o vissem e que gozassem de seus resplendores, porque o sol foi criado ao quarto dia, e as aves e os peixes ao quinto; os animais da terra e os homens ao sexto. De sorte que, como notou S. Basilio, todos os três dias em que a luz esteve criada antes da criação do sol, não havia olhos no mundo.[8] Pois se não havia olhos no mundo, para que criou Deus a luz? Que crie Deus o sol ao quarto dia, bem está; porque no quinto e no sexto dia havia de criar os olhos de todos os viventes; mas se no segundo, no terceiro e no quarto dia não houve nem havia de haver olhos, por que cria Deus a luz no primeiro? Porque o sol criou-o Deus para os olhos dos homens e dos animais; a luz criou-a Deus para os seus olhos. E assim foi Fiat lux; et facta est lux, et vidit Deus lucem quod esset bona (Gên. 1, 4): Disse Deus: Faça-se a luz, e fez-se a luz; e no mesmo ponto que nasceu e apareceu a luz, logo foi o emprego e suspensão dos olhos de Deus: Vidit Deus lucem. Digo emprego e suspensão porque quando Deus criou a luz, já estava criado o céu, a terra, os elementos, os anjos, e nada disto levou após si os olhos de Deus, senão a luz. Ela encheu os olhos de Deus de maneira que sendo os olhos de Deus imensos, parece que não deixou neles lugar para os pôr noutra coisa. Assim era a luz criada para os olhos de Deus, como o sol para os dos homens e dos animais.

Não cuideis que digo injúrias ao Sol Encamado, que assim quis Ele que fosse. Aparece no mundo o sol encamado, Cristo, e que olhos o viram nascido? Olhos de homens e olhos de animais. Para o verem nascido olhos de animais, ele mesmo foi buscar os animais a um presépio, e para o verem nascido olhos de homens, ele os mandou buscar por uma estrela entre os reis, e por um anjo entre os pastores. Os ho­mens, pelo pecado, estavam convertidos em animais: Homo, cum in honore esset non intellexit; comparatus est jumentis.[9] Por isso se mostra o sol nascido aos olhos dos homens e dos animais porque nascia para fazer de animais homens. Porém a luz, como nascia para Mãe de Deus, oculta-se a todos os olhos criados, e só nasce manifesta aos divinos: Vidit Deus lucem. Os olhos de Deus foram os que festejaram o nascimento desta soberana luz, e festejaram-na aqueles três dias em que não houve sol, nem outros olhos, porque tomou cada pessoa da Santíssima Trindade um dia da festa por sua conta: Ipse est enfim lux, quae primam distinxit dierum nostrorum trinitatem, disse S. Dioní­sio Areopagita.[10] Os olhos do Padre festejaram o nascimento da luz o primeiro dia: Et vidit Deus lucem, quod esset bona: E viu Deus Padre que a luz era boa para filha. Os olhos do Filho festejaram o nascimento da luz o segundo dia: Et vidit Deus lucem, quod esset bona: E viu Deus Filho que a luz era boa para Mãe. Os olhos do Espírito Santo festejaram o nascimento da luz o terceiro dia: Et vidit Deus lucem quod esset bona: E viu Deus Espírito Santo que a luz era boa para Esposa. Assim festejou toda a Santíssima Trindade o nascimento daquela soberana luz, e assim o devemos festejar nós. Ponde os olhos, cristãos, naquela luz, e pedi-lhe que os ponha em vós e vereis como é boa para tudo: Vidit lucem quod esset bona. Boa para a consolação, se estiveres afligido; boa para o remédio, se estiveres necessitado; boa para a saúde, se estiveres enfermo; boa para a vitória, se estiveres tentado; e se estiveres caído e fora da graça de Deus, boa, e só ela boa, para vos conciliar com Ele. Tão cheia de privilégios de Deus nasce hoje esta luz de quem Ele há de nascer! De qua natus est Jesus.

IV

Segunda razão: a luz é mais benigna que o sol. O sol e a nuvem que guiava os filhos de Israel pelo deserto. Os rigores do sol da justiça e as benignidades da luz. O nascimento de Maria é a passagem do sol do signo do Leão para o signo da Virgem. Maria e a sarça ardente do deserto. S. João, o novo signo celeste e a humanização do sol.

O segundo título por que se deve mais festejar o dia deste nascimento é por ser a luz mais benigna. É a luz mais benigna que o sol, porque o sol alumia, mas abrasa; a luz alumia e não ofende. Quereis ver a diferença da luz ao sol? Olhai para o mesmo sol e para a mesma luz de que ele nasce, a aurora. A aurora é o riso do céu, a alegria dos campos, a respiração das flores, a harmonia das aves, a vida e alento do mundo. Come­ça a sair e a crescer o sol, eis o gesto agradável do mundo e a composição da mesma natureza toda mudada. O céu acende-se, os campos secam-se, as flores murcham-se, as aves emudecem, os animais buscam as covas, os homens as sombras. E se Deus não cortara a carreira ao sol, com a interposição da noite, fervera e abrasara-se a terra, arderam as plantas, secaram-se os rios, sumiram-se as fontes, e foram verdadeiros e não fabulosos os incêndios de Faetonte. A razão natural desta diferença é porque o sol, como dizem os filósofos, ou verdadeiramente é fogo, ou de natureza mui semelhante ao fogo, elemento terrível, bravo, indômito, abrasador, executivo, e consumidor de tudo. Pelo contrário, a luz em sua pureza, é uma qualidade branda, suave, amiga, en­fim, criada para companheira e instrumento da vista, sem ofensa dos olhos, que são em toda a organização do corpo humano a parte mais humana, mais delicada e mais mimo­sa. Filósofos houve que pela sutileza e facilidade da luz, chegaram a cuidar que era espírito e não corpo. Mas porque a filosofia humana ainda não tem alcançado perfeita­mente a diferença da luz ao sol, valhamo-nos da ciência dos anjos.

Aquele anjo visível que guiava os filhos de Israel pelo deserto, diz o texto, que marchava com duas colunas de prodigiosa grandeza, uma de nuvem de dia, e outra de fogo de noite: Per diem in columna nubis, per noctem in columna ignis (Êx.13, 21). E por que e para que levava o anjo estas duas colunas de nuvem e fogo? A de nuvem, para reparo do sol, a de fogo, para continuação da luz. Tanto que anoitecia, acendia o anjo a coluna de fogo sobre os arraiais, para que tivessem sempre luz. E tanto que amanhecia, atravessava o anjo a coluna de nuvem, para que ficassem reparados e defendidos do sol. De maneira que todo o cuidado do anjo sobre os seus encomendados consistia em dois pontos: o primeiro, que nunca lhes tocasse o sol; o segundo, que nunca lhes faltasse a luz. Tão benignas qualidades reconhecia o anjo na luz, e tão rigorosas no sol.

Estas são as propriedades rigorosas e benignas do sol e da luz natural. E as mesmas, se bem o considerarmos, acharemos no Sol e na Luz divina. Cristo é sol, mas sol de justiça, como lhe chamou o profeta: Sol justitiae (Mal. 4, 2). E que muito que no sol haja raios e na justiça rigores? Todos os rigores que tem obrado no mundo o sol natural, tantas secas, tantas esterilidades, tantas sedes, tantas fomes, tantas doenças, tantas pestes, tantas mortandades, tudo foram execuções do sol de justiça, o qual as fez ainda maiores. O sol material nunca queimou cidades, e o sol de justiça queimou e abrasou em um dia as cinco cidades de Pentápolis inteiras, sem deixar homem à vida, nem dos mesmos edifícios e pedras mais que as cinzas. Tais são os rigores daquele sol divino. Mas a benignidade da luz que hoje nasce, e de que ele nasceu, como a poderei eu explicar? Muitas e grandes coisas pudera dizer desta soberana benignidade, mas direi só uma que vale por todas. É tão benigna aquela divina luz, que sendo tão rigorosos e tão terríveis os raios do divino sol, ela só basta para os abrandar e fazer também benignos.

Por que vos parece que nasce a Virgem Maria em tal dia como hoje? Se o dia do nascimento de Cristo foi misterioso, e misterioso o dia do nascimento do Batista, por ser o precursor de Cristo, quanto mais odiada Mãe de Cristo? Pois que mistério tem nascer a Senhora neste dia? Muito grande mistério. O mistério do dia do nascimento de Cristo, como notou Santo Agostinho, foi porque naquele tempo volta o sol para nós, e começam os dias a crescer. O mistério do dia do nascimento do Batista foi porque naquele tempo se aparta o sol de nós, e começam os dias a diminuir. E o mistério do dia do nascimento da Senhora é porque neste tempo passa o sol do signo do Leão para o signo da Virgem, e começa o mesmo sol a abrandar. O caminho do sol é pelos doze signos celestes, em que tem diferentes efeitos, conforme a constelação e qualidades de cada um. Quando o sol anda no signo de Leão, como se tomara a natureza daquele animal colérico e assanhado, tais são os seus efeitos: calores, securas, enfermidades malignas, tresvarios, sangue, mor­tes. Porém tanto que o sol passa do signo do Leão ao signo de Virgem, já o Leão começa a abrandar, já vai manso, já vai pacífico, já vai cordeiro. O mesmo sucedeu aos rigores do nosso sol. Lede o Testamento Velho, e achareis que Deus antigamente afogava exércitos, queimava cidades, alagava mundos, despovoava paraísos. E hoje, sendo os pecados dig­nos de maior castigo pela circunstância do tempo, da fé e dos benefícios, não se vêem em Deus semelhantes rigores. Pois por que, se Deus é o mesmo, e a sua justiça a mesma? Porque então estava o sol no signo do Leão; agora está no signo de Virgem. Como o sol entrou no signo de Virgem, logo aquela benigna luz lhe amansou os rigores, lhe embargou as execuções, e lhe temperou de tal maneira os raios, que ao mesmo fogo abrasador de que eram compostos, lhe tirou as atividades com que queimava e só lhe deixou os resplendo­res com que luzia. Grande caso, mas provado!

Vê Moisés no deserto uma sarça que ardia em fogo, e não se queimava (Êx. 3, 3). Pasma da visão, parte a vê-la de mais perto, e quanto mais caminha e vê, tanto mais pasma. – Ser fogo, o que estou vendo, não há dúvida; aquela luz intensa, aque­las chamas vivas, aquelas labaredas ardentes, de fogo são; mas a sarça não se conso­me, a sarça está inteira, a sarça está verde. Que maravilha é esta? Grande maravilha para quem não conhecia o fogo nem a sarça, mas para quem sabe que o fogo era Deus, e a sarça Maria, ainda era maravilha maior, ou não era maravilha. O fogo era Deus que vinha libertar o povo. Assim diz o texto. A sarça era Maria, em quem Deus tomou forma visível, quando veio libertar o gênero humano. Assim o diz S. Jerôni­mo, Santo Atanásio, S. Basílio, e a mesma Igreja.[11] Como o fogo estava na sarça, como Deus estava em Maria, já o seu fogo não tinha atividades para queimar. Luzir sim, resplender sim, que são efeitos de luz; mas queimar, abrasar, consumir, que são efeitos de fogo, isso não, que já lhos tirou Maria. Já Maria despontou os raios do sol; por isso luzem, e não ferem, ardem e não queimam, resplandecem e não abrasam. Parece-vos maravilha que assim abrandasse aquela benigna luz os rigores do sol? Parece-vos grande maravilha que assim lhe apagasse o fogoso e abrasado, e lhe deixasse só o resplandescente e luminoso? Pois ainda fez mais.

Não só abrandou, ou apagou no sol os rigores do fogo, senão também os rigores da luz. O sol não é só rigoroso e terrível no fogo com que abrasa, senão também na luz com quê alumia. Em aparecendo no Oriente os primeiros raios do sol, como se foram archeiros da guarda do grande rei dos planetas, vereis como vão diante fazendo praça, e como em um momento alimpam o campo do céu, sem guardar respeito nem perdoar a coisa luzente. O vulgo das estrelas, que andavam como espalhadas na confiança da noite, as pequeninas somem-se, as maiores retiram-se, todas fogem, todas, se escon­dem, sem haver nenhuma, por maior luzeiro que seja, que se atreva a parar nem a aparecer diante do sol descoberto. Vedes esta majestade severa? Vedes este rigor da luz do sol, com que nada lhe pára, com que tudo escurece em sua presença? Ora, deixai-o vir ao signo de Virgem, e vereis como essa mesma luz fica benigna e tratável.

Viu S. João no Apocalipse um novo signo celeste: Signum magnum apparuit in caelo (Apc. 12, 1). Era uma mulher vestida do sol, calçada da lua e coroada de estrelas: Mulier amicta sole, luna sub pedibus ejus, et in capite ejus corona stellarum duodecim (Ibid.). Não reparo no sol e na lua; no sol e nas estrelas reparo. Calçada da lua, e vestida de sol, bem pode ser, porque diante do sol também aparece a lua. Mas vestida de sol, e coroada de estrelas? Sole estrelas juntamente? Não é possível, como acabamos de ver. Pois se na presença do sol fogem e desaparecem as estrelas, e o sol estava presente, e tão presente no vestido da mesma mulher, como apareciam nem podiam aparecer as estrelas da coroa? Aí vereis quão mudado está o sol depois que vestiu uma mulher, ou depois que uma mulher o vestiu a ele! [12]Este signo em que o sol apareceu a S. João, era o signo de Virgem: Signum magnum apparuit in caelo: Mulier amicta sole. E depois que o sol entrou no signo de Virgem, depois que o sol se humanou nas entranhas da Virgem Maria, logo os seus raios não foram temerosos, logo a sua majestade não foi terrível, logo a grandeza de soberania da sua mesma luz foi tão benigna que já não fogem nem se escondem dela as estrelas, antes lhes consente que possam luzir e brilhar em sua presença. Assim amansou aquela luz divina o sol, noutro tempo tão severo, assim humanou a intolerável grandeza de sua luz, assim temperou e quebrou a força de seus raios. Para que vejamos quanto se deve alegrar neste dia, e quanto deve festejar o nascimento desta benigna luz o gênero humano todo, e mais aqueles que mais têm ofendido o Sol. Quantas vezes havia de ter o Sol de justiça abrasado o mundo? Quantas havia de ter fulminado com os seus raios as rebeldias de nossas ingratidões, e as abomi­nações de nossos vícios, se não fora pela benignidade daquela luz? Para isso nasceu e para isso nasce hoje: para o fazer humano antes de nascer, e para lhe atar as mãos e os braços depois de nascido: De qua natus est Jesus.

V

Terceira razão: a luz é mais universal; o sol é limitado no tempo e no lugar. Diversidades entre o sol material e o sol de justiça. O sol de justiça e as trevas do Egito. O papa Inocêncio III e a comparação do Cântico dos Cânticos.

O terceiro título, por que se deve mais festejar o dia deste nascimento, é por ser a luz mais universal. É a luz mais universal que o sol porque o sol nunca alumia mais que meio mundo e meio tempo; a luz alumia em todo o tempo e a todo o mundo. O sol nunca alumia mais que meio mundo, porque quando amanhece para nós, anoitece para os nossos antípodas, e quando amanhece aos antípodas, anoitece para nós. E nunca alumia mais que meio tempo, porque das vinte e quatro horas do dia natural as doze assiste em um hemisfério, as doze no outro. Não assim a luz. A luz não tem limitação de tempo nem de lugar: sempre alumia, e sempre em toda parte, e sempre a todos. Onde está o sol, alumia com o sol, onde está a lua, alumia com a lua, e onde não há sol nem lua, alumia com as estrelas, mas sempre alumia. De sorte que não há parte do mundo, nem movimento de tempo, ou seja dia ou seja noite, em que, maior ou menor, não haja sempre luz. Tal foi a disposição de Deus no princípio do mundo. Ao sol limitou-lhe Deus a jurisdição no tempo e no lugar; à luz não lhe deu jurisdição limitada, senão absoluta para todo o lugar e para todo o tempo. Ao sol limitou-lhe Deus tempo, porque mandou que alumiasse o dia: Lumi­nare majus ut praeesset diei (Gên. 1, 16); e limitou-lhe lugar, porque só quis que andasse dentro dos trópicos de Câncer e Capricórnio, e que deles não saísse. Porém à luz, não lhe limitou tempo, porque mandou que alumiasse de dia por meio do sol, e de noite por meio da lua e das estrelas: Luminare majus ut praeesset diei; luminare minus ut praeesset nocti, et stellas (ibid.). E não lhe pôs limitação de lugar, porque quis que alumiasse não só dentro dos trópicos, senão fora deles, como faz a luz, que dentro dos trópicos alumia por meio do sol e da lua, e fora dos trópicos por meio das estrelas, para que por este modo, de dia e de noite, no claro e no escuro, na presença e na ausência do sol, sempre houvesse luz como há.

Esta mesma diferença se acha na verdadeira luz e no verdadeiro sol, Cristo e sua mãe. Cristo é sol do mundo, mas sol que tem certo hemisfério, sol que tem seus antípodas, sol que quando nasce, nasce para alguns e não para todos. Assim o disse Deus por boca do profeta Malaquias: Orietur vobis timentibus nomem meum sol justitiae (Mal. 4, 2): Nascerá o sol de justiça para vós, os que temeis o meu nome. – Fala o profeta não da graça da redenção, ou suficiente, que é universal para todos, senão da santificante e eficaz, de que muitos, por sua culpa, são excluídos, e por isso diz que o sol de justiça não nasce para todos, senão só para aqueles que o temem. Todo este mundo, tomado nesta consideração, se divide em dois he­misférios: um hemisfério dos que temem a Deus, outro hemisfério dos que o não temem. No hemisfério dos que temem a Deus, só nasce o sol da justiça, e só para eles há dia; só eles são alumiados. No hemisfério dos que não temem a Deus, nunca jamais amanhece o sol; sempre há perpétua noite, todos estão em trevas e às escuras. Neste sentido chamou o profeta a este sol, sol de justiça: Sol justitiae. O sol material, se bem se considera, é sol sem justiça, porque trata a todos pela mesma forma, e tanto amanhece para os bons como para os maus: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos (Mt. 5, 45). E possível que tanto sol há de haver para o bom, como para o mau? Para o cristão, como para o infiel? Para o que adora a Deus, como para o que adora o ídolo? Tanto há de amanhecer o sol para o diligente, como para o pregui­çoso? Tanto para o que lhe abre a janela, como para o que lha fecha? Tanto para o lavrador que o espera, como para o ladrão que o aborrece? Notável injustiça do sol material! Não assim o Sol da Justiça É Sol da Justiça porque trata a cada um conforme o que merece. Só para os bons amanhece, e para os maus esconde-se; só alumia aos que o temem, e aos que o não temem sempre os tem às escuras.

Parece coisa dificultosa que no mesmo hemisfério, na mesma cidade, e talvez na mesma casa estejam uns alumiados e outros às escuras; mas assim passa, e já isto se viu com os olhos no mundo algum dia. Uma das pragas do Egito foram as trevas. E descre­vendo-as, o texto diz assim: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti. Nemo vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat; ubicumque autem habitabant filii Israel, lux erat (Êx.10, 22 s): Houve em toda a terra do Egito umas trevas tão horríveis, que nenhum egípcio via ao outro, e nenhum se podia mover do lugar onde estava; mas onde habitavam os hebreus, no mesmo tempo havia luz. – Brava maravilha! Em toda a terra do Egito havia umas casas que só eram habitadas de egípcios, outras que eram habitadas de hebreus e de egípcios juntamente. Nas que eram habitadas de egípcios, todos estavam em trevas; nas que eram habitadas de hebreus, todos estavam em luz; nas que eram habitadas de hebreus e de egípcios juntamente, os hebreus estavam alumiados, e os egípcios às escuras. Isto que fez no Egito a vara de Moisés, faz em todo mundo a vara do Sol de Justiça. Muitas casas há no mundo em que todos são pecadores; algumas casas haverá em que todos sejam justos; outras há, e é o mais ordinário, em que uns são justos e outros pecadores. E com toda esta diversidade de casas e de homens, executa a varado Sol de Justiça o que a de Moisés no Egito. Na casa onde todos são justos, todos estão em luz; na casa onde todos são pecadores, todos estão em trevas; na casa onde há pecadores e justos, os justos estão alumiados e os pecadores às escuras. De sorte que o Solde Justiça, nesta consideração em que falamos, é sol tão particular e tão parcial, que não só no mundo tem diferentes hemisférios, mas até na mesma casa tem antípodas.

Não assim aquela luz que hoje nasce, que para todos e para todo o tempo, e para todo lugar é sempre luz. Viramos anjos nascer hoje aquela formosa luz, e admirados de sua beleza disseram assim: Quae est ista quae progreditur quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut sol? Quem é esta que nasce e aparece no mundo, diligente como a aurora, formosa como a lua, escolhida como o sol (Cânt. 6,9)?– A aurora, à lua e ao sol comparam os anjos esta Senhora, e parece que dizem menos em três comparações do que diriam em uma Se disseram só que era semelhante ao sol, diriam mais, porque de sol à lua é minguar, de sol à aurora é descer. Pois porque razão, que não podia ser sem grande razão, uns espíritos tão bem entendidos como os anjos, ajustam umas semelhanças tão desiguais, e comparam a Senhora quando nasce à aurora, à lua, e ao sol juntamente? Deu no mistério advertidamente o papa Inocêncio III. Comparam os anjos a Maria quando nasce, juntamente ao sol, à lua e à aurora, para mostrar que aquela Senhora é luz de todos os tempos. Todos os tempos ou são dia ou são noite, ou são aquela hora de luz duvidosa que há entre a noite e o dia Ao dia alumia o sol, à noite alumia a lua, à hora entre noite e dia, alumia a aurora. Pois por isso chamam os anjos juntamente à Senhora aurora, lua e sol, para mostrarem que é luz que alumia em todos os tempos. Luz que alumia de dia, como sol; luz que alumia de noite, como lua; luz que alumia quando não é noite nem dia, como aurora. E que são ou que significam estes três tempos? Ouvi agora a Inocêncio: Luna lucet in nocte, aurora in diluculo, sol in die. Nox autem est culpa, diluculum poenitentia, dies gratia: A lua alumia de noite, e a noite é a culpa; a aurora alumia de madrugada, e a madrugada é a penitência; o sol alumia de dia, e o dia é a graça –E para todos estes tempos, e para todos estes estados é Maria luz universal. Luz para os justos que estão em graça, luz para os pecadores que estão na culpa, e luz para os penitentes que querem passar da culpa à graça: Qui ergo jacet in nocte culpae, respiciat lanam, deprecetur Mariam; qui surgit ad diluculum poenitentiae, respiciat auroram, deprecetur Mariam; qui vivit in die gratiae, respiciat solem, deprecetur Mariam: Pelo que, conclui exortando o gran­de pontífice, se sois pecador, se estais na noite do pecado, olhai para a lua, fazei oração a Maria para que vos alumie e vos tire da noite do pecado, para a madrugada da penitência Se sois penitente, estais na madrugada do arrependimento, ponde os olhos na aurora, fazei ora­ção a Maria, para que vos alumie e vos passe da madrugada da penitência ao dia da graça. Se sois justo, se estais no dia da graça, ponde os olhos no sol, fazei oração a Maria, para que vos sustente e vos aumente nesse dia, porque desse dia ditoso não há para onde passar. – Assim alumia aquela soberana luz universalmente a todos, sem exceção de tempo nem de estado, o Sol de justiça alumia só aos que o temem: Timentibus nomen meum; mas a Luz de misericór­dia alumia aos que o temem, porque o temem, e aos que o não temem, para que o temam, e a todos alumia. O Sol de justiça nasce só para os justos, mas a Luz de misericórdia nasce para os justos e mais para os pecadores. E por este modo é mais universal para todos a luz que hoje nasce, do que o mesmo sol que dela nasceu: De qua natus est Jesus.

VI

Quarta e última razão: a diligência de Maria. Em Ganó, ainda não era chegada a hora de Jesus e já era chegada a hora de Maria. A presteza de Cristo e de Maria declaradas por Davi e S. João. Maria e o sacramento do batismo. A causa da perdi­ção das cinco virgens néscias. Admoestação de Habacuc. Maria e a mãe de Jacó.

O quarto e último título por que se deve mais festejar este dia, é por ser a luz mais apressada para nosso bem. Ser mais apressada a luz que o sol, é verdade que vêem os olhos. Parte o sol do oriente e chega ao ocidente em doze horas. Aparece no oriente a luz, e em um instante fere o ocidente oposto, e se dilata e se estende por todos os horizontes, alumiando em um momento o mundo. O sol, como dizem os astrólogos, corre em cada hora trezentas e oitenta mil léguas. Grande correr! Mas toda esta pressa e ligeireza do sol, em comparação da luz, são vagares. O sol faz seu curso em horas, em dias, em anos, em séculos; a luz sempre em um instante. O sol, no inverno, parece que anda mais tardo no amanhecer, e no verão mais diligente, mas nunca se levanta tão cedo o sol, que não madru­gue a luz muito diante dele. Ó luz divina, como vos pareceis nesta diligência à luz natural!

Foram convidados a umas bodas a luz e o sol: Cristo e Maria. Faltou no meio do convite aquele licor que noutra mesa, depois de o sol posto e antes de o sol se pôr, deu matéria a tão grandes mistérios. Quis a piedosa Mãe acudir à falta, falou ao Filho, mas respondeu o senhor tão secamente como se negara sê-lo: Quid mihi et tibi est mulier? Nondum venit hora mea (Jo. 2, 4): Que há de mim para ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora. – Aqui reparo: esta hora não era de fazer bem? Não era de encobrir e acudir a uma falta? Não era de remediar uma necessidade? Pois como responde, Cristo que não era chegada a sua hora? Nondum venit hora mea? E se não era chegada a sua hora, como trata a Senhora do remédio? Era chegada a hora de Maria, e não era chegada a hora de Cristo? Sim, que Maria é luz, e Cristo é sol, e a hora do sol sempre vem depois da hora da luz: Nondum venit hora mea. Ainda não era vinda a hora do sol, e a hora da luz já tinha chegado. Por isso disse Cristo à sua mãe com grande energia: Quid mihi et tibi? Como se dissera: Reparai Senhora na diferença que há de mim a vós na matéria de socorrer aos homens, como agora quereis que eu faça. Vós os socorreis, e eu os socorro; vós lhes acudis, e eu lhes acudo; vós os remediais, e eu os remedeio, mas vós primeiro, e eu depois; vós logo, e eu mais devagar; vós na vossa hora, que é antes da minha, e eu na minha, que é depois da vossa: Nondum venit hora mea. É aquela gloriosa diferença que Santo Anselmo se atreveu a dizer uma vez, e todos depois dele a repetiram tantas: Velocior nonnunquam salus memorato nomine Mariae quam invocato nomine Jesus: Que algumas vezes é mais apressado o remédio, nomeado o nome de Maria que invoca­do o de Jesus. – Algumas vezes, disse o santo, e quisera eu que dissera sempre, ou quase sempre. Vede se tenho razão. Todos os caminhos de Cristo e os de Maria foram para remédio do homem; mas tenho eu notado que são mui diferentes as carroças que este Rei e Rainha do céu escolheram para correr à posta em nosso remédio. Cristo escolheu por carroça o sol, e Maria escolheu a luz. O primeiro viu-o Davi: In sole possuit tabernaculum suum. O segundo viu-o S. João: Et luna sub pedibus ejus.[13] Cá nas cortes da terra vemos o rei e a rainha, quando saem, passearem juntos na mesma carroça; o Rei e a Rainha do céu, por que o não fariam assim? Por que razão não aparece a Rainha do céu na mesma carroça do sol, como seu Filho? Por que divide carroça e escolheu para si a da lua? Eu o direi. A lua é muito mais ligeira que o sol em correr o mundo. O sol corre o mundo pelos signos do zodíaco em um ano; a lua em menos de trinta dias. O sol corre o mundo em um ano, uma só vez; a lua doze vezes, e ainda lhe sobejam dias e horas. E como as mancha­das pias que rodam a carroça da lua são muito mais ligeiras que os cavalos fogosos que tiram pelo carro do sol, por isso Cristo aparece no carro do sol, e Maria no da lua. Não é consideração minha, senão verdade profética, confirmada com o testemu­nho de uma e outra visão, e com os efeitos de ambas. Tomou Cristo para si o carro do sol, e que se seguiu? Exultavit ut gigas ad currendam viam, diz Davi (Sl. 18, 6): Largou o sol as rédeas ao carro, e correu Cristo com passos de gigante. – Tomou Maria para si a carroça da lua, e que se seguiu? Datae sunt mulieri alae duae aqui­lae magnae, ut volaret, diz S. João (Ape. 12, 14): Estando com a lua debaixo dos pés, deram-se a Maria duas asas de águia, para que voasse. – De sorte que Cristo no carro do sol corre com passos de gigante, e Maria na carroça da lua voa com asas de águia. E quanto vai das águias aos gigantes, e das asas aos pés, e do voar ao correr, tanto excede a ligeireza velocíssima com que nos socorre Maria à presteza, posto que grande, com que nos socorre Cristo. Não vos acode primeiro nas vossas causas o advogado que o juiz? Pois Cristo é o juiz, e Maria a advogada.

Mas não deixemos passar sem ponderação aquela advertência do evangelista: Aquilae magnae. Que as asas com que viu a Senhora, não só eram de águia, senão de águia grande. De maneira que Cristo, para correr em nosso remédio com passos mais que de homem, tomou pés de gigante: Exultavit ut gigas; e a Senhora, para correr em nosso remédio com passos mais que de gigante tomou asas de águia: Datae sunt mulieri alae duae aquilae. Mas essas asas não foram de qualquer águia, senão de águia grande: Aquilae magnae, para que a competência ou a vantagem fosse de gigante a gigante. Que coisa é uma águia grande, senão um gigante das aves? Cristo correndo como gigante, mas como gigante dos homens; a Senhora correndo como gigante, mas como gigante das aves. Cristo, como gigante com pés, a Senhora como gigante com asas. Cristo como gigante que corre, a Senhora como gigante que voa. Cristo como gigante da terra, a Senhora como gigante do ar. Mas assim havia de ser para fazer a Senhora em nosso remédio os encarecimentos verdades. O maior encarecimento de acudir com a maior presteza, é acudir pelo ar. Assim o faz a piedosa Virgem. Cristo com passos de gigante acode aos homens a toda a pressa, mas a Senhora com asas de águia acode-lhes pelo ar. Isto mesmo é ser luz, que pelo ar nos vem toda.

E para que de uma vez vejamos a diferença com que esta soberana luz é avantajada ao divino sol na diligência de acudira nosso remédio, consideremo-los juntos e comparemo-los divididos. E que acharemos? Coisa maravilhosa! Acharemos que quando o nosso remédio mais se apressa, é por diligência da luz, e quando alguma vez se dilata, é por tardanças do sol. Veste-se de carne o Verbo nas entranhas da Virgem Maria, e diz o evangelista, que logo, com muita pressa se partiu a Senhora com seu Filho, a livrar o menino Batista do pecado original: Exurgens autem Maria abiit in montana cum festinatione (Lc. 1, 39). Nasce enfim Cristo, cresce, vive, morre, ressuscita, e do mesmo dia da Encarnação a trinta e quatro anos institui o sacramento do Batismo: Baptizantes eos in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti (Mt. 28. 19). O batismo já sabeis que é o remédio do pecado original, que foi o que Cristo principal­mente veio remediar ao mundo, como restaurador das ruínas de Adão. Pois se Cristo veio ao mundo principalmente a remediar o pecado original, e se em chegando ao mundo o foi remediar logo no menino Batista, como agora dilata tantos anos o remédio do mesmo peca­do? Então parte no mesmo instante, e depois dilata-se tanto tempo? Sim. Porque então estava Cristo dentro em sua Mãe: Exurgens Maria; e agora estava fora, e apartado dela. E para remediar os males do gênero humano é mui diferentemente apressado Cristo em si mesmo, ou Cristo em sua Mãe. Cristo em sua Mãe, obra por ela, e ela como luz obra em instante; Cristo fora de sua Mãe, obra por si mesmo, e ele como sol obra em tempo, e em muito tempo. Vede se mostra a experiência o que eu dizia, que quando o nosso remédio mais se apressa, é por diligências daquela divina luz, e da mesma maneira, quando se dilata, ou quando se perde, bem que por culpa nossa, é com tardanças do sol.

Das dez virgens do Evangelho, com desgraça não imaginada, perderam-se cinco, e posto que a causa de sua perdição foi a sua imprudência, a ocasião que teve essa causa foi a tardança dos desposados. Se os desposados não tardaram até a meia-noite, não se apagaram as lâmpadas, e se as lâmpadas se não apagaram, não ficaram excluídas as cinco virgens. Agora pergunto. E qual dos desposados foi o que tardou? O esposo nesta parábola é Cristo; a esposa é Maria. Qual foi logo dos dois o que tardou, se acaso não foram ambos? Foi o esposo ou a esposa? Foi Cristo ou sua Mãe? Não é necessário que busquemos a resposta nos comentadores: o mesmo texto o diz: Moram autem faciente sponso, dormitaverunt omnes, et dormierunt (Mt. 25, 5). E como tardasse o esposo, adormeceram todas e dormiram. – De modo que o que tardou foi o esposo. É verdade que o esposo e a esposa estavam juntos, mas o que tardou, ou o que foi causa da tardança, não foi a esposa, senão o esposo: Moram autem faciente sponso. Atemos agora esta desgraça das virgens com a ventura do Batista. No Batista conseguiu-se o remédio por diligências: mas cujas foram as diligências? Estavam juntos Maria e Cristo, mas as diligências foram de Maria: Exurgens Maria abiit in montana cum festinatione. Nas virgens perdeu-se o remédio, como sempre se perde, por tardanças; mas cujas foram as tardanças? Estavam juntos o esposo e a esposa, mas a tardança foi do esposo: Moram auteur faciente sponso. O divino esposo de nossas almas, é certo que nunca falta nem tarda; nós somos os que lhe faltamos e lhe tardamos. As suas diligências e as de sua Santíssi­ma Mãe, todas nascem da mesma fonte, que é o excessivo amor de nosso remédio; mas é a Senhora por mais agradar e mais se conformar com o desejo do mesmo Cristo, tão solicita, tão cuidadosa, tão diligente em acudir, em socorrer, em remediar aos homens, que talvez, como aconteceu neste caso, as diligências de seu Filho, comparadas com as suas, parecem tardan­ças. Tudo é ser ele sol e ela luz. O sol nunca tarda, ainda quando sai mais tarde, porque quem vem a seu tempo não tarda. Assim o disse o profeta Habacuc falando à letra, não de outrem, senão do mesmo Cristo: Simoram fecerit, expecta ilium, quia veniens veniet, et non tardabit. Se tarda, esperai por ele, porque virá sem dúvida, e não tardará (Hab. 2, 3). – Como não tardará, se já tem tardado e ainda está tardando: Si moram fecerit, non tardabit? São tardanças de sol, que ainda quando parece que tarda, não tarda, porque vem quando deve vir. Mas esse mesmo sol que, regulado com suas obrigações, nunca tarda, comparado comas diligências da luz, nunca deixa de tardar. Sempre a luz vem diante, sempre a luz sai primeiro, sempre a luz madruga e se antecipa ao sol.

Ó divina luz Maria, ditoso aquele que merecer os lumes de vosso favor! Dito­so aquele que entrar no número dos vossos favorecidos, ou dos vossos alumiados! Tendo-vos de uma parte a vós e da outra a vosso Filho, dizia aquele grande servo e amante de ambos: Positus in medio, quo me vertam? Nescio: Posto em meio dos dois, não sabe Agostinho para que parte se há de voltar. – E quando Agostinho confessa que não sabe, sofrível é em qualquer homem, qualquer ignorância. Ut mi­nus sapiens dico: como ignorante digo: Virgem Santíssima, perdoe-me vosso Filho, ou não me perdoe, que eu me quero voltar a vós. Já ele alguma hora deixou a seu Pai por sua Mãe; não estranhará que eu faça o mesmo. Tenha a prerrogativa de Esaú quem quiser, que eu quero antes a dita de Jacó. Esaú era mais amado e mais favorecido de seu pai; Jacó era mais favorecido e mais amado de sua Mãe; mas a bênção levou-a Jacó. E por que levou Jacó a bênção? Pelo que temos dito até agora: porque as diligências da Mãe foram mais apressadas que as do pai. Quomodo tam cito invenire potuisti, fili mi? Como pudeste achar tão cedo, disse Isac, o que eu mandei prevenir para lançar a bênção ao meu primogênito (Gên. 27, 20)? – E que respondeu Jacó? Sendo que tudo tinham sido prevenções e diligências de sua Mãe, respondeu que fora vontade de Deus: Voluntas Dei fuit (ibid.). E assim é. A mãe de Jacó repre­sentava neste passo a Mãe Santíssima, e quem tem de sua parte as diligências desta mãe, sempre tem de sua parte a vontade de Deus. Esaú teve de sua parte as diligên­cias do pai, mas quando chegou, chegou tarde, porque por mais diligências que faça o sol, sempre as da luz chegam mais cedo: Quomodo tam cito? As diligências da mãe já tinham chegado, e as do pai ainda haviam de chegar. Assim como hoje: a luz já tem nascido, e o sol ainda há de nascer. De qua natus est Jesus.

VII

Admoestação final. Santo Tomás, pela luz mede a perfeição das coisas. São Tiago e os dons de Deus, pai dos lumes. Oração.

Ora, cristãos, suposto que aquela soberana luz é tão apressada e diligente para nosso remédio, suposto que é tão universal para todos e para tudo, suposto que é tão piedosa e benigna para nos querer fazer bem, suposto que é tão privilegiada e favo­recida por graça e benignidade do mesmo sol, metamo-nos todos hoje debaixo das asas desta soberana protetora para que nos faça sombra e nos dê luz, para que nos faça sombra e nos defenda dos raios do Sol de justiça, que tão merecidos temos por nossos pecados, e para que nos dê luz para sair deles, pois é Senhora da Luz. Aquela mulher prodigiosa do Apocalipse, que S. João viu com as asas estendidas, toda a Igreja reconhece que era a Virgem Maria. E nós podemos acrescentar que era a Virgem debaixo do nome e invocação de Senhora da Luz. A mesma luz o dizia e o mostrava, que da peanha até a coroa toda era luzes: a peanha lua, o vestido sol, a coroa estrelas; toda luzes e toda luz. E pois a Senhora da Luz está com as asas abertas; metamo-nos debaixo delas, e muito dentro delas, para que sejamos filhos da luz. Dum lucem habetis, credite in lucem ut filii lucis sitis, diz Cristo (Jo. 12, 36). Enquanto se vos oferece a luz, crede na luz, para que sejais filhos da luz. Sabeis, cristãos, por que não acabamos de ser filhos da luz? É porque não acabamos de crer na luz. Creiamos na luz, e creiamos que não há maior bem no mundo que a luz, e ajudem-nos a esta fé os nossos mesmos sentidos.

Por que estimam os homens o ouro e a prata, mais que os outros metais? Porque têm alguma coisa de luz. Por que estimam os diamantes e as pedras precio­sas mais que as outras pedras? Porque têm alguma coisa de luz. Por que estimam mais as sedas que as lãs? Porque têm alguma coisa de luz. Pela luz avaliam os homens a estimação das coisas, e avaliam bem, porque quanto mais têm de luz, mais têm de perfeição. Vede o que notou Santo Tomás: Neste mundo visível, umas coisas são imperfeitas, outras perfeitas, outras perfeitíssimas; e nota ele com sutileza e advertência angélica, que as perfeitíssimas têm luz, e dão luz; as perfeitas não têm luz mas recebem luz; as imperfeitas nem têm luz, nem a recebem. Os planetas, as estrelas e o elemento do fogo, que são criaturas sublimes e perfeitíssimas, têm luz e dão luz; o elemento do ar e o da água, que são criaturas diáfanas e perfeitas, não têm luz mas recebem luz; a terra e todos os corpos terrestres, que são criaturas imperfei­tas e grosseiras, nem têm luz, nem recebem luz, antes a rebatem e deitam de si. Ora, não sejamos terrestres, já que Deus nos deu uma alma celestial; recebamos a luz, amemos a luz, busquemos a luz, e conheçamos que nem temos, nem podemos, nem Deus nos pode dar bem nenhum que seja verdadeiro bem, sem luz. Ouvi umas pala­vras admiráveis do apóstolo S. Tiago na sua epístola:
 Omne datum optimum, et omne donum perfectum de sursum est, descendens a Patre luminum (Tg. 1, 17): Toda dádiva boa, e todo       dom perfeito descende do Pai dos lumes. Notável dizer! De maneira que quando Deus nos dá um bem que seja verdadeiramente bom, quando Deus nos dá um bem que seja verdadeiramente per­feito, não se chama Deus pai de misericórdias, nem fonte das liberalidades: chama­se pai dos lumes e fonte da luz, porque no lume e na luz, que Deus nos dá com os bens, consiste a bondade e a perfeição deles. Muitos dos que nós chamamos bens de Deus, sem luz são verdadeiramente males, e muitos dos que nós chamamos males, com luz são verdadeiros bens. Os favores sem luz são castigos, e os castigos com luz são favores; as felicidades sem luz são desgraças, e as desgraças com luz são felici­dades; as riquezas sem luz são pobreza, e a pobreza com luz são as maiores riquezas; a saúde sem luz é doença, e a doença com luz é saúde. Enfim na luz ou falta de luz consiste todo o bem ou mal desta vida, e todo o da outra. Por que cuidais que foram santos os santos, senão porque tiveram a luz que a nós nos falta? Eles desprezaram o que nós estimamos, eles fugiram do que nós buscamos, eles meteram debaixo dos pés o que nós trazemos sobre a cabeça, porque viam as coisas com diferente luz do que nós as vemos. Por isso Davi em todos os salmos, por isso os profetas em todas suas orações, e a Igreja nas suas, não cessam de pedir a Deus luz e mais luz.

Esse é o dia, cristãos, de despachar estas petições. Peçamos hoje luz para nossas trevas, peçamos luz para nossas escuridades, peçamos luz para nossas ce­gueiras, luz com que conheçamos a Deus, luz com que conheçamos o mundo, e luz com que nos conheçamos a nós. Abramos as portas à luz para que alumie nossas casas; abramos os olhos à luz, para que alumie nossos corações; abramos os cora­ções à luz, para que more perpetuamente neles. Venhamos, venhamos a buscar luz a esta fonte de luz, e levemos daqui cheias de luz nossas almas. Com esta luz sabere­mos por onde havemos de ir; com esta luz conheceremos donde nos havemos de guardar; com esta luz, enfim, chegaremos àquela luz onde mora Deus, a que o após­tolo chamou luz inacessível: Qui lucem inhabitat inaccessibilem (1 Tim. 6, 16), que só por meio da luz que hoje nasce, se pode chegar à vista do sol que dela nasceu: De qua natus est Jesus.


Núcleo de Pesquisas em informática, Literatura e Lingüística


[1] Da qual nasceu Jesus (Mt.1.16).

[2] Aug. Lib. III de cons. Evang. c. 24.

[3] Porque o sol pode nascer de duplo modo: de modo perfeito, quando nasce e aparece sobre a terra, e de outro modo, quando sua luz começa a aparecer com a aurora, e neste sentido é aqui tomado o nascimento do sol.

[4] D. Thom. q. 67 art. 4 et q. 70 art. 2 ad 3 sequutus Dion. Areop. c. 4 de Div. Nom. Suar. de Op. sex Dier. L. 2 c. 8 et alii.

[5] É vontade de Deus que nada tenhamos senão pelas mãos de Maria.

[6] Amb. in Hexam. Lib. I, e. 9.

[7] A noite passou, e o dia vem chegando (Rom. 13, 12).

[8] D. Basil. in Hexameron

[9] O homem, quando estava na honra, não o entendeu; foi comparado aos brutos irracionais (SI. 48, 13).

[10] D. Dionys. Areopag. de D. nomim. Cap. 4.

[11] Hiero. Athan. Basil.

[12] Bern. Vestis eum, et vestiris ab eo.

[13] No sol pôs o seu tabernáculo (Sl. 18, 6). — Tinha a lua debaixo dos pés (Apc. 12, 1).