No final do Angelus de domingo 20 de Novembro, o Papa
Francisco assinou a sua carta apostólica «Misericordia et misera» dirigida à
Igreja inteira para que continue a viver a misericórdia experimentada durante
todo o jubileu extraordinário que ocorreu desde o dia 8 de Dezembro de 2015 a 20 de Novembro de 2016.
Documento importante para crentes e não crentes, porquanto a misericórdia que se define, pela compaixão pelo outro ou pela indulgência para com os seus defeitos, exigindo, por isso, o acto de os compreender e perdoar - na certeza que o homem é um ser imperfeito - esta chamada de atenção do Papa Francisco, serve essencialmente, para lembrar que encerrado o Ano Jubilar consagrado à Misericórdia, o seu sentido e a sua vivência real no concreto dos dias tem de estar presente na acção de cada homem em relação aos seu semelhante.
Nota: As separações dos parágrafos do texto que se publica na íntegra e das partes, é da nossa conta.
CARTA APOSTÓLICA
Misericordia
et misera
et misera
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
FRANCISCO
NO TERMO DO JUBILEU EXTRAORDINÁRIO
DA MISERICÓRDIA
DA MISERICÓRDIA
Francisco
a quantos lerem esta Carta Apostólica
misericórdia e paz!
a quantos lerem esta Carta Apostólica
misericórdia e paz!
Misericórdia e mísera (misericordia et misera) são as duas palavras que Santo Agostinho
utiliza para descrever o encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8,
1-11). Não podia encontrar expressão mais bela e coerente do que esta, para
fazer compreender o mistério do amor de Deus quando vem ao encontro do pecador:
«Ficaram apenas eles dois: a mísera e a misericórdia».[1] Quanta
piedade e justiça divina nesta narração! O seu ensinamento, ao mesmo tempo que
ilumina a conclusão do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, indica o caminho
que somos chamados a percorrer no futuro.
1. Esta página do Evangelho pode, com justa razão, ser considerada como ícone
de tudo o que celebramos no Ano Santo, um tempo rico em misericórdia, a qual
pede para continuar a ser celebrada e vivida nas nossas
comunidades. Com efeito, a misericórdia não se pode reduzir a um parêntese na
vida da Igreja, mas constitui a sua própria existência, que torna visível e
palpável a verdade profunda do Evangelho. Tudo se revela na misericórdia; tudo
se compendia no amor misericordioso do Pai.
Encontraram-se uma mulher e Jesus: ela, adúltera e – segundo a Lei –
julgada passível de lapidação; Ele que, com a sua pregação e o dom total de Si
mesmo que O levará até à cruz, reconduziu a lei mosaica ao seu intento originário
genuíno. No centro, não temos a lei e a justiça legal, mas o amor de Deus, que
sabe ler no coração de cada pessoa incluindo o seu desejo mais oculto e que
deve ter a primazia sobre tudo. Entretanto, nesta narração evangélica, não se
encontram o pecado e o juízo em abstrato, mas uma pecadora e o Salvador. Jesus
fixou nos olhos aquela mulher e leu no seu coração: lá encontrou o desejo de
ser compreendida, perdoada e libertada. A miséria do pecado foi revestida pela
misericórdia do amor. Da parte de Jesus, nenhum juízo que não estivesse
repassado de piedade e compaixão pela condição da pecadora. A quem pretendia
julgá-la e condená-la à morte, Jesus responde com um longo silêncio, cujo
intuito é deixar emergir a voz de Deus tanto na consciência da mulher como nas
dos seus acusadores. Estes deixam cair as pedras das mãos e vão-se embora um a
um (cf. Jo 8, 9). E, depois daquele silêncio, Jesus diz:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou? (...) Também Eu não te condeno.
Vai e de agora em diante não tornes a pecar» (8, 10.11). Desta forma, ajuda-a a
olhar para o futuro com esperança, pronta a recomeçar a sua vida; a partir de
agora, se quiser, poderá «proceder no amor» (Ef 5, 2). Depois que
se revestiu da misericórdia, embora permaneça a condição de fraqueza por causa
do pecado, tal condição é dominada pelo amor que consente de olhar mais além e
viver de maneira diferente.
2. Aliás Jesus ensinara-o claramente quando, em casa dum fariseu que O
convidara para almoçar, se aproximou d’Ele uma mulher conhecida por todos como
pecadora (cf. Lc 7, 36-50). Esta ungira com perfume os pés de
Jesus, banhara-os com as suas lágrimas e enxugara-os com os seus cabelos (cf.
7, 37-38). À reação escandalizada do fariseu, Jesus retorquiu: «São perdoados
os seus muitos pecados, porque muito amou; mas àquele a quem pouco se perdoa,
pouco ama» (7, 47).
O perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus
quis revelar em toda a sua vida. Não há página do Evangelho que possa ser
subtraída a este imperativo do amor que chega até ao perdão. Até nos últimos
momentos da sua existência terrena, ao ser pregado na cruz, Jesus tem palavras
de perdão: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23,
34).
Nada que um pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode
ficar sem o abraço do seu perdão. É por este motivo que nenhum de nós pode pôr
condições à misericórdia; esta permanece sempre um ato de gratuidade do Pai
celeste, um amor incondicional e não merecido. Por isso, não podemos correr o
risco de nos opor à plena liberdade do amor com que Deus entra na vida de cada
pessoa.
A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando, transforma e
muda a vida. É assim que se manifesta o seu mistério divino. Deus é
misericordioso (cf. Ex 34, 6), a sua misericórdia é eterna
(cf. Sal 136/135), de geração em geração abraça cada pessoa
que confia n’Ele e transforma-a, dando-lhe a sua própria vida.
3. Quanta alegria brotou no coração destas duas mulheres: a adúltera e a
pecadora! O perdão fê-las sentirem-se, finalmente, livres e felizes como nunca
antes. As lágrimas da vergonha e do sofrimento transformaram-se no sorriso de
quem sabe que é amado. A misericórdia suscita alegria, porque o
coração se abre à esperança duma vida nova. A alegria do perdão é
indescritível, mas transparece em nós sempre que a experimentamos. Na sua
origem, está o amor com que Deus vem ao nosso encontro, rompendo o círculo de
egoísmo que nos envolve, para fazer também de nós instrumentos de misericórdia.
Como são significativas, também para nós, estas palavras antigas que
guiavam os primeiros cristãos: «Reveste-te de alegria, que é sempre agradável a
Deus e por Ele bem acolhida. Todo o homem alegre trabalha bem, pensa bem e
despreza a tristeza. (...) Viverão em Deus todas as pessoas que afastam a tristeza
e se revestem de toda a alegria».[2] Experimentar
a misericórdia dá alegria; não no-la deixemos roubar pelas várias aflições e
preocupações. Que ela permaneça bem enraizada no nosso coração e sempre nos
faça olhar com serenidade a vida do dia-a-dia.
Numa cultura frequentemente dominada pela tecnologia, parecem
multiplicar-se as formas de tristeza e solidão em que caem as pessoas,
incluindo muitos jovens. Com efeito, o futuro parece estar refém da incerteza,
que não permite ter estabilidade. É assim que muitas vezes surgem sentimentos
de melancolia, tristeza e tédio, que podem, pouco a pouco, levar ao desespero.
Há necessidade de testemunhas de esperança e de alegria verdadeira, para
expulsar as quimeras que prometem uma felicidade fácil com paraísos
artificiais. O vazio profundo de tanta gente pode ser preenchido pela esperança
que trazemos no coração e pela alegria que brota dela. Há tanta necessidade de
reconhecer a alegria que se revela no coração tocado pela misericórdia! Por
isso guardemos como um tesouro estas palavras do Apóstolo: «Alegrai-vos sempre
no Senhor!» (Flp 4, 4; cf. 1 Ts 5, 16).
4. Celebramos um Ano intenso, durante o qual nos foi concedida, em
abundância, a graça da misericórdia. Como um vento impetuoso e salutar, a
bondade e a misericórdia do Senhor derramaram-se sobre o mundo inteiro. E
perante este olhar amoroso de Deus, que se fixou de maneira tão prolongada
sobre cada um de nós, não se pode ficar indiferente, porque muda a vida.
Antes de mais nada, sentimos necessidade de agradecer ao Senhor,
dizendo-Lhe: «Vós abençoastes a vossa terra (…). Perdoastes as culpas do vosso
povo» (Sal 85/84, 2.3). Foi mesmo assim: Deus esmagou as nossas
culpas e lançou ao fundo do mar os nossos pecados (cf. Miq 7,
19); já não Se lembra deles, lançou-os para trás de Si (cf. Is 38,
17); como o Oriente está afastado do Ocidente, assim os nossos pecados estão
longe d’Ele (cf. Sal 103/102, 12).
Neste Ano Santo, a Igreja pôde colocar-se à escuta e experimentou com
grande intensidade a presença e proximidade do Pai, que, por obra do Espírito
Santo, lhe tornou mais evidente o dom e o mandato de Jesus Cristo relativo ao
perdão. Foi realmente uma nova visita do Senhor ao meio de nós. Sentimos o seu
sopro vital efundir-se sobre a Igreja, enquanto, mais uma vez, as suas palavras
indicavam a missão: «Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados,
ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos» (Jo 20,
22-23).
5. Agora, concluído este Jubileu, é tempo de olhar para diante e
compreender como se pode continuar, com fidelidade, alegria e entusiasmo, a
experimentar a riqueza da misericórdia divina. As nossas comunidades serão
capazes de permanecer vivas e dinâmicas na obra da nova evangelização na medida
em que a «conversão pastoral», que estamos chamados a viver,[3] for
plasmada dia após dia pela força renovadora da misericórdia. Não limitemos a
sua ação; não entristeçamos o Espírito que indica sempre novas sendas a
percorrer para levar a todos o Evangelho da salvação.
Em primeiro lugar, somos chamados a celebrar a misericórdia.
Quanta riqueza está presente na oração da Igreja, quando invoca a Deus como Pai
misericordioso! Na liturgia, não só se evoca repetidamente a misericórdia, mas
é realmente recebida e vivida. Desde o início até ao fim da Celebração
Eucarística, a misericórdia reaparece várias vezes no diálogo entre a
assembleia orante e o coração do Pai, que rejubila quando pode derramar o seu
amor misericordioso. Logo na altura do pedido inicial de perdão com a invocação
«Senhor, tende piedade de nós», somos tranquilizados: «Deus todo-poderoso tenha
compaixão de nós, perdoe os nossos pecados e nos conduza à vida eterna». É com
esta confiança que a comunidade se reúne na presença do Senhor, especialmente
no dia semanal que recorda a ressurreição. Muitas orações ditas «coletas»
procuram recordar-nos o grande dom da misericórdia. No tempo da Quaresma, por
exemplo, rezamos com estas palavras: «Deus, Pai de misericórdia e fonte de toda
a bondade, que nos fizestes encontrar no jejum, na oração e no amor fraterno os
remédios do pecado, olhai benigno para a confissão da nossa humildade, de modo
que, abatidos pela consciência da culpa, sejamos confortados pela vossa
misericórdia».[4]Mais
adiante, somos introduzidos na Oração Eucarística pelo Prefácio que proclama:
«Na vossa infinita misericórdia, de tal modo amastes o mundo que nos enviastes
Jesus Cristo, nosso Salvador, em tudo semelhante ao homem, menos no pecado».[5] Aliás
a própria Oração Eucarística IV é um hino à misericórdia de Deus: «Na vossa
misericórdia, a todos socorrestes, para que todos aqueles que Vos procuram Vos
encontrem». E «tende misericórdia de nós, Senhor»[6] é
a súplica premente que o sacerdote faz na Oração Eucarística para implorar a
participação na vida eterna. Depois do Pai-Nosso, o sacerdote prolonga a oração
invocando a paz e a libertação do pecado, «ajudados pela vossa misericórdia» e,
antes da saudação da paz que os participantes trocam entre si como expressão de
fraternidade e amor mútuo à luz do perdão recebido, o celebrante reza de novo:
«Não olheis aos nossos pecados, mas à fé da vossa Igreja».[7] Através
destas palavras, pedimos com humilde confiança o dom da unidade e da paz para a
Santa Mãe Igreja. Assim a celebração da misericórdia divina culmina no
Sacrifício Eucarístico, memorial do mistério pascal de Cristo, do qual brota a
salvação para todo o ser humano, a história e o mundo inteiro. Em suma, cada
momento da Celebração Eucarística faz referimento à misericórdia de Deus.
Mas, em toda a vida sacramental, é-nos dada com abundância a misericórdia.
Realmente é significativo que a Igreja tenha querido fazer explicitamente apelo
à misericórdia na fórmula dos dois sacramentos chamados «de cura»: a Reconciliação e
a Unção dos Enfermos. Assim reza a fórmula da absolvição: «Deus,
Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o
mundo consigo e infundiu o Espírito para a remissão dos pecados, te conceda,
pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz»;[8] e
ao ungir a pessoa doente: «Por esta santa Unção e pela sua piíssima
misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo».[9] Deste
modo, a referência à misericórdia na oração da Igreja, longe de ser apenas
parenética, é altamente realizadora, ou seja, enquanto a invocamos
com fé, é-nos concedida; enquanto a confessamos viva e real, efetivamente
transforma-nos. Este é um conteúdo fundamental da nossa fé, que devemos
conservar em toda a sua originalidade: ainda antes e acima da revelação do
pecado, temos a revelação do amor com que Deus criou o mundo e os seres
humanos. O amor é o primeiro ato com que Deus Se deu a conhecer e vem ao nosso
encontro. Por isso mantenhamos o coração aberto à confiança de ser amados por
Deus. O seu amor sempre nos precede, acompanha e permanece connosco, não
obstante o nosso pecado.
6. Neste contexto, assume significado particular também a escuta da
Palavra de Deus. Cada domingo, a Palavra de Deus é proclamada na comunidade
cristã, para que o Dia do Senhor seja iluminado pela luz que dimana do mistério
pascal.[10] Na
Celebração Eucarística, é como se assistíssemos a um verdadeiro diálogo entre
Deus e o seu povo. Com efeito, na proclamação das Leituras bíblicas, repassa-se
a história da nossa salvação através da obra incessante de misericórdia que é
anunciada. Deus fala-nos ainda hoje como a amigos, «convive» connosco[11] oferecendo-nos
a sua companhia e mostrando-nos a senda da vida. A sua Palavra faz-se
intérprete dos nossos pedidos e preocupações e, simultaneamente, resposta
fecunda para podermos experimentar concretamente a sua proximidade. Quão grande
importância adquire a homilia, onde «a verdade anda de mãos dadas
com a beleza e o bem»,[12] para
fazer vibrar o coração dos crentes perante a grandeza da misericórdia!
Recomendo vivamente a preparação da homilia e o cuidado na sua proclamação.
Será tanto mais frutuosa quanto mais o sacerdote tiver experimentado em si
mesmo a bondade misericordiosa do Senhor. Comunicar a certeza de que Deus nos
ama não é um exercício de retórica, mas condição de credibilidade do próprio
sacerdócio. Por conseguinte, viver a misericórdia é a via mestra para fazê-la
tornar-se um verdadeiro anúncio de consolação e conversão na vida pastoral. A
homilia, como também a catequese, precisam de ser sempre sustentadas por este
coração pulsante da vida cristã.
7. A Bíblia é a grande narração que relata as maravilhas
da misericórdia de Deus. Nela, cada página está imbuída do amor do Pai, que, desde
a criação, quis imprimir no universo os sinais de seu amor. O Espírito Santo,
através das palavras dos profetas e dos escritos sapienciais, moldou a história
de Israel no reconhecimento da ternura e proximidade de Deus, não obstante a
infidelidade do povo. A vida de Jesus e a sua pregação marcam, de forma
determinante, a história da comunidade cristã, que compreendeu a sua missão com
base no mandato que Cristo lhe confiou de ser instrumento permanente da sua
misericórdia e do seu perdão (cf. Jo 20, 23). Através da
Sagrada Escritura, mantida viva pela fé da Igreja, o Senhor continua a falar à
sua Esposa, indicando-lhe as sendas a percorrer para que o Evangelho da
salvação chegue a todos. É meu vivo desejo que a Palavra de Deus seja cada vez
mais celebrada, conhecida e difundida, para que se possa, através dela,
compreender melhor o mistério de amor que dimana daquela fonte de misericórdia.
Claramente no-lo recorda o Apóstolo: «Toda a Escritura é inspirada por Deus e
adequada para ensinar, refutar, corrigir e educar na justiça» (2 Tm 3,
16).
Seria conveniente que cada comunidade pudesse, num domingo do Ano
Litúrgico, renovar o compromisso em prol da difusão, conhecimento e
aprofundamento da Sagrada Escritura: um domingo dedicado inteiramente à Palavra
de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo
constante de Deus com o seu povo. Não há de faltar a criatividade para
enriquecer o momento com iniciativas que estimulem os crentes a ser
instrumentos vivos de transmissão da Palavra. Entre tais iniciativas, conta-se
certamente uma difusão mais ampla da lectio divina, para que,
através da leitura orante do texto sagrado, a vida espiritual encontre apoio e
crescimento. A lectio divina sobre os temas da misericórdia
consentirá verificar a grande fecundidade que deriva do texto sagrado, lido à
luz de toda a tradição espiritual da Igreja, que leva necessariamente a gestos
e obras concretas de caridade.[13]
8. A celebração da misericórdia tem lugar, duma forma muito particular, no sacramento
da Reconciliação. Este é o momento em que sentimos o abraço do Pai, que vem
ao nosso encontro para nos restituir a graça de voltarmos a ser seus filhos.
Nós somos pecadores e carregamos connosco o peso da contradição entre o que
quereríamos fazer e aquilo que, ao invés, acabamos concretamente por fazer (cf. Rm 7,
14-21); mas a graça sempre nos precede e assume o rosto da misericórdia que se
torna eficaz na reconciliação e no perdão. Deus faz-nos compreender o seu amor
imenso precisamente à vista da nossa realidade de pecadores. A graça é mais
forte, e supera qualquer possível resistência, porque o amor tudo vence (cf. 1
Cor 13, 7).
No sacramento do Perdão, Deus mostra o caminho da conversão a Ele e convida
a experimentar de novo a sua proximidade. É um perdão que pode ser obtido,
começando antes de mais nada por viver a caridade. Assim no-lo
recorda o apóstolo Pedro, quando escreve que «o amor cobre a multidão dos
pecados» (1 Ped 4, 8). Só Deus perdoa os pecados, mas também nos
pede que estejamos prontos a perdoar aos outros, como Ele perdoa a nós:
«Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido» (Mt 6, 12). Como é triste quando ficamos fechados em nós
mesmos, incapazes de perdoar! Prevalecem o ressentimento, a ira, a vingança,
tornando a vida infeliz e frustrando o jubiloso compromisso pela misericórdia.
9. Uma experiência de graça que a Igreja viveu, com tanta eficácia, no Ano
Jubilar foi, certamente, o serviço dos Missionários da Misericórdia.
A sua ação pastoral pretendeu tornar evidente que Deus não põe qualquer
barreira a quantos O procuram de coração arrependido, mas vai ao encontro de
todos como um Pai. Recebi muitos testemunhos de alegria pelo renovado encontro
com o Senhor no sacramento da Confissão. Não percamos a oportunidade de viver a
fé, inclusive como experiência da reconciliação. «Reconciliai-vos com Deus» (2
Cor 5, 20): é o convite que ainda hoje dirige o Apóstolo a cada crente
para lhe fazer descobrir a força do amor que o torna uma «nova criação» (2
Cor 5, 17).
Quero expressar a minha gratidão a todos os Missionários da Misericórdia
pelo valioso serviço oferecido para tornar eficaz a graça do perdão. Mas este
ministério extraordinário não termina com o encerramento da Porta Santa. De
facto desejo que permaneça ainda, até novas ordens, como sinal concreto de que
a graça do Jubileu continua a ser viva e eficaz nas várias partes do mundo.
Será responsabilidade do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova
Evangelização seguir, neste período, os Missionários da Misericórdia, como
expressão direta da minha solicitude e proximidade e encontrar as formas mais
coerentes para o exercício deste precioso ministério.
10. Aos sacerdotes, renovo o convite para se prepararem com grande cuidado
para o ministério da Confissão, que é uma verdadeira missão sacerdotal.
Agradeço-vos vivamente pelo vosso serviço e peço-vos para serdes acolhedores com
todos, testemunhas da ternura paterna não obstante a gravidade
do pecado, solícitos em ajudar a refletir sobre o mal
cometido, clarosao apresentar os princípios morais, disponíveis para
acompanhar os fiéis no caminho penitencial respeitando com paciência o seu
passo, clarividentes no discernimento de cada um dos casos, generosos na
concessão do perdão de Deus. Como Jesus, perante a adúltera, optou por
permanecer em silêncio para a salvar da condenação à morte, assim também o
sacerdote no confessionário seja magnânimo de coração, ciente de que cada
penitente lhe recorda a sua própria condição pessoal: pecador mas ministro da
misericórdia.
11. Gostaria que todos nós meditássemos as palavras do Apóstolo, escritas
no final da sua vida, quando confessa a Timóteo ser o primeiro dos pecadores,
mas «justamente por isso alcancei misericórdia» (1 Tm 1, 16). As
suas palavras têm uma força que irrompe também em nós levando-nos a refletir
sobre a nossa existência vendo em ação a misericórdia de Deus na mudança,
conversão e transformação do nosso coração: «Dou graças Àquele que me conforta,
Cristo Jesus Nosso Senhor, por me ter considerado digno de confiança, pondo-me
ao seu serviço, a mim que antes fora blasfemo, perseguidor e violento. Mas
alcancei misericórdia» (1 Tm 1, 12-13).
Por isso lembremos, com paixão pastoral sempre renovada, as palavras do
Apóstolo: «Tudo isto vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de
Cristo e nos confiou o ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18).
Nós, primeiro, fomos perdoados, tendo em vista este ministério; tornamo-nos
testemunhas em primeira mão da universalidade do perdão. Não há lei nem
preceito que possa impedir a Deus de reabraçar o filho que regressa a Ele
reconhecendo que errou, mas decidido a começar de novo. Deter-se apenas na lei
equivale a invalidar a fé e a misericórdia divina. Há um valor preparatório na
lei (cf. Gal 3, 24), cujo fim é o amor (cf. 1 Tm 1,
5). Mas o cristão é chamado a viver a novidade do Evangelho, «a lei do Espírito
que dá vida em Cristo Jesus» (Rm 8, 2). Mesmo nos casos mais complexos,
onde se é tentado a fazer prevalecer uma justiça que deriva apenas das normas,
deve-se crer na força que brota da graça divina.
Nós, confessores, temos experiência de muitas conversões que ocorrem diante
dos nossos olhos. Sintamos, portanto, a responsabilidade de gestos e palavras
que possam chegar ao fundo do coração do penitente, para que descubra a
proximidade e a ternura do Pai que perdoa. Não invalidemos estes momentos com
comportamentos que possam contradizer a experiência da misericórdia que se
procura; mas, antes, ajudemos a iluminar o espaço da consciência pessoal com o
amor infinito de Deus (cf. 1 Jo 3, 20).
O sacramento da Reconciliação precisa de voltar a ter o seu lugar central
na vida cristã; para isso requerem-se sacerdotes que ponham a sua vida ao
serviço do «ministério da reconciliação» (2 Cor 5, 18), de tal modo
que a ninguém sinceramente arrependido seja impedido de aceder ao amor do Pai
que espera o seu regresso e, ao mesmo tempo, a todos seja oferecida a
possibilidade de experimentar a força libertadora do perdão.
Uma ocasião propícia pode ser a celebração da iniciativa 24 horas
para o Senhor nas proximidades do IV domingo da Quaresma, que goza já
de amplo consenso nas dioceses e continua a ser um forte apelo pastoral para
viver intensamente o sacramento da Confissão.
12. Em virtude desta exigência, para que nenhum obstáculo exista entre o
pedido de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a partir de agora a todos
os sacerdotes, em virtude do seu ministério, a faculdade de absolver a todas as
pessoas que incorreram no pecado do aborto. Aquilo que eu concedera de forma
limitada ao período jubilar[14] fica
agora alargado no tempo, não obstante qualquer disposição em contrário. Quero
reiterar com todas as minhas forças que o aborto é um grave pecado, porque põe
fim a uma vida inocente; mas, com igual força, posso e devo afirmar que não
existe algum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar e destruir,
quando encontra um coração arrependido que pede para se reconciliar com o Pai.
Portanto, cada sacerdote faça-se guia, apoio e conforto no acompanhamento dos
penitentes neste caminho de especial reconciliação.
No Ano do Jubileu, aos fiéis que por variados motivos frequentam as igrejas
oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X, tinha-lhes concedido
receber válida e licitamente a absolvição sacramental dos seus pecados.[15] Para
o bem pastoral destes fiéis e confiando na boa vontade dos seus sacerdotes para
que se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena comunhão na Igreja
Católica, estabeleço por minha própria decisão de estender esta faculdade para
além do período jubilar, até novas disposições sobre o assunto, a fim de que a
ninguém falte jamais o sinal sacramental da reconciliação através do perdão da
Igreja.
13. A misericórdia possui também o rosto da consolação.
«Consolai, consolai o meu povo» (Is 40, 1): são as palavras
sinceras que o profeta faz ouvir ainda hoje, para que possa chegar uma palavra
de esperança a quantos estão no sofrimento e na aflição. Nunca deixemos que nos
roubem a esperança que provém da fé no Senhor ressuscitado. É verdade que
muitas vezes somos sujeitos a dura prova, mas não deve jamais esmorecer a
certeza de que o Senhor nos ama. A sua misericórdia expressa-se também na
proximidade, no carinho e no apoio que muitos irmãos e irmãs podem oferecer
quando sobrevêm os dias da tristeza e da aflição. Enxugar as lágrimas é uma
ação concreta que rompe o círculo de solidão onde muitas vezes se fica encerrado.
Todos precisamos de consolação, porque ninguém está imune do sofrimento, da
tribulação e da incompreensão. Quanta dor pode causar uma palavra maldosa,
fruto da inveja, do ciúme e da ira! Quanto sofrimento provoca a experiência da
traição, da violência e do abandono! Quanta amargura perante a morte das
pessoas queridas! E, todavia, Deus nunca está longe quando se vivem estes
dramas. Uma palavra que anima, um abraço que te faz sentir compreendido, uma
carícia que deixa perceber o amor, uma oração que permite ser mais forte... são
todas expressões da proximidade de Deus através da consolação oferecida pelos
irmãos.
Às vezes, poderá ser de grande ajuda também o silêncio; porque
em certas ocasiões não há palavras para responder às perguntas de quem sofre.
Mas, à falta da palavra, pode suprir a compaixão de quem está presente,
próximo, ama e estende a mão. Não é verdade que o silêncio seja um ato de
rendição; pelo contrário, é um momento de força e de amor. O próprio silêncio
pertence à nossa linguagem de consolação, porque se transforma num gesto
concreto de partilha e participação no sofrimento do irmão.
14. Num momento particular como o nosso que, entre muitas crises, regista
também a da família, é importante fazer chegar uma palavra de força consoladora
às nossas famílias. O dom do matrimónio é uma grande vocação, que se há de
viver, com a graça de Cristo, no amor generoso, fiel e paciente. A beleza da
família permanece inalterada, apesar de tantas sombras e propostas
alternativas: «a alegria do amor que se vive nas famílias é também o júbilo da
Igreja».[16] A
senda da vida que leva um homem e uma mulher a encontrarem-se, amarem-se e
prometerem reciprocamente, diante de Deus, uma fidelidade para sempre, é muitas
vezes interrompida pelo sofrimento, a traição e a solidão. A alegria pelo dom
dos filhos não está imune das preocupações sentidas pelos pais com o seu
crescimento e formação, com um futuro digno de ser vivido intensamente.
A graça do sacramento do Matrimónio não só fortalece a família, para que
seja o lugar privilegiado onde se vive a misericórdia, mas também compromete a
comunidade cristã e toda a atividade pastoral para pôr em realce o grande valor
propositivo da família. Por isso, este Ano Jubilar não pode perder de vista a
complexidade da realidade familiar atual. A experiência da misericórdia
torna-nos capazes de encarar todas as dificuldades humanas com a atitude do
amor de Deus, que não Se cansa de acolher e acompanhar.[17]
Não podemos esquecer que cada um traz consigo a riqueza e o peso da sua
própria história, que nos distingue de qualquer outra pessoa. A nossa vida, com
as suas alegrias e os seus sofrimentos, é algo único e irrepetível que se
desenrola sob o olhar misericordioso de Deus. Isto requer, sobretudo por parte
do sacerdote, um discernimento espiritual atento, profundo e clarividente, para
que toda a pessoa sem exceção, em qualquer situação que viva, possa sentir-se
concretamente acolhida por Deus, participar ativamente na vida da comunidade e
estar inserida naquele Povo de Deus que incansavelmente caminha para a
plenitude do reino de Deus, reino de justiça, de amor, de perdão e de
misericórdia.
15. Reveste-se de particular importância o momento da morte. A
Igreja viveu sempre esta dramática passagem à luz da ressurreição de Jesus
Cristo, que abriu a estrada para a certeza da vida futura. Temos aqui um grande
desafio a abraçar, sobretudo na cultura contemporânea que, muitas vezes, tende
a banalizar a morte até reduzi-la a simples ficção ou a ocultá-la. Ao
contrário, a morte há de ser enfrentada e preparada como uma passagem que,
embora dolorosa e inevitável, é cheia de sentido: o ato extremo de amor para
com as pessoas que se deixam e para com Deus a cujo encontro se vai. Em todas
as religiões, o momento da morte – como aliás o do nascimento – é acompanhado
por uma presença religiosa. Nós vivemos a experiência das exéquias como
uma oração cheia de esperança para a alma da pessoa falecida e para dar
consolação àqueles que sofrem a separação da pessoa amada.
Estou convencido de que há necessidade, na pastoral animada por uma fé
viva, de tornar palpável como os sinais litúrgicos e as nossas orações são
expressão da misericórdia do Senhor. É Ele próprio que oferece palavras de esperança,
porque nada nem ninguém poderá separar-nos jamais do seu amor (cf. Rm 8,
35.38-39). A partilha deste momento pelo sacerdote é um acompanhamento
importante, porque lhe permite viver a proximidade à comunidade cristã no
momento de fraqueza, solidão, incerteza e pranto.
16. Termina o Jubileu e fecha-se a Porta Santa. Mas a porta da misericórdia
do nosso coração permanece sempre aberta de par em par. Aprendemos que Deus Se
inclina sobre nós (cf. Os 11, 4), para que também nós possamos
imitá-Lo inclinando-nos sobre os irmãos. A saudade que muitos sentem de
regressar à casa do Pai, que aguarda a sua chegada, é suscitada também por
testemunhas sinceras e generosas da ternura divina. A Porta Santa, que cruzamos
neste Ano Jubilar, introduziu-nos no caminho da caridade, que somos
chamados a percorrer todos os dias com fidelidade e alegria. É a estrada da
misericórdia que torna possível encontrar tantos irmãos e irmãs que estendem a
mão para que alguém a possa agarrar a fim de caminharem juntos.
Querer estar perto de Cristo exige fazer-se próximo dos irmãos, porque nada
é mais agradável ao Pai do que um sinal concreto de misericórdia. Por sua
própria natureza, a misericórdia torna-se visível e palpável numa ação concreta
e dinâmica. Uma vez que se experimentou a misericórdia em toda a sua verdade,
nunca mais se volta atrás: cresce continuamente e transforma a vida. É, na
verdade, uma nova criação que faz um coração novo, capaz de amar plenamente, e
purifica os olhos para reconhecerem as necessidades mais ocultas. Como são
verdadeiras as palavras com que a Igreja reza na Vigília Pascal, depois da
leitura da narração da criação: «Senhor nosso Deus, que de modo admirável
criastes o homem e de modo mais admirável o redimistes…»![18]
A misericórdia renova e redime, porque é o
encontro de dois corações: o de Deus que vem ao encontro do coração do homem.
Este inflama-se e o primeiro cura-o: o coração de pedra fica transformado em
coração de carne (cf. Ez 36, 26), capaz de amar, não obstante
o seu pecado. Nisto se nota que somos verdadeiramente uma «nova criação» (Gal 6,
15): sou amado, logo existo; estou perdoado, por conseguinte renasço para uma
vida nova; fui «misericordiado» e, consequentemente, feito instrumento da
misericórdia.
17. Durante o Ano Santo, especialmente nas «sextas-feiras da
misericórdia», pude verificar concretamente a grande quantidade de bem que
existe no mundo. Com frequência, não é conhecido porque se realiza diariamente
de forma discreta e silenciosa. Embora não façam notícia, existem muitos sinais
concretos de bondade e ternura para com os mais humildes e indefesos, os que
vivem mais sozinhos e abandonados. Há verdadeiros protagonistas da caridade,
que não deixam faltar a solidariedade aos mais pobres e infelizes. Agradecemos
ao Senhor por estes dons preciosos, que convidam a descobrir a alegria de
aproximar-se da humanidade ferida. Com gratidão, penso nos inúmeros voluntários
que diariamente dedicam o seu tempo a manifestar a presença e proximidade de
Deus com a sua entrega. O seu serviço é uma genuína obra de misericórdia, que
ajuda muitas pessoas a aproximar-se da Igreja.
18. É a hora de dar espaço à imaginação a propósito da misericórdia para
dar vida a muitas obras novas, fruto da graça. A Igreja precisa de narrar hoje
aqueles «muitos outros sinais» que Jesus realizou e que «não estão escritos» (Jo 20,
30), de modo que sejam expressão eloquente da fecundidade do amor de Cristo e
da comunidade que vive d’Ele. Já se passaram mais de dois mil anos, e todavia
as obras de misericórdia continuam a tornar visível a bondade de Deus.
Ainda hoje populações inteiras padecem a fome e a sede, sendo grande a
preocupação suscitada pelas imagens de crianças que não têm nada para se
alimentar. Multidões de pessoas continuam a emigrar dum país para outro à
procura de alimento, trabalho, casa e paz. A doença, nas suas várias formas, é
um motivo permanente de aflição que requer ajuda, consolação e apoio. Os
estabelecimentos prisionais são lugares onde muitas vezes, à pena restritiva da
liberdade, se juntam transtornos por vezes graves devido às condições desumanas
de vida. O analfabetismo ainda é muito difuso, impedindo aos meninos e meninas
de se formarem, expondo-os a novas formas de escravidão. A cultura do
individualismo exacerbado, sobretudo no Ocidente, leva a perder o sentido de
solidariedade e responsabilidade para com os outros. O próprio Deus continua a
ser hoje um desconhecido para muitos; isto constitui a maior pobreza e o maior
obstáculo para o reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana.
Em suma, as obras de misericórdia corporal e espiritual constituem até aos
nossos dias a verificação da grande e positiva incidência da misericórdia como valor
social. Com efeito, esta impele a arregaçar as mangas para restituir
dignidade a milhões de pessoas que são nossos irmãos e irmãs, chamados connosco
a construir uma «cidade fiável».[19]
19. Muitos sinais concretos de misericórdia foram realizados durante este
Ano Santo. Comunidades, famílias e indivíduos crentes redescobriram a alegria
da partilha e a beleza da solidariedade. Mas não basta. O mundo continua a
gerar novas formas de pobreza espiritual e material, que comprometem a dignidade
das pessoas. É por isso que a Igreja deve permanecer vigilante e pronta para
individuar novas obras de misericórdia e implementá-las com generosidade e
entusiasmo.
Assim, ponhamos todo o esforço em dar formas concretas à caridade e, ao
mesmo tempo, entender melhor as obras de misericórdia. Com efeito, esta possui
um efeito inclusivo pelo que tende a difundir-se como uma nódoa de azeite e não
conhece limites. E, neste sentido, somos chamados a dar um novo rosto às obras
de misericórdia que conhecemos desde sempre. De facto a misericórdia extravasa;
vai sempre mais além, é fecunda. É como o fermento que faz levedar a massa (cf. Mt 13,
33), e como o grão de mostarda que se transforma numa árvore (cf. Lc 13,
19).
A título de exemplo, basta pensar na obra de misericórdia corporal vestir
quem está nu (cf. Mt 25, 36.38.43.44). A mesma nos
reconduz aos primórdios, ao jardim do Éden, quando Adão e Eva descobriram que
estavam nus e, ouvindo aproximar-Se o Senhor, tiveram vergonha e esconderam-se
(cf. Gn 3, 7-8). Sabemos que o Senhor castigou-os; no entanto,
Ele «fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os» (Gn 3,
21). A vergonha é superada e a dignidade restituída.
Fixemos o olhar também em Jesus no Gólgota. Na cruz, o Filho de Deus está
nu; a sua túnica foi sorteada e levada pelos soldados (cf. Jo 19,
23-24); Ele não tem mais nada. Na cruz, manifesta-se ao máximo a partilha de
Jesus com as pessoas que perderam a dignidade, por terem sido privadas do
necessário. Assim como a Igreja é chamada a ser a «túnica de Cristo»[20] para
revestir o seu Senhor, assim também ela se comprometeu a tornar-se solidária
com os nus da terra a fim de recuperarem a dignidade de que foram despojados.
Assim as palavras de Jesus – «estava nu e destes-me que vestir» (Mt 25,
36) – obrigam-nos a não desviar o olhar das novas formas de pobreza e
marginalização que impedem às pessoas de viverem com dignidade.
Não ter trabalho nem receber um salário justo, não poder ter uma casa ou
uma terra onde habitar, ser discriminados pela fé, a raça, a posição social...
estas e muitas outras são condições que atentam contra a dignidade da pessoa;
frente a elas, a ação misericordiosa dos cristãos responde, antes de mais nada,
com a vigilância e a solidariedade. Hoje são tantas as situações em que podemos
restituir dignidade às pessoas, consentindo-lhes uma vida humana. Basta pensar
em tantos meninos e meninas que sofrem violências de vários tipos, que lhes
roubam a alegria da vida. Os seus rostos tristes e desorientados permanecem
impressos na minha mente; pedem a nossa ajuda para serem libertados da
escravidão do mundo contemporâneo. Estas crianças são os jovens de amanhã; como
estamos a prepará-las para viverem com dignidade e responsabilidade? Com que
esperança podem elas enfrentar o seu presente e o seu futuro?
O caráter social da misericórdia exige que não
permaneçamos inertes mas afugentemos a indiferença e a hipocrisia para que os
planos e os projetos não fiquem letra morta. Que o Espírito Santo nos ajude a
estar sempre prontos a prestar de forma efetiva e desinteressada a nossa
contribuição, para que a justiça e uma vida digna não permaneçam meras palavras
de circunstância, mas sejam o compromisso concreto de quem pretende testemunhar
a presença do Reino de Deus.
20. Somos chamados a fazer crescer uma cultura de misericórdia,
com base na redescoberta do encontro com os outros: uma cultura na qual ninguém
olhe para o outro com indiferença, nem vire a cara quando vê o sofrimento dos
irmãos. As obras de misericórdia são «artesanais»: nenhuma delas é
cópia da outra; as nossas mãos podem moldá-las de mil modos e, embora seja
único o Deus que as inspira e única a «matéria» de que são feitas, ou seja, a
própria misericórdia, cada uma adquire uma forma distinta.
Com efeito, as obras de misericórdia, tocam toda a vida duma pessoa. Por isso,
temos possibilidade de criar uma verdadeira revolução cultural precisamente a
partir da simplicidade de gestos que podem alcançar o corpo e o espírito, isto
é, a vida das pessoas. É um compromisso que a comunidade cristã pode assumir,
na certeza de que a Palavra do Senhor não cessa de a chamar para sair da
indiferença e do individualismo em que somos tentados a fechar-nos levando uma
existência cómoda e sem problemas. «Os pobres, sempre os tendes convosco» (Jo 12,
8): disse Jesus aos seus discípulos. Não há desculpa que possa justificar a
incúria, quando sabemos que Ele Se identificou com cada um deles.
A cultura da misericórdia forma-se na oração assídua, na abertura dócil à
ação do Espírito, na familiaridade com a vida dos Santos e na solidariedade concreta
para com os pobres. É um convite premente para não se equivocar onde é
determinante comprometer-se. A tentação de se limitar a fazer a «teoria da
misericórdia» é superada na medida em que esta se faz vida diária de
participação e partilha. Aliás, nunca devemos esquecer as palavras com que o
apóstolo Paulo – ao contar o encontro depois da sua conversão com Pedro, Tiago
e João – põe em realce um aspeto essencial da sua missão e de toda a vida
cristã: «Só nos disseram que nos devíamos lembrar dos pobres – o que procurei
fazer com o maior empenho» (Gal 2, 10). Não podemos esquecer-nos
dos pobres: trata-se dum convite hoje mais atual do que nunca, que se impõe
pela sua evidência evangélica.
21. Que a experiência do Jubileu imprima em nós estas palavras do apóstolo
Pedro: outrora «não tínheis alcançado misericórdia e agora alcançastes
misericórdia» (1 Ped 2, 10). Não guardemos ciosamente só para nós
tudo o que recebemos; saibamos partilhá-lo com os irmãos atribulados, para que
sejam sustentados pela força da misericórdia do Pai. As nossas comunidades
abram-se para alcançar a todas as pessoas que vivem no seu território, para que
chegue a todas a carícia de Deus através do testemunho dos crentes.
Este é o tempo da misericórdia. Cada dia da nossa caminhada é marcado pela presença de Deus, que guia os
nossos passos com a força da graça que o Espírito infunde no coração para o
plasmar e torná-lo capaz de amar. É o tempo da misericórdia para
todos e cada um, para que ninguém possa pensar que é alheio à proximidade de
Deus e à força da sua ternura. É o tempo da misericórdia para
que quantos se sentem fracos e indefesos, afastados e sozinhos possam
individuar a presença de irmãos e irmãs que os sustentam nas suas necessidades. É
o tempo da misericórdia para que os pobres sintam pousado sobre si o
olhar respeitoso mas atento daqueles que, vencida a indiferença, descobrem o
essencial da vida. É o tempo da misericórdia para que cada
pecador não se canse de pedir perdão e sentir a mão do Pai, que sempre acolhe e
abraça.
À luz do «Jubileu das Pessoas Excluídas Socialmente», celebrado quando já
se iam fechando as Portas da Misericórdia em todas as catedrais e santuários do
mundo, intuí que, como mais um sinal concreto deste Ano Santo extraordinário,
se deve celebrar em toda a Igreja, na ocorrência do XXXIII Domingo do Tempo
Comum, o Dia Mundial dos Pobres. Será a mais digna preparação para
bem viver a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, que Se
identificou com os mais pequenos e os pobres e nos há de julgar sobre as obras
de misericórdia (cf. Mt 25, 31-46). Será um Dia que vai ajudar
as comunidades e cada batizado a refletir como a pobreza está no âmago do
Evangelho e tomar consciência de que não poderá haver justiça nem paz social
enquanto Lázaro jazer à porta da nossa casa (cf. Lc 16,
19-21). Além disso este Dia constituirá uma forma genuína de nova evangelização
(cf. Mt 11, 5), procurando renovar o rosto da Igreja na sua
perene ação de conversão pastoral para ser testemunha da misericórdia.
22. Sobre nós permanecem pousados os olhos misericordiosos da Santa Mãe de
Deus. Ela é a primeira que abre a procissão e nos acompanha no testemunho do
amor. A Mãe da Misericórdia reúne a todos sob a proteção do seu manto, como A
quis frequentemente representar a arte. Confiemos na sua ajuda materna e
sigamos a indicação perene que nos dá de olhar para Jesus, rosto radiante da
misericórdia de Deus.
Dado em Roma, junto de São Pedro, em 20 de novembro – Solenidade de
Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo – do Ano do Senhor de 2016, quarto do
meu pontificado.
FRANCISCO
[14] Cf. Carta pela qual se concede a indulgência por ocasião do
Jubileu da Misericórdia, 1 de setembro de
2015.
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