Faz hoje anos que no dia 8 de Novembro do ano 63 a.C. que Cícero proferiu o seu primeiro discurso contra Catilina, no Templo de Júpiter para onde havia sido convocado o Senado de Roma, começando desse modo a destruir a conspiração em marcha contra as instituições romanas.
Ficou conhecido como a PRIMEIRA CATALINÁRIA
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Oh tempos, oh costumes! Uma das mais famosas frases de todos
os tempos, foi pronunciada há mais de 2000 anos por Cícero, ao discursar
perante o Senado de Roma começando a destruir um tentativa de golpe de estado
contra a República. Cícero tinha confirmado os seus dotes oratórios quando sete
anos antes, em 70 a.C., tinha conseguido que o corrupto governador da Sicília
Caio Verres fosse impugnado (demitido do seu cargo) mas agora enquanto cônsul
de Roma o caso era mais grave.
A conspiração contra o Senado dirigida por Lúcio Sérgio
Catilina, candidato vencido ao cargo de cônsul nas eleições de Julho de 64 a.C.
assim como nas de 63, lugar-tenente de Sila durante a ditadura deste, antigo
governador da província de África, amigo de Júlio César e de Crasso, os dois
dirigentes do Partido Popular em Roma, tinha começado em Setembro de 63 a.C.,
após a realização das eleições e já tinha provocado reacções de Cícero e do
Senado, mas o chefe da conspiração tinha conseguido até aí não ser incriminado.
Na noite de 6 para 7 de Novembro Catilina reuniu novamente
os dirigentes da conspiração para tomarem as últimas decisões antes da nova
tentativa de golpe, mas Cícero foi informado da reunião e das decisões aí
tomadas e decidiu convocar o Senado para o Templo de Júpiter Estátor para o dia
seguinte. Quando o chefe da conjura apareceu na reunião, Cícero ficou tão
indignado que se dirigiu directamente a Catilina, acusando-o violenta e
directamente, no primeiro de quatro célebres discursos - as Catilinárias -, que
acabaram por convencer o incrédulo Senado da existência da conspiração e das
culpas de Catilina. Mas neste primeiro discurso Cícero sabia que por lei não
poderia condenar, nem mesmo mandar desterrar, Catilina e por isso tentou que
este saísse voluntariamente da cidade, o que de facto conseguiu. Em meados de
Novembro Catilina entrou em revolta aberta e acabou por ser condenado à morte
pelo Senado em princípios de Dezembro, após um discurso de Cícero - a quarta
Catilinária - mas tendo recusado entregar-se foi morto em Janeiro de 62 a.C. no
campo de batalha de Pistóia, o que lhe valeu um elogio de Floro: «Bela morte,
assim tivesse tombado pela Pátria.»
Este discurso, o mais famoso de Cícero, foi usado como
exercício escolar no ensino da retórica durante séculos, como é exemplo em
Portugal a tradução do padre António Joaquim que teve três edições e que tem
uma componente pedagógica muito importante.
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«JÁ NÃO PODES VIVER MAIS TEMPO CONNOSCO»
I
Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por
quanto tempo ainda há-de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se
há-de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda
nocturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens
de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar
e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que
os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já
dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o
que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem
convocaste, que deliberações foram as tuas?
Oh tempos, oh costumes! O Senado tem conhecimento destes
factos, o cônsul tem-nos diante dos olhos; todavia, este homem continua vivo!
Vivo?! Mais ainda, até no Senado ele aparece, toma parte no conselho de Estado,
aponta-nos e marca-nos, com o olhar, um a um, para a chacina. E nós, homens valorosos,
cuidamos cumprir o nosso dever para com o Estado, se evitamos os dardos da sua
loucura. à morte, Catilina, é que tu deverias, há muito, ter sido arrastado por
ordem do cônsul; contra ti é que se deveria lançar a ruína que tu, desde há
muito tempo, tramas contra todos nós.
Pois não é verdade que uma personagem tão notável. como era
Públio Cipião, pontífice máximo. mandou, como simples particular, matar Tibério
Graco, que levemente perturbara a constituição do Estado? E Catilina. que
anseia por devastar a ferro e fogo a face da terra, haveremos nós, os cônsules,
de o suportar toda a vida? E já não falo naqueles casos de outras eras, como o
facto de Gaio Servílio Aala ter abatido, por suas próprias mãos, Espúrio Mélio
e, que alimentava ideias revolucionárias. Havia, havia outrora nesta República,
uma tal disciplina moral que os homens de coragem puniam com mais severos
castigos um cidadão perigoso do que o mais implacável dos inimigos. Temos um
decreto do Senados contra ti, Catilina, um decreto rigoroso e grave; não é a
decisão clara nem a autoridade da Ordem aqui presente que falta à República;
nós, digo-o publicamente, nós, os cônsules, é que faltamos.
II
Decidiu um dia o Senado que o cônsul Lúcio Opímio velasse
para que a República não sofresse dano algum. Pois nem uma noite passou. Gaio
Graco, apesar da sua tão nobre ascendência, de pai, de avô e de seus maiores,
foi morto por causa de certas suspeitas de revolta; juntamente com os filhos
foi executado Marco Fúlvio, um consular. Com um mesmo decreto do Senado, foi a
República confiada aos cônsules Gaio Mário e Lúcio Valério. Acaso adiaram eles
mais um dia sequer a pena de morte, por crime de lesa-república, a Lúcio
Saturnino, um tribuno da plebe, e a Gaio Servílio, um pretor?
Nós, porém, há já vinte dias que consentimos no
enfraquecimento do vigor de decisão destes homens. Temos um destes decretos do
Senado, mas está fechado nos arquivos como espada metida em bainha; e, segundo
esse decreto senatorial, tu, Catilina, deverias ter sido imediatamente condenado
à morte. E eis que continuas vivo, e vivo, não para abdicares da tua audácia,
mas para nela te manteres com inteira firmeza. É meu desejo, venerandos
senadores, ser clemente; é meu desejo, no meio de tamanhos perigos da
República, não parecer indolente; mas já eu próprio de inacção e moleza me
acuso.
Há acampamentos em Itália contra o povo romano.
estabelecidos nos desfiladeiros da Etrúria, aumenta em cada dia o número dos
inimigos; e, no entanto, o general desses acampamentos e o comandante desses
inimigos, eis que o vemos no interior das nossas muralhas e dentro do próprio
Senado, urdindo a cada instante algum atentado contra a República. Se. neste
momento eu te mandar prender, Catilina, se eu decretar a tua morte, o que
sobretudo terei de temer, tenho a certeza, é que todos os bons cidadãos me
censurem por ter actuado tarde, e não que haja alguém a dizer que usei de
crueldade excessiva.
A mim, porém, aquilo que já há muito deveria ter sido feito,
fortes razões me levam a não o fazer ainda. Hás-de ser morto, sim, mas só no
momento em que já não for possível encontrar-se ninguém tão perverso, tão
depravado, tão igual a ti, que não reconheça a inteira justiça desse acto.
Enquanto houver alguém que ouse defender-te, continuarás a
viver, e a viver como agora vives, cercado pelas minhas muitas e fiéis guardas,
para não poderes sublevar-te contra o Estado. È até os olhos e os ouvidos de
muita gente, sem disso te aperceberes, te hão-de espiar e trazer vigiado como
até hoje o têm feito.
III
Que há, pois, ó Catilina, que ainda agora possas esperar, se
nem a noite com suas trevas pode manter ocultos os teus criminosos conluios,
nem uma casa particular pode conter, com suas paredes, os segredos da tua
conspiração, se tudo vem à luz do dia, se tudo irrompe em público? É tempo,
acredita-me, de mudares essas disposições; desiste das chacinas e dos
incêndios. Estás apanhado por todos os lados. Todos os teus planos são para nós
mais claros que a luz do dia, e importa que os recordes comigo nesta hora.
Não te lembras de eu dizer no Senado, no dia 12 antes das
Calendas de Novembro, que, em dia determinado, dia esse que havia de ser o
sexto antes das Calendas de Novembro , haveria de pegar em armas Gaio Mânlio,
um lacaio e instrumento da tua audácia? Enganei-me, porventura, ó Catilina, não
só quanto a um acontecimento tão importante, tão horroroso e tão incrível, como
também. o que é muito mais para admirar, quanto ao próprio dia? Fui eu ainda
que disse no Senado teres tu fixado para o dia 5 antes das Calendas de Novembro
a chacina da aristocracia. justamente na altura em que muitas das altas
personalidades do Estado fugiram de Roma, não tanto por motivo de segurança
pessoal, como para reprimirem as tuas maquinações. Serás capaz de negar que
nesse mesmo dia, estando tu cercado pelas minhas guardas e pela minha
vigilância, te não pudeste insurgir contra a República, quando tu, perante o
afastamento dos restantes, dizias no entanto que a morte de quem tinha ficado,
que éramos só nós, bastava para te contentar?
Pois quê? Quando tu, nas próprias Calendas de Novembro,
estavas plenamente seguro de que tomarias Preneste num ataque nocturno, não
deste conta, porventura, de que tinha sido por ordens minhas que aquela colónia
fora guarnecida pelos meus destacamentos, sentinelas e rondas nocturnas? Nada
fazes, nada intentas, nada imaginas que eu não só não oiça, mas veja e disso
tenha pleno conhecimento.
IV
Recorda comigo, por fim, aquela noite famigerada de
anteontem e logo verás que eu velo com mais ardor pela segurança do Estado que
tu pela sua ruína. Afirmo que tu, na noite anterior a esta, vieste aos
Cuteleiros (não vou falar por meias palavras), a casa de Marco Leca, e que no
mesmo local se reuniu grande parte dos cúmplices da mesma criminosa loucura.
Ousas, porventura, nega-lo? Porque te calas? Se o negas, eu to provarei, pois
que vejo aqui presentes no Senado alguns dos que lá estiveram juntamente contigo.
Oh deuses imortais! Em que país do mundo estamos nós,
afinal? Que governo é o nosso? Em que cidade vivemos nós? Estão aqui, aqui
dentro do nosso número, venerandos senadores, neste Conselho. mais sagrado e
mais respeitável da face da terra, aqueles que meditam a morte de todos nós,
aqueles que trazem no pensamento a destruição desta cidade e até a do mundo
inteiro. É a estes que eu, como cônsul, tenho na minha frente e lhes peço
conselho acerca dos interesses do Estado, a eles, que deveriam ser passados a
fio de espada e que eu nem com a palavra atinjo ainda.
Estiveste, pois, Catilina, em casa de Leca nessa noite;
procedeste à partilha das regiões da Itália; determinaste para onde gostarias
que cada um partisse; escolheste quem deixarias em Roma, quem levarias contigo;
designaste os bairros da cidade destinados a incêndio; afirmaste que, por ti,
já estavas disposto a partir; disseste que ainda te demorarias, contudo, um
pouco, porque eu continuava vivo. Encontraste dois cavaleiros romanos, para te
aliviarem" desta preocupação e se comprometerem a assassinar-me no meu
próprio leito nessa mesma noite, pouco antes da alvorada.
Tudo isto eu vim a saber mal tinha ainda sido dissolvida a
vossa reunião; guarneci e reforcei a minha casa com mais guardas; e àqueles que
tu me enviaras pela manhã para me saudarem, tranquei-lhes a porta quando eles
chegaram, a esses mesmos cuja intenção de me visitarem àquela hora eu já havia
previamente comunicado a muitas e das mais altas personalidades.
V
Sendo assim, prossegue, Catilina, o caminho encetado; sai da
cidade de uma vez para sempre; as portas estão abertas; põe-te a caminho. Há
muito que te reclamam como general supremo esses teus acampamentos manlianos.
Leva também contigo todos os teus; se não todos, pelo menos o maior número
possível. Limpa a cidade. Libertar-me-ás de um grande receio quando entre ti e
mim um muro se levantar. Já não podes conviver por mais tempo connosco; não o
suporto, não o tolero, não o consinto.
Grande deverá ser o nosso reconhecimento para com os deuses
imortais, particularmente para com o próprio Júpiter Estátor aqui presente, o
mais antigo protector desta cidade, por tantas vezes termos escapado a esta
peste tão abominável, tão horrorosa e tão hostil à República. Nunca mais a
suprema segurança do Estado deve ser posta em perigo por causa de um homem
apenas. De tantas vezes que tu, Catilina, me armaste ciladas quando eu era
cônsul designado, não foi com a guarda pública, mas com os meus próprios meios,
que eu procurei defender-me. Quando, por ocasião dos últimos comícios
consulares, tu pretendeste matar-me no Campo de Marte, a mim que era cônsul e
aos teus competidores, reprimi os teus criminosos intentos com a ajuda e
recursos dos amigos, sem proclamar oficialmente o estado de sítio; numa palavra,
todas as vezes que me atacaste, foi por mim mesmo que te resisti, muito embora
eu visse que a minha morte ficaria ligada a uma grande desgraça do Estado.
Mas agora é a toda a República que tu diriges abertamente o
teu ataque; são os templos dos deuses imortais, são as casas da cidade, é a
vida de todos os cidadãos, é a Itália inteira, é tudo isto que tu arrastas para
a ruína e a devastação. E, uma vez que não ouso ainda pôr em prática o que se
imporia em primeiro lugar e que é próprio destes poderes" e da tradição
dos nossos maiores, tomarei uma posição mais moderada quanto ao rigor, porém
mais útil no que toca à salvação comum. É que, se eu te matar, continuará na
República o restante bando dos teus conjurados; mas, se tu saíres, como já há
muito te estou convidando, a cidade ficará vazia dos teus sectários, dessa
profunda sentina que empesta o Estado.
Então, Catilina, que se passa? Hesitas em fazer por minha
ordem o que tu já te dispunhas a realizar por tua livre vontade? É a um inimigo
público que o cônsul manda sair da cidade. Perguntas-me se para o exílio? Não
to ordeno, mas, se pedes o meu parecer, aconselho-to.
VI
Que há, ó Catilina, que ainda te possa causar prazer nesta
cidade, em que não há ninguém, fora desta conjuração de homens depravados, que
te não tema, ninguém que te não deteste? Que nódoa de escândalos familiares não
foi gravada a fogo na tua. vida? Que ignomínia de vida particular não anda
ligada à tua reputação? Que sensualidade esteve longe de teus olhos? Que acção
infamante deixaram de perpetrar as tuas mãos algum dia? Que torpeza esteve
ausente de todo o teu corpo? Que jovem haverá a quem não tenhas ilaqueado nas
seduções da tua imoralidade, guiado o ferro na rebeldia ou o archote. na
libertinagem?
Pois quê? Há pouco, quando, com a morte da tua primeira
mulher, esvaziaste a tua casa com vista a um novo casamento, não acumulaste
ainda sobre este delito um outro atentado inacreditável, que eu não refiro e
acho melhor deixar passar em silêncio, para que não conste que nesta cidade se
verificou a barbaridade de um crime tamanho, ou que este ficou sem castigo? Nem
menciono a perda dos teus haveres, que tu verás todos confiscados nos próximos
Idos; refiro-me a factos que dizem respeito não à infâmia pessoal dos teus
vícios, não à tua penúria doméstica e à tua má fama, mas, sim, aos superiores
interesses do Estado e à vida e segurança de todos nós.
Podes tu, Catilina, sentir prazer na luz deste dia ou no ar
deste céu que respiras, ao saberes que ninguém dos presentes desconhece que, na
véspera das Calendas de Janeiro", durante o consulado de Lépido e Tulo, te
apresentaste armado no local dos comícios do povo; que tinhas um grupo de
homens preparado para dar a morte aos cônsules e aos principais da cidade e que
não foi nenhuma reconsideração da tua parte nem o teu medo, mas, sim, a deusa
Fortuna do povo romano que impediu o crime da tua loucura? E já nem conto pois
que não são nem desconhecidos nem poucos os delitos cometidos depois quantas
vezes, sendo eu cônsul designado, quantas vezes mesmo durante o meu consulado,
me tentaste matar! Quantos golpes, vibrados de tal maneira, que parecia
impossível escapar-lhes, eu não evitei com um pequeno desvio ou, como costuma
dizer-se, só com o corpo! Nada adiantas, nada consegues, e, contudo, não desistes
de tentar e de querer.
Quantas vezes já esse punhal de assassino te foi arrancada
das mãos! Quantas vezes, por um mero acaso, ele te escapou e caiu aos pés, esse
punhal que, sinceramente, não sei em que iniciações mistéricas e a que deus o
terás tu consagrado, para julgares necessário cravá-lo no corpo do cônsul.
VII
E agora, que vida é esta que levas? Desejo neste momento
falar-te de modo que se veja que não sou movido pelo rancor, que eu te deveria
ter, mas por uma compaixão que tu em nada mereces. Entraste há pouco neste
Senado. Quem, dentre esta tão vasta assembleia, dentre todos os teus amigos e
parentes, te saudou? Se isto, desde que há memória dos homens, a ninguém
aconteceu, ainda esperas que te insultem com palavras, quando te encontras
esmagado pela pesadíssima condenação do silêncio? E que dizes ao facto de, à
tua chegada, esse lugar ter ficado ao abandono, e ao facto de todos os
consulares, que tantas vezes figuraram nos teus planos de assassínio, mal te
havias sentado a seu lado, terem deixado deserta e vazia essa zona da bancada?
Com que coragem, afinal, julgas tu que hás-de suportar tal afronta?
Se os meus escravos me temessem da maneira que todos os teus
concidadãos te receiam, eu, por Hércules!, sentir-me-ia compelido a deixar a
minha casa; e tu, a esta cidade, não pensas que é teu dever abandoná-la? E se
eu me visse, ainda que injustamente, tão gravemente suspeito e detestado pelos
meus concidadãos, preferiria ficar privado da sua vista a ser alvo do olhar
hostil de toda a gente; e tu, apesar de reconheceres, pela consciência que tens
dos teus crimes, que é justo e de há muito merecido o ódio que todos nutrem por
ti, estás a hesitar em fugir da vista e da presença de todos aqueles a quem tu
atinges na alma e no coração? Se teus pais te temessem e odiassem e tu não os
pudesses apaziguar de modo nenhum, retirar-te-ias, penso eu, do seu olhar para
outra qualquer parte. Pois agora é a Pátria, mãe comum de todos nós, que te
odeia e teme, e sabe que desde há muito não pensas noutra coisa que não seja o
seu parricídio; e tu, nem respeitarás a sua autoridade, nem acatarás as suas
decisões, nem te assustarás com o seu poder?
Eis que ela a ti se dirige, ó Catilina, e, no seu silêncio,
como que fala:
«Há vários anos já que nenhum crime se viu cometido senão
por ti; nenhum escândalo, sem ti; só tu cometeste, sem castigo e com toda a
liberdade, o assassínio de muitos cidadãos, a opressão e saque dos nossos
aliados; só tu te atreveste não só a desprezar, mas até a subverter e a
infringir as leis e os tribunais. Esses crimes de outrora, posto que não
devessem ter sido suportados, eu os suportei como pude; mas agora, estar eu
toda em sobressalto somente por causa de ti, ser Catilina objecto de medo ao
mínimo ruído que surja, não se poder descobrir conjura alguma tramada contra
mim em que não esteja implicada a tua intenção criminosa, não, isso é que não
devo suportar. Por isso, vai-te daqui e afasta de mim este receio; se ele tem
fundamento, para eu não andar oprimida; se é ilusório, para eu, enfim, deixar
de uma vez esta vida de medo.»
VIII
Se tais palavras, como disse, a Pátria te pudesse dirigir,
não deveria ela conseguir o seu intento, muito embora não pudesse fazer uso da
força?
E que dizer do facto de tu próprio te haveres entregado sob
guarda provisória e teres dito, a fim de evitares suspeitas, que desejavas
ficar em casa de Mânio Lépido? Como este não te recebeu, até a mim tiveste cara
de te dirigir e de me pedir que te guardasse em minha casa. E, como também de
mim levaste a resposta de que eu não podia de modo nenhum sentir-me seguro
contigo dentro das mesmas paredes, porquanto já eu corria grande perigo pelo
facto de estarmos metidos dentro das mesmas muralhas, foste a casa do pretor
Quinto Metelo. E, repudiado por ele, imigraste para casa do teu comparsa Marco
Metelo, esse grande homem de quem pensaste, claro está, que havia de ser o mais
cuidadoso em te guardar, o mais esperto para te vigiar e o mais enérgico para
te defender. Mas em que medida parece justo estar afastado da prisão e das
cadeias quem se julgou, por si mesmo, digno de detenção?
Uma vez que assim é, Catilina, se não és capaz de esperar
pela morte de coração resignado. ainda hesitas em partir daqui para outras
terras e em entregar ao exílio e à solidão essa vida, subtraindo-a a muitos
castigos justos e merecidos?
«Propõe-no ao Senado», dizes tu. É isto, com efeito, o que
reclamas, e dizes que, se esta Ordem de senadores vier a decidir que é sua
vontade a tua partida para o exílio, estás na disposição de obedecer. Não, não
vou propor uma coisa que é contra os meus princípios, mas, sim, farei com que
vejas o que estes pensam acerca de ti. Sai de Roma, Catilina; liberta o Estado
destas apreensões; parte para o exílio, se é esta a palavra de ordem que
esperas. Então? Não vês? Não dás conta do silêncio dos presentes? Se estão
calados, é porque consentem. Porque esperas pela autoridade das palavras,
quando percebes muito bem pelo seu silêncio o que têm na vontade?
Ora, se eu tivesse dito estas mesmas palavras a um jovem tão
cheio de qualidades como Públio Séstio aqui presente, se as tivesse dirigido a
Marco Marcelo, varão da mais alta virtude, já o Senado, apesar de eu ser
cônsul, teria, com plena justiça, lançado contra mim, neste mesmo templo, a sua
força e o seu poder. A teu respeito, porém, Catilina, a sua imobilidade é uma
aprovação; o seu consentimento, um decreto; o seu silêncio, um clamor. E não
apenas estes aqui presentes, cuja autoridade tens, pelos vistos, em grande
estima, mas a vida em vil apreço; também aqueles cavaleiros romanos, homens da
maior honestidade e excelência, e os restantes cidadãos tão valorosos que de pé
circundam este Senado, e de quem tiveste ensejo, há momentos, de ver não só a
afluência, mas até de reconhecer claramente as disposições e ouvir
distintamente os clamores. É com dificuldade que desde há muito detenho suas
mãos e suas armas aparelhadas contra ti; mas, se abandonares estes sítios que
há largo tempo pretendes devastar, é com facilidade que os poderei levar a
escoltarem-te até às portas da cidade.
IX
Mas de que servem as minhas palavras? A ti, como pode alguma
coisa fazer-te dobrar? Tu, como poderás algum dia corrigir-te? Tu, como
tentarás planear alguma fuga? Tu. como podes pensar nalgum exílio? Oxalá os
deuses imortais te inspirassem tal propósito, muito embora eu veja que, se tu,
apavorado com as minhas palavras, te decidires a partir para o exílio, uma
enorme tempestade de ódios ameaça desabar sobre nós, se não no tempo presente,
por causa da fresca lembrança dos teus crimes, pelo menos para o futuro. Vale,
porém, a pena, desde que essa desgraça seja particular e se não misture com os
perigos do Estado. Mas a ti, o que não se deverá exigir é que te afastes dos
teus vícios, que alimentes profundo receio dos castigos da lei, que recues
perante as conjunturas críticas da República. Nem tu, Caulina, és de molde que a
vergonha te afaste da infâmia; ou o medo, do perigo; ou a razão, da loucura.
Por isso mesmo, parte, como já tantas vezes te disse, e, se
pretendes, conforme apregoas, atear o ódio público contra mim, teu inimigo,
avança já direito ao exílio; se o fizeres, muito me custará suportar a censura
dos homens; se partires para o exílio por ordem do cônsul, muito me custará
sentir o fardo dessa impopularidade. Se, porém, preferes servir o meu prestígio
e a minha glória, sai juntamente com o indesejável bando dos celerados,
refugia-te junto de Mânlio, convoca os cidadãos perversos, separa-te dos homens
de bem, move guerra contra a Pátria, exulta com uma sacrílega revolta de
bandidos, para que se veja que não foste expulso por mim para o meio de
estranhos, mas, sim, convidado a partir para junto dos teus.
De resto, para quê convidar-te a isso, uma vez que tenho
conhecimento de que tu enviaste homens à frente para te esperarem armados junto
do Fórum de Aurélio, e sei que tu combinaste e fixaste a data com Mânlio, e sei
que até enviaste à frente aquela famosa águia de prata", uma águia que,
assim o espero, há-de tornar-se ruinosa e fatal para ti e para todos os teus,
uma águia à qual esteve levantado em tua casa um criminoso santuário? Como é
que tu poderás passar mais tempo sem aquela que costumavas adorar ao partir
para a carnificina, tu que tantas vezes fizeste passar essa dextra sacrílega,
do seu altar para a chacina de cidadãos?
X
Irás, enfim, de uma vez para sempre, para onde há muito
tempo te arrastava essa tua paixão desenfreada. e louca, pois não é pesar o que
esta partida te causa, mas um estranho e inacreditável prazer. Foi para
semelhante loucura que a natureza te gerou, te preparou a vontade, e o destino
te guardou. Tu, não só nunca desejaste o tempo de paz, mas nem sequer uma
guerra que não fosse criminosa. Topaste uma corja de bandidos formada de gente
perversa, enjeitada não só de toda a sorte, mas até de toda a esperança.
Ah! que alegria não experimentarás, com que júbilo não
hás-de exultar, com que. prazer tamanho andarás em orgiástico delírio, quando,
entre o número tão avultado dos teus, não conheceres nem vires um só homem de
bem! Foi por afeição a tal género de vida que se praticaram aquelas tuas
proezas de que se fala: permanecer prostrado no chão, ou para espreitar o
momento azado para algum atentado contra o pudor, ou mesmo para cometer algum
crime; passar as noites em claro lançando armadilhas não só ao sono dos maridos,
mas também aos haveres da gente pacífica? Tens aí onde possas ostentar essa tua
famosa capacidade em suportar a fome, o frio, a carência de tudo; e em breve
perceberás que foi isso que deu cabo de ti.
Quando te rejeitei do consulado, uma coisa consegui pelo
menos: que tu antes pudesses atacar a República como exilado do que maltratá-la
como cônsul, e que a tua criminosa empresa mais se pudesse chamar uma arruaça
de bandidos que uma guerra civil.
XI
E agora, venerandos senadores, a fim de eu poder arredar e
esconjurar de. mim uma censura, de certo modo justa, da Pátria, escutai, por
favor, com atenção, o que vou dizer, e gravai-o bem fundo no vosso coração e na
vossa memória. Porquanto, se a Pátria, que é para mim mais cara que a própria
vida, se a Itália inteira, se toda a República me dissesse:
«Que estás tu a fazer, Marco Túlio? Então tu vais consentir
que aquele que provaste ser um inimigo público, que tu vês como o futuro
comandante de uma revolta, que tu sabes ser esperado como general no acampamento
dos inimigos, ser o instigador de um acto criminoso, o cabecilha de uma
conspiração, um agitador de escravos e de cidadãos perversos, a esse vais tu
deixá-lo partir de tal maneira, que nem parece ter sido por ti expelido para
fora da cidade, mas, sim, impelido contra ela? Então, não vais mandar que o
ponham a ferros, que o arrastem para a morte, que o imolem no derradeiro
suplício?
O que te impede, afinal? Será a tradição dos antigos? Mas
nesta República até simples particulares puniram muitíssimas vezes com a morte
cidadãos perniciosos. Serão, porventura, as leis que foram propostas acerca do
suplício dos cidadãos romanos? Mas nunca., nesta cidade, os que atraiçoaram a
Pátria continuaram na posse dos direitos de cidadania. Ou é a impopularidade do
futuro que tu receias? Bela maneira essa de agradeceres ao povo romano, ele que
te elevou tão cedo ao supremo poder através de todos os graus da magistratura,
sendo tu um homem conhecido apenas pela tua pessoa sem nenhuma recomendação de
antepassados - se, por causa da impopularidade ou do receio de algum perigo,
desprezas a salvação dos teus concidadãos!
Mas, se há algum medo de cair em desagrado, dever-se-á,
porventura, ter mais receio da antipatia motivada pelo rigor e pela fortaleza
que pela preguiça e pelo desleixo? Ou, quando a Itália for devastada pela
guerra, quando as cidades forem arrasadas, quando as casas estiverem a arder,
acaso pensas tu que nessa altura não hás-de ser inteiramente devorado pelo fogo
do ódio popular?»
XII
A estes tão augustos clamores da República e ao pensamento
daqueles homens que sentem desse mesmo modo responderei em poucas palavras. Se
eu, venerandos senadores, considerasse que a melhor atitude era castigar
Catilina com a morte, não concederia a esse gladiador nem mais uma hora de
vida. É que, se homens da mais alta categoria e cidadãos dos mais ilustres não
só se não mancharam, mas até colheram honra no sangue de Saturnino, e dos
Gracos, e de Flaco, e de muitos ainda mais antigos, certamente eu não teria que
recear que, com a morte deste parricida dos seus concidadãos, sobre mim se
derramasse qualquer ódio da posteridade. E, mesmo que este me estivesse
particularmente iminente, sempre tive, apesar disso, a convicção de que o ódio
alcançado pelo mérito não é ódio, é glória.
Há, todavia, nesta Ordem de senadores, alguns que, ou não
vêem aquilo que nos ameaça, ou fingem ignorar aquilo que vêem; estes, pela
moleza das suas decisões, alimentaram a esperança de Catilina e deram força à
conjuração nascente, não acreditando nela; e, por sua influência, muitos; não
apenas os perversos, mas ainda os mal informados, diriam, se eu tivesse punido
Catilina, que o tinha feito com crueldade e tirania.
Ora eu penso que, se este der entrada nos acampamentos de
Mânlio, que são o seu objectivo, não haverá ninguém tão ingénuo que não veja
ter-se armado uma conjuração, ninguém tão descarado que o não confesse. Por
outro lado, penso que, se for condenado à morte apenas Catilina aqui presente,
este flagelo que afecta o Estado pode reprimir-se por um pouco, não suprimir
sem para sempre. Mas, se ele se desterrar a si mesmo e levar os seus
partidários consigo, e se recolher, de toda a parte, os demais naufragados da
vida e os congregar no mesmo lugar, ficará extinta e debelada não apenas esta
já tão adiantada doença do Estado, mas até a raiz e o germe de todos os males.
XIII
É que nós, venerandos senadores, vivemos desde há muito
envolvidos nestes perigos e nas ciladas de uma conspiração, mas, não sei como,
a maturação de todos os crimes e da antiga loucura e audácia veio a rebentar no
tempo do nosso consulado. E se, de tamanho bando de salteadores, se suprimir
apenas este, poderá parecer talvez que ficamos, por um pequeno espaço de tempo,
aliviados da apreensão e do medo; o perigo, porém, há-de permanecer e ficará
profundamente inculcado nas veias e nas entranhas da República. Tal como,
muitas vezes, as pessoas atingidas por uma doença grave, se, no tumultuar do
ardor da febre, beberam água gelada, parecem aliviadas nos primeiros momentos e
logo depois o mal as oprime mais forte e violento, do mesmo modo esta doença
que existe no seio do Estado. aliviada embora pelo suplício daquele que ali
vedes, agravar-se-á com mais violência ainda se sobreviverem os restantes
conjurados.
Por tudo isto, que os perversos se retirem, se separem dos
homens de bem, se juntem num só lugar e que uma muralha, enfim, como já o
proclamei tantas vezes, os mantenha separados de nós; que deixem de armar
traições ao cônsul na sua própria casa, de bloquear o tribunal do pretor
urbano, de assediar com armas a Cúria, de preparar dardos incendiários e archotes
para deitar fogo à cidade; numa palavra, que na fronte de cada um se mostrem
gravados os seus sentimentos políticos. Garanto-vos, senadores egrégios, que a
nossa vigilância de cônsules há-de ser bastante, e espero que haja em vós tal
autoridade, nos cavaleiros romanos tamanha coragem, em todos os homens de bem a
conformidade de sentimentos necessária para poderdes ver que, com a retirada de
Catilina, tudo fica descoberto, esclarecido, subjugado, punido.
Com estes presságios, Catilina, e para suprema salvação do
Estado, para tua desgraça e ruína e para perdição daqueles que a ti se ligaram
por toda a espécie de crimes e parricídios, parte para essa guerra ímpia e
nefanda. E tu, Júpiter, cujo culto foi estatuído por Rómulo sob os mesmos
auspícios, desta cidade, tu a quem com justiça chamamos o Sustentáculo desta
urbe e deste império, hás-de relegar este assassino e os seus comparsas para
longe do teu templo e dos restantes, das casas de Roma e das suas muralhas, da
vida e dos haveres de toda a população; e àqueles que odeiam os homens de bem,
aos inimigos da Pátria, aos salteadores da Itália, unidos entre si por um pacto
criminoso e uma aliança nefanda, a esses, vivos e mortos, hás-de puni-los com
suplícios eternos.
in, "O Portal da História"
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