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segunda-feira, 1 de agosto de 2016

O discurso de António Barreto-Dia de Portugal de 2009


Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades
Santarém, 10 de Junho de 2009

António Barreto

(…)
Senhoras e Senhores,

Dia de Portugal… É dia de congratulação. Pode ser dia de lustro e lugares comuns. Mas também pode ser dia de simplicidade plebeia e de lucidez.

Várias vezes este dia mudou de nome. Já foi de Camões, por onde começou. Já foi de Portugal, da Raça ou das Comunidades. Agora, é de Portugal, de Camões e das Comunidades. Com ou sem tolerância, com ou sem intenção política específica, é sempre o mesmo que se festeja: os Portugueses. Onde quer que vivam.

Há mais de cem anos que se celebra Camões e Portugal. Com tonalidades diferentes, com ideias diversas de acordo com o espírito do tempo. O que se comemora é sempre o país e o seu povo. Por isso o Dia de Portugal é também sempre objecto de críticas. Iguais, no essencial, às expressas por Eça de Queirós, aquando do primeiro dia de Camões. Ele afirmava que os portugueses, mais do que colchas às varandas, precisavam de cultura.

Estranho dia este! Já foi uma “manobra republicana”, como lhe chamou Jorge de Sena. Já foi “exaltação da raça”, como o designaram no passado. Já foi de Camões, utilizado para louvar imperialismos que não eram os dele. Já foi das Comunidades, para seduzir os nossos emigrantes, cujas remessas nos faziam falta. E apenas de Portugal.

Os Estados gostam de comemorar e de se comemorar. Nem sempre sabem associar os povos a tal gesto. Por vezes, quando o fazem, é de modo desajeitado. “As festas decretadas, impostas por lei, nunca se tornam populares”, disse também Eça de Queirós. Tinha razão. Mas devo dizer que temos a felicidade única de aliar a festa nacional a Camões. Um poeta, em vez de uma data bélica. Um poeta que nos deu a voz. Que é a nossa voz. Ou, como disse Eduardo Lourenço, um povo que se julga Camões. Que é Camões. Verdade é que os povos também prezam a comemoração, se nela não virem armadilha ou manipulação.

Comemora-se para criar ou reforçar a unidade. Para afirmar a continuidade. Para reinterpretar o passado. Para utilizar a História a favor do presente. Para invocar um herói que nos dê coesão. Para renovar a legitimidade histórica. São, podem ser, objectivos decentes. Se soubermos resistir à tentação de nos apropriarmos do passado e dos heróis, a fim de desculpar as deficiências contemporâneas.

Não é possível passar este dia sem olharmos para nós. Mas podemos fazê-lo com consciência. E simplicidade.

Garantimos com altivez que Camões é o grande escritor da língua portuguesa e um dos maiores poetas do mundo, mas talvez fosse preferível estudá-lo, dá-lo a conhecer e garantir a sua perenidade.

Afirmamos, com brio, que os portugueses navegadores descobriram os caminhos do mundo nos séculos XV e XVI e que os portugueses emigrantes os percorreram desde então. Mais vale afirmá-lo com o sentido do dever de contribuir para a solidez desta comunidade.

Dizemos, com orgulho, que o Português é uma das seis grandes línguas do mundo. Mas deveríamos talvez dizê-lo com a responsabilidade que tal facto nos confere.

Quando se escolhe um português que nos representa, que nos resume, escolhe-se um herói. Ele é Camões. Podemos festejá-lo com narcisismo. Mas também com a decência de quem nele procura o melhor.

Os nossos maiores heróis, com Camões à cabeça, ilustraram-se pela liberdade e pelo espírito insubmisso. Pela aventura e pelo esforço empreendedor. Pela sua humanidade e, algumas vezes, pela tolerância. Infelizmente, foram tantas vezes utilizados com o exacto sentido oposto: obedientes ou símbolos de uma superioridade obscena.

Ainda hoje soubemos prestar homenagem a Salgueiro Maia. Nele, festejámos a liberdade, mas também aquele homem. Que esta homenagem não se substitua, ritualmente, ao nosso dever de cuidar da democracia.

As comemorações nacionais têm a frequente tentação de sublinhar ou inventar o excepcional. O carácter único de um povo. A sua glória. Mas todos sentimos, hoje, os limites dessa receita nacionalista. Na verdade, comemorar Portugal e festejar os Portugueses pode ser acto de lucidez e consciência. No nosso passado, personificado em Camões, o que mais impressiona é a desproporção entre o povo e os feitos, entre a dimensão e a obra. Assim como esta extraordinária capacidade de resistir, base da “persistência da nacionalidade”, como disse Orlando Ribeiro. Mas que isso não apague ou esbata o resto. Festejar Camões não é partilhar o sentido épico que ele soube dar à sua obra maior, mas é perceber o homem, a sua liberdade e a sua criatividade. Como também é perceber o que fizemos de bem e o que fizemos de mal. Descobrimos mundos, mas fizemos a guerra, por vezes injusta. Civilizámos, mas também colonizámos sem humanidade. Soubemos encontrar a liberdade, mas perdemos anos com guerras e ditaduras.

Fizemos a democracia, mas não somos capazes de organizar a justiça. Alargámos a educação, mas ainda não soubemos dar uma boa instrução. Fizemos bem e mal. Soubemos abandonar a mitologia absurda do país excepcional, único, a fim de nos transformarmos num país como os outros. Mas que é o nosso. Por isso, temos de nos ocupar dele. Para que não sejam outros a fazê-lo.

Há mais de trinta anos, neste dia, Jorge de Sena deixou palavras que ecoam. Trouxe-nos um Camões humano, sabedor, contraditório, irreverente, subversivo mesmo.

Desde então, muito mudou. O regime democrático consolidou-se. Recheado de defeitos, é certo.

Ainda a viver com muita crispação, com certeza. Mas com regras de vida em liberdade.

Evoluiu a situação das mulheres, a sua presença na sociedade. Invisíveis durante tanto tempo, submissas ainda há pouco, as mulheres já fizeram um país diferente.

Mudou até a constituição do povo. A sociedade plural em que vivemos hoje, com vários deuses e credos, com dois sexos iguais, com diversas línguas e muitos costumes, com os partidos e as associações que se queira, seria irreconhecível aos nossos próximos antepassados.

A sociedade e o país abriram-se ao mundo. No emprego, no comércio, no estudo, nas viagens, nas relações individuais e até no casamento, a sociedade aberta é uma novidade recente.

A pertença à União Europeia, timidamente desejada há três décadas, nem sequer por todos, é um facto consumado.

A estes trinta anos pertence também o Estado de protecção social, com especial relevo para o Serviço Nacional de Saúde, a segurança social universal e a escolarização da população jovem. É certamente uma das realizações maiores.

Estas transformações são motivo de regozijo. Mas este não deve iludir o que ainda precisa de mudança. O que não foi possível fazer progredir. E a mudança que correu mal.

A Sociedade e o Estado são ainda excessivamente centralizados. As desigualdades sociais persistem para além do aceitável. A injustiça é perene. A falta de justiça também. 0 favor ainda vence vezes de mais o mérito. O endividamento de todos, país, Estado, empresas e famílias é excessivo e hipoteca a próxima geração. A nossa pertença à União Europeia não é claramente discutida e não provoca um pensamento sério sobre o nosso futuro como nacionalidade independente.

Há poucos dias, a eleição europeia confirmou situações e diagnósticos conhecidos. A elevadíssima abstenção mostrou uma vez mais a permanente crise de legitimidade e de representatividade das instituições europeias. A cidadania europeia é uma noção vaga e incerta. É um conceito inventado por políticos e juristas, não é uma realidade vivida e percebida pelos povos. É um pretexto de Estado, não um sentimento dos povos. A pertença à Europa é, para os cidadãos, uma metafísica sem tradição cultural, espiritual ou política. Os Estados e os povos europeus deveriam pensar de novo, uma, duas, três vezes, antes de prosseguir caminhos sem saída ou falsos percursos que terminam mal. E nós fazemos parte desse número de Estados e povos que têm a obrigação de pensar melhor o seu futuro, o futuro dos Portugueses que vêm a seguir.

É a pensar nessas gerações que devemos aproveitar uma comemoração e um herói para melhor ligar o passado com o futuro.

Não usemos os nossos heróis para nos desculpar. Usemo-los como exemplos. Porque o exemplo tem efeitos mais duráveis do que qualquer ensino voluntarista.

Pela justiça e pela tolerância, os portugueses precisam mais de exemplo do que de lições morais.

Pela honestidade e contra a corrupção, os portugueses necessitam de exemplo, bem mais do que de sermões.

Pela eficácia, pela pontualidade, pelo atendimento público e pela civilidade dos costumes, os portugueses serão mais sensíveis ao exemplo do que à ameaça ou ao desprezo.

Pela liberdade e pelo respeito devido aos outros, os portugueses aprenderão mais com o exemplo do que com declarações solenes.

Contra a decadência moral e cívica, os portugueses terão mais a ganhar com o exemplo do que com discursos pomposos.

Pela recompensa ao mérito e a punição do favoritismo, os portugueses seguirão o exemplo com mais elevado sentido de justiça.

Mais do que tudo, os portugueses precisam de exemplo. Exemplo dos seus maiores e dos seus melhores. O exemplo dos seus heróis, mas também dos seus dirigentes. Dos afortunados, cujas responsabilidades deveriam ultrapassar os limites da sua fortuna. Dos sabedores, cuja primeira preocupação deveria ser a de divulgar o seu saber. Dos poderosos, que deveriam olhar mais para quem lhes deu o poder. Dos que têm mais responsabilidades, cujo “ethos” deveria ser o de servir.

Dê-se o exemplo e esse gesto será fértil! Não vale a pena, para usar uma frase feita, dar “sinais de esperança” ou “mensagens de confiança”. Quem assim age, tem apenas a fórmula e a retórica. Dê-se o exemplo de um poder firme, mas flexível, e a democracia melhorará. Dê-se o exemplo de honestidade e verdade, e a corrupção diminuirá. Dê-se o exemplo de tratamento humano e justo e a crispação reduzir-se-á. Dê-se o exemplo de trabalho, de poupança e de investimento e a economia sentirá os seus efeitos.

Políticos, empresários, sindicalistas e funcionários: tenham consciência de que, em tempos de excesso de informação e de propaganda, as vossas palavras são cada vez mais vazias e inúteis e de que o vosso exemplo é cada vez mais decisivo. Se tiverem consideração por quem trabalha, poderão melhor atravessar as crises. Se forem verdadeiros, serão respeitados, mesmo em tempos difíceis.

Em momentos de crise económica, de abaixamento dos critérios morais no exercício de funções empresariais ou políticas, o bom exemplo pode ser a chave, não para as soluções milagrosas, mas para o esforço de recuperação do país.


domingo, 24 de julho de 2016

Este nosso Mundo...

in, Google Earth
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Este nosso Mundo... visto por pensadores ilustres que se debruçaram sobre a sua complexidade e que no tempo actual, faz que muitos dos seus brilhantes pensamentos pareçam ter sido escritos no dia de ontem.


O mundo é um lugar perigoso de se viver, não por causa daqueles que fazem o mal, mas sim por causa daqueles que observam e deixam o mal acontecer.
(Einstein, Albert)

Compreendemos mal o mundo e depois dizemos que ele nos decepciona.
(Tagore, Rabindeanath)

Torturamos os nossos irmãos homens com o ódio, o rancor, a mal­dade e depois dizemos «o mundo é mau».
(Fernando Pessoa)

O mundo é uma realidade universal, desarticulada em biliões de realidades individuais.
(Miguel Torga)
Diário (1938)

Deixe quem desejaria mudar o mundo mudar-se primeiro a si mesmo.
(Sócrates)

O mundo está em má situação: os selvagens devoram-se uns aos outros, os civilizados enganam-se reciprocamente, e tudo isso é nomeado o curso do mundo.
(Schopenhauer, Arthur)
In, Aforismos sobre a Sabedoria da Vida

O mundo pode ser um palco. Mas o elenco é um horror.
(Wilde, Óscar)

Este mundo aterrador não é desprovido de encantos, das manhãs que fazem com que o acordar valha a pena.
(Szymborska, Wislawa)

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam.
(Lispector, Clarise)
In, Jornal do Brasil (1967)

Se o mundo não conhece um longo período de idealismo, de espiritualismo, de virtudes cívicas e morais, não me parece que seja possível ultrapassar as dificuldades do nosso tempo.
(António de Oliveira Salazar)
In, Como se Levanta um Estado

Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem.
(Fernando Pessoa)
Livro do Desassossego

O mundo será julgado pelas crianças. O espírito da infância julgará o mundo.
(Bernanos, Georges)
in, Grandes Cemitérios ao Luar

Vivermos no mundo sem tomarmos consciência do significado do mundo é como vaguear numa grande biblioteca sem tocar nos livros.
(Brown, Dan)
in, O Símbolo Perdido

Foi Deus que criou o mundo, mas parece ser o diabo que o mantém.
(Bernard, Tristan)

O nosso mundo é um pano de cena atrás do qual se escondem os segredos mais profundos.
(Rilke, Rainer)

Assim como a águia foi morta como uma seta feita a partir das suas próprias penas, também a mão do mundo é ferida pela sua própria capacidade.
(Keller, Helen)

Estamos no apogeu da indústria do lazer, mas nunca houve uma geração tão triste e depressiva como a nossa. Estamos na era do conhecimento, da democratização da informação, mas nunca produzimos tantos repetidores de informações, em vez de pensadores.
(Cury, Augusto)

É o amor, ou a falta dele, que rege o mundo. Nada de bom acontece na sua ausência e todos os passos que possam ser dados sem o seu cunho serão passos em falso.
(Santos, Gustavo)

Seria melhor se este obscuro capítulo da história do mundo fosse encerrada de uma vez, e que estas pessoas horríveis desaparecessem da face da terra e que nós jurássemos fazer um novo começo, criando um império onde não haveria mais injustiça nem dor.
(Coetzee, J.M.)

O mundo exige mais do que a média, para dar em troca menos do que é justo.
(Agustna Bessa-Luis)

Transformar o mundo não posso mas talvez possa transformar o mundo à minha volta.
(Brito, Casimiro)
in, Arte da Respiração

O mundo pertence aos que querem possuí-lo, e é desprezado por aqueles que o deveriam possuir.
(Eschenbach, Marie)
in, Aforismos
Fonte; "Citador"


Por fim, dei comigo a pensar no pensamento que nos deixou o ditador António de Oliveira Salazar e a fazer a mim mesmo a pergunta que se impõe a quem, como eu, abjurou o modo como ele governou Portugal e a sentir que estou de acordo com aquilo que ele disse: Se o mundo não conhece um longo período de idealismo, de espiritualismo, de virtudes cívicas e morais, não me parece que seja possível ultrapassar as dificuldades do nosso tempo. 

Porque motivo, hei-de agora, nesta idade, estar de acordo com ele?
Mas estou. Essa é a realidade. Tenho de o admitir. É que, se o mundo não se regenera, vai ser muito difícil vencer as dificuldades do nosso tempo.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Discurso do PR no dia 25 de Abril de 2016


Discurso proferido na Assembleia da República



O 25 de Abril de 1974, de Movimento Militar de jovens capitães rapidamente se converteu em Revolução.
Saudar os Capitães de Abril, quarenta e dois anos depois, é dever de todos os que, em Portugal, se louvam da Democracia que o seu gesto patriótico permitiu instaurar.
Saudar o Povo, que assumiu esse testemunho e o converteu em fundamento do Estado Social de Direito que temos, é assinalar o primado da soberania popular. Desde logo, expressa na primeira eleição para a Assembleia da República, há, precisamente, quarenta anos.

Toda a revolução, ao longo da História, é feita de várias revoluções, tantas quantos a viveram, mais ou menos intensamente.
A Revolução de 1974 e 1975 foi, também ela, feita de muitas revoluções.
Olhando para os projetos das forças partidárias com assento na Assembleia Constituinte, é possível deparar com várias revoluções, a que se somaram as sonhadas por outras forças sem tal representação.
E, como acontece sempre nos processos revolucionários, houve momentos em que a primazia parecia pender para um ou alguns desses projetos, para, logo a seguir, a correlação de forças favorecer projetos diversos.

A Constituição da República Portuguesa, promulgada em 2 de abril de 1976, acolheu o compromisso possível entre diversas revoluções, depois de 25 de novembro de 1975.
Esse compromisso viria a ser reformulado em sucessivas revisões, com especial relevo para as de 1982, quanto ao regime político e ao sistema de governo, de 1989, quanto ao regime económico, e de 1997, quanto a vertentes políticas e sociais.
Mas, como um todo, a Revolução de 25 de Abril de 1974, na versão compromissória do constitucionalismo de 1976, acabou por abrir a Portugal o horizonte para quatro desafios cimeiros, que dominaram as décadas que se lhe seguiram.
Descolonização, Democratização, integração europeia e construção de uma nova economia.

Descolonização, entre 1974 e 1975, tardia, realizada no meio de uma Revolução, culminando na independência dos Estados irmãos na língua e em tanta mundividência, e alterando perfis económicos e sociais na Comunidade que éramos.
Democratização, concretizada por fases, e em que a transição para o poder político democrático eleitoral conheceu a sua expressão plena seis anos depois de 1976.
Integração europeia, decidida em 1977 e formalizada oito anos volvidos, em 1985.
Mudança da economia, em ciclos muito diversos – o primeiro, da ruptura dos laços coloniais e das nacionalizações e expropriações; o segundo, o das reprivatizações para mãos portuguesas, com apoio público; o terceiro, o da recente transferência para mãos estrangeiras em sectores-chave, num contexto de crise financeira e económica.

Quatro desafios, vividos quase em simultâneo, como nenhum outro antigo Império Europeu Ocidental moderno havia enfrentado.
Sem guerra civil, com a excepcional integração de setecentos mil compatriotas, percorrendo, em escassos anos, caminhos que economias europeias fortes haviam trilhado em quarenta anos.
Quando os mais jovens, tantas vezes minhas alunas e meus alunos, olhavam para o balanço destas quatro décadas ou pouco mais – com sentido muito crítico, para não dizer quase total incompreensão –, vezes sem conta lhes chamei a atenção para o tempo que não conheceram e para o que foi o percurso que para todos eles é já pré-história.
Não sabem o que é ditadura, censura, elevadíssima mortalidade infantil, escolaridade obrigatória não totalmente cumprida de seis anos, um milhão de emigrantes numa década, começo do despovoamento de um interior continental e de áreas das atuais Regiões Autónomas.

Manda, por isso, a verdade que se reconheça que a Democracia permitida pelo 25 de Abril representou uma realidade sem precedente na nossa História político-constitucional, em participação no poder central, regional e local, em independência dos tribunais, em autonomia política dos Açores e da Madeira e autonomia administrativa do Poder Local, em liberdades fundamentais, em mudança drástica dos indicadores de saúde, em democratização no sistema de ensino, em profundo avanço no papel da mulher na sociedade portuguesa, em abertura externa e circulação de pessoas e ideias, em preocupações intergeracionais e de qualidade de vida. E até na projeção internacional de tantos dos nossos melhores, sem precedente na História contemporânea.

Só que a mesma verdade manda que se diga que os quatro desafios enfrentados em tão concentrado espaço de tempo tiveram custos de vária ordem, que, somados a crises externas e a fraquezas internas legitimam queixas e frustrações em muitos Portuguesas e Portugueses. E, em particular, nos mais jovens, como aqueles – do Conselho Nacional de Juventude –, que ontem me deram, simbolicamente, este cravo para que, hoje, ao evocar os quarenta e dois anos do 25 de Abril, não me esquecesse do muito que está por fazer.
O Portugal pós-colonial tem de cuidar mais da língua, valorizar mais a cultura, ir mais longe na educação, na ciência e na inovação, dar mais peso às comunidades espalhadas pelo Mundo, apostar mais na CPLP, dar aos que de fora vieram e integraram o nosso País Social a importância no País Político que lhes tem sido negada.

O Portugal Democrático tem de repensar o fechamento no sistema de partidos e nos parceiros sociais, recriar formas de aproximação entre eleitores e eleitos, ser mais efetivo no combate à corrupção e mais transparente na vida política.
E ir mais longe quanto à mulher na política e na chefia administrativa, ao jovem na sucessão geracional, ao emigrante e ao imigrante na vivência cívica.
O Portugal que acredita na Europa tem de lutar por uma Europa menos confidencial, menos passiva, mais solidária, mais atenta às pessoas, e sobretudo que não pareça aprovar nos factos o oposto daquilo que apregoa nos ideais.

O Portugal do desenvolvimento tem de dar horizontes de esperança, que não sejam o ir de crise em crise até à incerteza total. Sem ficar refém pela dívida ou pela dependência intoleráveis, afirmando-se capaz de crescer, competir, criar emprego, dar futuro aos Portugueses.
O Portugal da coesão social e territorial deve ser muito mais corajoso não só a recuperar a classe média ou a alimentar a circulação social, mas também a combater as assimetrias e a pobreza que nos deve envergonhar.

É injusto negar o que todos devemos ao 25 de Abril de 1974.
É, no entanto, míope negar as desilusões, as indignações, as frustrações com a qualidade da Democracia, a debilidade do crescimento, a insuficiência do emprego, o aumento das desigualdades, a persistência significativa da pobreza.
O saldo é claramente positivo, para quem tiver a memória dos anos 70. Mas pode começar a ser preocupantemente descoroçoante para quem só se lembrar dos anos 90 e da viragem do século.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
A solução não passa, porém, por pessimismos antidemocráticos, por populismos antieuropeus, por tentações de culpabilização constitucional.
Eu sei, nós sabemos, que estes tempos não são fáceis.
Nem na incerteza quanto ao crescimento e segurança e na falta de transparência financeira mundiais. Nem na lentidão ou tibieza quanto à resposta conforme aos seus princípios por parte de alguma Europa nos refugiados, como na política externa e de segurança, na economia, ou na capacidade para evitar fracturas antisolidárias as mais inesperadas.

Nem na evolução económica recente, ou em curso, que aconselha permanente atenção às previsões e seus reflexos financeiros. Sem dramas, que a rectificação de perspectivas é realidade a que nos habituámos ao longo dos anos. E é preferível à negação dos factos.
Mas, é neste quadro que nos movemos, hoje, em Portugal.
Felizmente, quanto aos grandes objectivos nacionais, há um larguíssimo acordo entre os Portugueses. Vocação universal, pertença europeia, importância essencial de lusofonia, transatlantismo, defesa do Estado Social de Direito, aposta na educação, na ciência, na inovação, combate às desigualdades e à pobreza, maior circulação social e mais fortes classes médias, mais e melhor democracia e sobreposição do poder político ao poder económico. E, ainda, como condições necessárias, crescimento e emprego sem desequilíbrios financeiros insanáveis.

Felizmente, também, há, no nosso País, neste momento, dois caminhos muito bem definidos e diferenciados quanto à governação, ao modo de se atingir as metas nacionais.
Diversos quanto ao papel do Estado na economia e na sociedade. Diversos quanto às prioridades para a criação de riqueza. Diversos quanto ao tempo e ao modo da redistribuição da riqueza. Diversos na filosofia e na prática política.
Cada um desses caminhos é plural, mas querendo ser alternativo ao outro. Com lideranças e propostas próprias. Clarificação esta muito salutar e fecunda.
A Democracia faz-se de pluralismo, de debate, de alternativa. Assim, quem se pretenda alternativa, de um lado e de outro, demonstre, em permanência, a humildade e a competência para tanto.

Temos, assim, amplo acordo de objectivos nacionais, por um lado, e dois distintos modelos de governação, por outro.
O que motiva três interrogações.
Quer isto dizer que vamos prosseguir em clima de campanha eleitoral?
Ou que os consensos sectoriais de regime são impossíveis?
Ou que a unidade essencial entre os Portugueses é questionada pelas duas distintas propostas de Governo?

A resposta a estas três questões só pode ser negativa para os Portugueses. E, em particular, para o Presidente da República, cujo mandato nacional é, por sua própria natureza, mais longo e mais sufragado do que os mandatos partidários. E não depende de eleições intercalares.
Não. Portugal não pode nem deve continuar a viver, sistematicamente, em campanha eleitoral. Exige estabilidade política, crucial para a estabilidade económica e social. O estar adquirida, finalmente, essa estabilidade é um sinal de pacificação democrática que deve reconfortar os Portugueses. 

Não. O estimulante pluralismo político não impede consensos sectoriais de regime. Alguns dos quais não precisam sequer de formalização para se irem afirmando diariamente. Como na Saúde, por exemplo, onde o que aproxima é, cada vez mais, mais do que aquilo que afasta. Mas esse pode ser, como já disse, um primeiro passo apenas para consensos noutros domínios, da vitalização do sistema político ao traçado e estabilidade do sistema financeiro, ao sistema de Justiça e à Segurança Social. Possivelmente, com passos lentos mas profícuos.

Não. A saudável contraposição de duas fórmulas de Governo não atinge o fundamental na unidade dos Portugueses.
Como nunca atingiu.

É olhar para a forma como Portuguesas e Portugueses estão a viver a saída de uma crise, certamente uma das mais pesadas desde o 25 de Abril de 1974.
Elas e eles sofreram sacrifícios, cortes, penalizações. Adiaram sonhos e congelaram projetos de vida. Viram familiares partirem, substituíram empregos sólidos por expedientes de emergência.
E uniram-se. Filhos voltaram para casa dos pais. Avós receberam filhos e netos. Mudaram de terra e sobreviveram em conjunto.
Uniram-se. E assim puderam e podem começar a reacreditar no futuro. Elas e eles foram os grandes vencedores sobre a crise.

Continuam, agora, a pensar coisas diferentes. A votar em listas diversas. A divergir na política, no trabalho, na vida local, no desporto.
Para uns, a governação atual é promissora. Para outros, um logro.
Para todos, contudo, uma certeza existe neste tempo: mais instabilidade, mais insegurança, não abre caminhos, fecha horizontes.
E, por isso, vivem já uma distensão, impensável há escassos meses.

Neste 25 de abril de 2016, quarenta e dois anos depois do 25 de Abril de 1974, essa lição é um sentido de vida para tempos difíceis, a apelarem à sensatez.
Unamo-nos no essencial. Sem com isso minimamente negarmos a riqueza do confronto democrático, em que Governos aplicam as suas ideias e oposições robustecem as suas alternativas.
Troquemos as emoções pelo bom senso.
Naqueles que devem governar, com voluntarismo mas com especial atenção a que o possível seja suficiente, e mais do que isso, seja bom para Portugal.
Naqueles que devem contestar, com firmeza mas com a noção de que o tempo não muda convicções, mas pode alterar ou condicionar soluções.

A Democracia criada a partir do 25 de Abril de 1974 tem de ser recriada, todos os dias, para se não negar, nem negar futuro aos Portugueses.
Saibamos, também, todos nós, honrá-la e servi-la, renovando o que importa renovar, debatendo o que há a debater, sonhando o que há a sonhar.
Mas olhando para o exemplo dos mais simples e humildes. Do Povo que é a verdadeira origem do poder.
Preservando sempre a unidade no essencial.

A pensar em Portugal!

quinta-feira, 10 de março de 2016

Tomada de posse de PR de Marcelo Rebelo de Sousa


Discurso integral do Presidente da República Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa, na tomada de posse, m 9 de Março de 2016.
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Portugal é a razão de ser do compromisso solene que acabo de assumir.
Aqui nasci, aqui aprendi com meus Pais a falar a língua que nos une e une a centenas de milhões por todo o mundo.
Aqui eduquei os meus filhos e espero ver crescer os meus netos.
Aqui se criaram e sempre viverão comigo aqueles sentimentos que não sabemos definir, mas que nos ligam a todos os Portugueses. Amor à terra, saudade, doçura no falar, comunhão no vibrar, generosidade na inclusão, crença em milagres de Ourique, heroísmo nos instantes decisivos.
É para Portugal, para cada Portuguesa e para cada Português que vai o meu primeiro e decisivo pensamento.
Feito de memória, lealdade, afecto, fidelidade a um destino comum.

Senhor Presidente da Assembleia da República, Senhor Dr. Eduardo Ferro Rodrigues,
Na pessoa de Vossa Excelência, saúdo a representação legítima e plural da vontade popular expressa na Assembleia da República. E garanto a solidariedade institucional indefectível entre os dois únicos órgãos de soberania fundados no voto universal e directo de todo o Povo que somos.

Senhor Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva,
Ao percorrer, num imperativo exercício de memória, a longa e singular carreira de serviço à Pátria de Vossa Excelência – com uma década na chefia do Governo e uma década na chefia do Estado, que, largamente, definiram o Portugal que temos – entendo ser estrito dever de justiça – independentemente dos juízos que toda a vivência política suscita – dirigir a Vossa Excelência uma palavra de gratidão pelo empenho que sempre colocou na defesa do interesse nacional – da óptica que se lhe afigurava correcta, é certo – mas sacrificando vida pessoal, académica e profissional em indesmentível dedicação ao bem comum.

Senhor General António Ramalho Eanes e Senhor Dr. Jorge Sampaio,
A presença de Vossas Excelências é símbolo da continuidade e da riqueza da nossa Democracia, linhagem na qual também se insere o Senhor Dr. Mário Soares.
Democracia que se enobrece com a presença de três ilustres convidados estrangeiros que nos honram, ao aceitarem os convites pessoais que formulei, correspondentes a coordenadas essenciais da nossa política externa.
Da origem nacional, convertida em exemplares vizinhança, irmandade e cumplicidade europeias, na pessoa de Sua Majestade o Rei Filipe VI.

Da vontade de construir um novo futuro assente numa eloquente e calorosa fraternidade, e comunidade de destino, na pessoa de Sua Excelência o Presidente Filipe Nyusi.
Da constante afirmação do nosso empenho numa Europa unida e solidária, na pessoa de Sua Excelência o Presidente Jean-Claude Juncker. Acresce a esta dimensão de Estado uma outra, pessoal, em que se juntam respeito, laços antigos e grata amizade.

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Deputados,

Escreveu um Herói Português do Século XIX que “este Reino é obra de soldados”. Assim foi, na verdade, desde a fundação de Portugal, atestada em Zamora e reconhecida urbi et orbi pela Bula “Manifestis Probatum est”.
Nas batalhas da expansão continental ou da defesa e restauração da independência, como nas epopeias marítimas ou, nos nossos dias, nas missões de paz, ou humanitárias, dentro e fora da Europa. Com as nossas Forças Armadas sempre fiéis a Portugal.
Assim foi, também, em 25 de Abril de 1974, com os jovens capitães, resgatando a liberdade, anunciando a Democracia, permitindo converter o Império Colonial em Comunidade de Povos e Estados independentes, prometendo a paz, o desenvolvimento e a justiça para todos.

A quantos – militares e civis – fizeram o Portugal de sempre, como, de modo particular, a quantos – civis e militares – construíram a República Democrática devemos aqui estar, eleitos pelo Povo, em cumprimento da Constituição.
Digo bem, a Constituição. Neste mesmo hemiciclo, discutida e aprovada no meio de uma Revolução. E promulgada há quase quarenta anos, no dia 2 de Abril de 1976.
Recordo, com emoção, esses tempos inesquecíveis, em que, jovem constituinte, juntei a minha voz e o meu voto a tantos mais, vindos de quadrantes tão diversos, tendo percorrido caminhos tão variados, havendo somado anos ou mesmo décadas de luta ao combate do momento.

Para que pudesse nascer a Constituição que nos rege, e que foi sendo revista e afeiçoada a novas eras.
Por isso, a Lei Fundamental continua a ser o nosso denominador comum. Todos, nalgum instante, contribuíram para, ao menos, uma parte do seu conteúdo.
Defendê-la, cumpri-la e fazê-la cumprir é dever do Presidente da República.
E sê-lo-ia sempre, mesmo que o tê-la votado, o ter acompanhado algumas das suas principais revisões e o tê-la ensinado ao longo de 40 anos, não responsabilizassem acrescidamente quem acaba de assumir perante vós as funções presidenciais.
O Presidente da República será, pois, um guardião permanente e escrupuloso da Constituição e dos seus valores, que, ao fim e ao cabo, são os valores da Nação que nos orgulhamos de ser.

O valor do respeito da dignidade da pessoa humana, antes do mais.
De pessoas de carne e osso. Que têm direito a serem livres, mas que têm igual direito a uma sociedade em que não haja, de modo dramaticamente persistente, dois milhões de pobres, mais de meio milhão em risco de pobreza, e, ainda, chocantes diferenças entre grupos, regiões e classes sociais.
Salvaguardar a vida, a integridade física e espiritual, a liberdade de pensamento, de crença e de expressão e o pluralismo de opinião e de organização é um dever de todos nós.
Como é lutar por mais justiça social, que supõe efectiva criação de riqueza, mas não se satisfaz com a contemplação dos números, quer chegar às pessoas e aos seus direitos e deveres.

Valores matriciais da Constituição são, de igual modo, os da identidade nacional, feita de raízes na nossa terra e no nosso mar, mas de vocação universal – plataforma que constituímos entre continentes e, sobretudo, entre culturas e civilizações.
Raízes nesta terra e neste mar, que formam um verdadeiro arquipélago com três vértices – Continente, Açores e Madeira –, e abarca o Oceano que nos fez e faz grandes. Daí o podermos e devermos continuar a assumir o Mar como prioridade nacional. Prioridade nascida de uma geoestratégica e, sobretudo, de uma vocação universal – como escrevia António Lobo Antunes: “se a minha terra é pequena, eu quero morrer no mar”.
Vocação universal, de Nação repartida pelos cinco continentes, em que mais de metade de nós, entre nacionais e descendentes, vive a criar Portugais fora do nosso território físico, mas dentro do nosso território espiritual.

Vocação universal, no abraço que nos liga aos povos irmãos, que partilham a nossa língua, numa comunidade aberta e inclusiva.
Vocação universal, em que a História se junta à Geografia, e em que o sermos europeus no ponto de partida e na firme vontade de participarmos na unidade europeia se enriquece com o sermos transatlânticos e, mais do que isso, podermos aproximar gentes e falas e economias e sociedades as mais distintas, sem xenofobias, intolerâncias, complexos de falsa superioridade ou de incompreensível inferioridade.
Em suma, identidade nacional feita de solo e sangue, e aposta na Língua, na Educação, na Ciência, na Cultura, na capacidade de saber conjugar futuro com passado, sem medo de enfrentar o presente.

Uma identidade vivida em Estado de Direito Democrático, representativo, mas também participativo e referendário. Plural e fraterno. Respeitador da soberania popular, da separação e conjugação de poderes, da independência da Justiça, da autonomia político-legislativa dos Açores e da Madeira e da autonomia administrativa do Poder Local.
Zeloso na protecção das liberdades pessoais e políticas, mas apostado na afirmação dos direitos económicos, sociais e culturais. E, por isso, Estado Social de Direito.
Em que a criatividade da iniciativa privada se conjuga com o relevante Sector Social, e tem sempre presente que o poder económico se deve subordinar ao poder político e não este servir de instrumento daquele.
Dito de outra forma, o poder político democrático não deve impedir, nos seus excessos dirigistas, o dinamismo e o pluralismo de uma sociedade civil – tradicionalmente tão débil entre nós –, mas não pode demitir-se do seu papel definidor de regras, corrector de injustiças, penhor de níveis equitativos de bem-estar económico e social, em particular, para aqueles que a mão invisível apagou, subalternizou ou marginalizou.

É no quadro desta Constituição – que, como toda a obra humana, não é intocável, mas que exige para reponderação consensos alargados, que unam em vez de dividir – que temos, pela frente, tempos e desafios difíceis a superar.
Temos de saber compaginar luta, no plano universal, pelos mesmos valores que nos regem – dignidade da pessoa, paz, justiça, liberdade, desenvolvimento, equidade intergeracional ou valorização do ambiente – com a defesa da reforma de instituições que se tornem notoriamente desajustadas ou insuficientes.

Temos de ser fiéis aos compromissos a que soberanamente nos vinculámos – em especial, aos que correspondem a coordenadas permanentes da nossa política externa, como a União Europeia, a CPLP e a Aliança Atlântica –, nunca perdendo a percepção de que, também quanto a elas, há sinais de apelo a reflexões de substância, de forma, ou de espírito solidário, num contexto muito diverso daqueles que testemunharam as suas mais apreciáveis mudanças. Os desafios dos refugiados na Europa, da não discriminação económica e financeira na CPLP e das fronteiras da Aliança Atlântica, são apenas três exemplos, de entre muitos, de questões prementes relevantes, mesmo se incómodas.
Temos de sair do clima de crise, em que quase sempre vivemos desde o começo do século, afirmando o nosso amor-próprio, as nossas sabedoria, resistência, experiência, noção do fundamental.

Temos de ir mais longe, com realismo mas visão de futuro, na capacidade e na qualidade das nossas Educação e Ciência, mas também da Saúde, da Segurança Social, da Justiça e da Administração Pública e do próprio sistema político e sua moralização e credibilização constantes, nomeadamente pelo combate à corrupção, ao clientelismo, ao nepotismo.
Temos, para tanto, de não esquecer, entre nós como na Europa a que pertencemos, que, sem rigor e transparência financeira, o risco de regresso ou de perpetuação das crises é dolorosamente maior, mas, por igual, que finanças sãs desacompanhadas de crescimento e emprego podem significar empobrecimento e agravadas injustiças e conflitos sociais.
Temos de cicatrizar feridas destes tão longos anos de sacrifícios, no fragilizar do tecido social, na perda de consensos de regime, na divisão entre hemisférios políticos.
Tudo indesejável, precisamente em anos em que urge recriar convergências, redescobrir diálogos, refazer entendimentos, reconstruir razões para mais esperança.

Temos de reforçar o sentido de pertença a uma Pátria, que é a mesma para todos e perante a qual só há – ou deve haver – Portugueses de igual dignidade e estatuto.
São difíceis, complexos, envoltos em incógnitas os reptos evocados?
Obrigam a trabalhos reforçados perante um mundo incerto, uma Europa a braços com tensões novas em solidariedades internas e externas, finanças públicas a não comportarem temeridades, sistema financeiro que previna em vez de remediar e não crie ostracismos ou dependências contrárias ao interesse nacional, política a ensaiar fórmulas novas, exigência de respostas mais claras, mais rápidas e mais equitativas?

Sem dúvida.
Depois da transição da revolução para o constitucionalismo, da estabilização da democracia partidária, da adesão europeia e da adopção do euro, das expectativas elevadas da viragem do século e das frustrações, entretanto, vividas, bem como da resposta abnegada dos Portugueses, esperam-nos cinco anos de busca de unidade, de pacificação, de reforçada coesão nacional, de encontro complexo entre democracia e internacionalização estratégica, dentro e fora de fronteiras e entre crescimento, emprego e justiça social de um lado, e viabilidade financeira do outro, de criação de consonâncias nos sistemas sociais e políticos, de incessante construção de uma comunidade convivial e solidária.
Nunca perdendo a Fé em Portugal e na nossa secular capacidade para vencer as crises.
Nunca descrendo da Democracia.
Nunca deixando morrer a esperança.
Nunca esquecendo que o que nos une é muito mais importante e duradouro do que aquilo que nos divide.
Persistindo quando a tentação seja desistir.
Convertendo incompreensões em ânimo redobrado.
Preferindo os pequenos gestos que aproximam às grandes proclamações que afastam.

Com honestidade. Com paciência. Com perseverança. Com temperança. Com coragem. Com humildade.
É, arrimado a estes valores e animado destes propósitos, que inicia o seu mandato o quinto Presidente da República livremente eleito em Democracia.
E, porque, livremente eleito pelo voto popular, Presidente de todos sem excepção.
Um Presidente que não é nem a favor nem contra ninguém. Assim será politicamente, do princípio ao fim do seu mandato.
Mas, socialmente, a favor do jovem que quer exercitar as suas qualificações e, debalde, procura emprego.
Da mulher que espera ver mais reconhecido o seu papel num mundo ainda tão desigual.
Do pensionista ou reformado que sonhou, há trinta ou quarenta anos, com um 25 de Abril que não corresponde ao seu actual horizonte de vida.
Do cientista à procura de incentivos sempre adiados.
Do agricultor, do comerciante, do industrial, que, dia a dia, sobrevive ao mundo de obstáculos que o rodeiam.
Do trabalhador por conta de outrem ou independente, que paga os impostos que vão sustentando muito dos sistemas que legitimamente protegem os que mais sofrem no nosso Estado Social.
Do novo e ousado talento que vai mudando a nossa sociedade e a nossa economia.
Da IPSS, da Misericórdia, da instituição mais próxima das pessoas – nas Regiões Autónomas e nas Autarquias –, que cuida de muitos, de quem ninguém mais pode cuidar melhor.
Do que, no interior ainda distante, nas Ilhas, às vezes esquecidas, nas Comunidades que povoam o mundo, é permanente retrato da nossa tenacidade como Nação.
De todos estes e de muitos mais.
O Presidente da República é o Presidente de todos.
Sem promessas fáceis, ou programas que se sabe não pode cumprir, mas com determinação constante. Assumindo, em plenitude, os seus poderes e deveres.
Sem querer ser mais do que a Constituição permite.
Sem aceitar ser menos do que a Constituição impõe.

Um servidor da causa pública. Que o mesmo é dizer, um servidor desta Pátria de quase nove séculos.
Pátria que nos interpela a cada passo. Exigindo muito mais e muito melhor.
Mas a resposta vem de um dos nossos maiores, Miguel Torga. Que escreveu em 1987, vai para trinta anos:

“O difícil para cada português não é sê-lo; é compreender-se. Nunca soubemos olhar-nos a frio no espelho da vida. A paixão tolda-nos a vista. Daí a espécie de obscura inocência com que atuamos na História. A poder e a valer, nem sempre temos consciência do que podemos e valemos. Hipertrofiamos provincianamente as capacidades alheias e minimizamos maceradamente as nossas, sem nos lembrarmos sequer que uma criatura só não presta quando deixou de ser inquieta. E nós somos a própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas…
…Não somos um povo morto, nem sequer esgotado. Temos ainda um grande papel a desempenhar no seio das nações, como a mais ecuménica de todas. O mundo não precisa hoje da nossa insuficiente técnica, nem da nossa precária indústria, nem das nossas escassas matérias-primas. Necessita da nossa cultura e da nossa vocação para o abraçar cordialmente, como se ele fosse o património natural de todos os homens.”
Pode soar a muito distante este retrato, quando se multiplicam, na ciência, na técnica, na criação da riqueza, tantos exemplos da inventiva portuguesa, entre nós ou nos confins do universo.
E, no entanto, Torga viu o essencial.

O essencial, é que continuamos a minimizar o que valemos.
E, no entanto, valemos muito mais do que pensamos ou dizemos.
O essencial, é que o nosso génio – o que nos distingue dos demais – é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica. Abraçando o mundo todo.
Ela nos fez como somos.
Grandes no passado.
Grandes no futuro.
Por isso, aqui estamos.
Por isso, aqui estou.
Pelo Portugal de sempre