SERMÃO DO NASCIMENTO
DA VIRGEM MARIA DEBAIXO DA INVOCAÇÃO DE N. SENHORA DA LUZ, TÍTULO DA IGREJA E
COLÉGIO DA COMPANHIA DE JESUS,
NA CIDADE DE S. LUÍS
DO MARANHÃO. ANO DE 1657
De qua natus est Jesus.[1]
I
Por que no dia do nascimento da
Virgem nos propõe a Igreja o Evangelho do nascimento de Cristo? O sol nasce
duas vezes; quando aparece a luz e quando aparece o astro. Desse modo é que se
deve interpretar o que dizem os evangelistas e o Gênesis. Quem é o sol duas
vezes nascido? É Cristo, que nasceu quando nasceu Maria em Nazaré, e quando ele
próprio nasceu em Belém.
Celebramos hoje o nascimento; mas
que nascimento celebramos? Se o perguntarmos à Igreja, responde que o
nascimento de Maria; se consultarmos o Evangelho, lemos nele o nascimento de
Jesus: De qua natus est Jesus. Assim temos encontrados nas mesmas palavras que
propus, o texto como mistério, o tema com o sermão, e um nascimento com outro.
Se a Igreja celebrara neste dia o nascimento glorioso de Cristo, muito
acomodado Evangelho nos mandava ler; mas o dia e o nascimento que festejamos
não é o do Filho, é o da Mãe. Pois se ainda hoje nasce a Mãe, como nos mostra
já a Igreja e o Evangelho não a Mãe, senão o Filho nascido: De qua natus est
Jesus? Só no dia de Nossa Senhora da Luz se pudera responder cabalmente a esta
dúvida. O sol, se bem advertirdes, tem dois nascimentos: um nascimento com que
nasce quando nasce, e outro nascimento com que nasce antes de nascer. Aquela
primeira luz da manhã que apaga ou acende as sombras da noite, cuja luz é? E
luz do sol. E esse sol então está já nascido? Não e sim. Não, porque ainda não
está nascido em si mesmo. Sim, porque já está nascido na sua luz. De sorte que
naturalmente vêem os nossos olhos ao sol duas vezes nascido: nascido quando
nasce, e nascido antes de nascer.
Grande prova temos desta
filosofia na mesma história evangélica, e é um dos mais aparentes encontros que
se acham em toda ela. Partiram as Marias ao sepulcro na manhã do terceiro dia,
e referindo o evangelista, S. Marcos a hora a que chegaram, diz assim: Valde
mane una subbatorum veniunt ad monumentum orto jam sole: Ao domingo muito de
madrugada chegaram ao sepulcro sendo já o sol nascido (Mc. 16, 2). Notável
dizer! Se era já o sol nascido: Orto jam sole, como era muito de madrugada:
Valde mane? E se era muito de madrugada; Valde mane, como era já o sol nascido:
Orto jam sole? Tudo era e tudo podia ser, diz Santo Agostinho, porque era o sol
nascido antes de nascer.[2] Ora vede. O tempo em que vieram as Marias ao
sepulcro era muito de madrugada: Valde mane, diz S. Marcos; Valde diluculo, diz
S. Lucas (Lc. 24, 2). Era muito de madrugada: Valde mane? Logo já havia alguma
luz que isso quer dizer diluculo. Havia luz? Logo, já o sol estava nascido:
Orto jam sole. Provo a conseqüência, porque o sol, como dizíamos, tem dois
nascimentos: um nascimento quando vem arraiando aquela primeira luz da manhã a
que chamamos aurora; outro nascimento quando o sol descobre, ou acaba de
desaparecer em si mesmo. E como o sol não só nasce quando nasce em si mesmo,
senão também quando nasce na sua luz, por isso disse o evangelista com toda a
verdade, que era de madrugada e que era o sol nascido. Nenhuma destas palavras
é minha; todas são da glosa de Lirano seguindo a Santo Agostinho: Valde mane,
orto jam sole: Sol enim potest oriri dupliciter: uno modo perfecte, quando
primo egreditur et apparet super terram; alio modo, quando lux ejus incipit
apparere, scilicet in aurora, et sic accipitur hic ortus solis.[3] Não o podia
dizer mais em português. De maneira que àquela primeira luz com que se rompem
as trevas da noite, chamou S. Marcos nascimento do sol, porque em todo o rigor
da verdade evangélica, não só nasce o sol quando nasce em si mesmo, senão
quando nasce na sua luz. Um nascimento do sol é quando nasce em si mesmo e
aparece sobre a terra: Quando primo egreditur et apparet super terram; o outro
nascimento é antes de nascer em si mesmo, quando nasce e aparece a sua luz:
Quando lux ejus incipit apparere. É o que estamos vendo neste dia, e o que nos
está pregando a Igreja neste Evangelho. O dia mostra-nos nascida a luz, o
Evangelho mostra-nos nascido o sol, e tudo é. Não é o dia em que o sol apareceu
nascido sobre a terra: Quando primo egreditur et apparet super terram, mas é o dia
em que aparece nascido na luz da sua aurora: Quando lux ejus incipit apparere,
scilicet in aurora: porque, se o sol não está ainda nascido em si mesmo, já
está nascido na luz de que há de nascer: De qua natus est Jesus.
Estava dito. Mas por que parecerá
novidade dar dois nascimentos e dois dias de nascimentos a Cristo, saibam os
curiosos que não é novidade nova senão mui antiga, e uma das mais bem
retratadas verdades que o Criador do mundo nos pintou no princípio dele. No
primeiro dia do mundo criou Deus a luz, no quarto dia criou o sol. Sobre estes
dois dias e estas duas criações há grande batalha entre os doutores, porque se
o sol é a fonte da luz, que luz é esta que foi criada antes do sol? Ou é a
mesma luz do sol, ou é outra luz diferente? Se é a mesma, por que não foi
criada no mesmo dia? E se é diferente, que luz é, ou que luz pode haver
diferente da luz do sol? Santo Tomás, e com ele o sentir mais comum dos
teólogos, resolve que a luz que Deus criou o primeiro dia foi a mesma luz de
que formou o sol ao dia quarto. De modo que em ambos estes dias e em ambas
estas criações foi criado o sol. No primeiro dia foi criado o sol informe; no
quarto dia foi criado o sol formado. São os termos de que usa Santo Tomás. No
primeiro dia foi criado o sol informe, porque foi criado em forma de luz; no
quarto dia foi criado o sol formado, porque foi criado em forma de sol.[4] Em
conclusão, que entre todas as criaturas só o sol teve dois dias de nascimento:
o primeiro dia e o quarto dia. O quarto dia em que nasceu em si mesmo, e o
primeiro em que nasceu na sua luz. O quarto dia em que nasceu sol formado, e o
primeiro em que nasceu na luz de que se formou. Pode haver propriedade mais
própria? Agora pergunto eu, se alguém me não entendeu ainda: quem é este sol
duas vezes nascido? E quem é esta luz de que se formou este sol? O sol é Jesus,
a luz é Maria, diz Alberto Magno. E não era necessário que ele o dissesse.
Assim como o sol nasceu duas vezes, e teve dois dias de nascimento; assim como
o sol nasceu uma vez quando nascido e outra antes de nascer; assim como o sol
uma vez nasceu em si mesmo, e outra na sua luz; assim, nem mais nem menos, o
sol Divino, Cristo, nasceu duas vezes e teve dois dias de nascimento. Um dia em
que nasceu em Belém, outro em que nasceu em Nazaré. Um dia em que nasceu quando
nascido, que foi em vinte e cinco de dezembro, e outro dia em que nasceu antes
de nascer, que foi neste venturoso dia. Um dia em que nasceu de sua Mãe, outro
dia em que nasceu com ela. Um dia em que nasceu em si mesmo, outro dia em que
nasceu naquela de quem nasceu: De qua natus est Jesus.
Temos introduzido e concordado o
Evangelho, que não é a menor dificuldade deste dia. Para satisfazermos à
segunda obrigação, que não é senão a primeira, peçamos à Senhora da Luz nos
comunique um raio da sua. Ave Maria.
II
Razões por que devemos festejar
este dia antes por nascimento da luz que por nascimento do sol. Cristo sol de
justiça, e a Senhora da Luz, Mãe de misericórdia.
De qua natus est Jesus. Suposto
que temos neste natus do Evangelho dois nascidos, e nesse nascimento dois
nascimentos: o nascimento da luz, Maria, nascida em si mesma, e o nascimento do
sol, Cristo, nascido na sua luz, qual destes nascimentos faz mais alegre este
dia? E por qual deles o devemos mais festejar? Por dia do nascimento da luz, ou
por dia do nascimento do sol? Com licença do mesmo sol, ou com lisonja sua,
digo que por dia do nascimento da luz. E por quê? Não por uma razão, nem por
duas, senão por muitas. Só quatro apontarei, porque desejo ser breve. Primeira
razão: porque a luz é mais privilegiada que o sol. Segunda: porque é mais
benigna. Terceira: porque é mais universal. Quarta: porque é mais apressada
para nosso bem. Por todos estes títulos é mais para festejar este dia por dia
do nascimento da luz, que por dia, ou por véspera, do nascimento do sol.
Mas porque este sol e esta luz,
entre os quais havemos de fazer a comparação, parecem extremos incomparáveis,
como verdadeiramente é incomparável Cristo sobre todas as puras criaturas,
entrando também neste número sua mesma mãe, antes que eu comece a me
desempenhar deste grande assunto, ou a empenhar-me nele, declaro que em tudo o
que disser, procede a comparação entre Cristo como Sol de justiça, e a Senhora
da Luz, como Mãe de misericórdia, e que assim como os efeitos da luz se referem
à primeira fonte dela, que é o sol, assim todos os que obra a Senhora em nosso
favor, são nascidos e derivados do mesmo Cristo, cuja bondade e providência
ordenou que todos passassem e se nos comunicassem por mão de sua Mãe, como
advogada e medianeira nossa, e dispensadora universal de suas graças. Assim o
supõe com S. Bernardo a mais pia e bem recebida teologia: Nihil Deus nos habere
voluit, quod per manus Mariae non transisset.[5] Isto posto:
III
Primeira razão: a luz é mais
privilegiada que o sol. A luz, e não o sol, é a chave que abre as portas do
dia. O dia é filho da luz e não do sol. O papel importante da luz na criação
do mundo. O nascimento da Virgem e a criação da luz.
Começando pelo primeiro título,
de ser a luz mais privilegiada, digo que é mais privilegiada a luz que o sol,
porque o dia, que é a vida e a formosura do mundo, não o faz o nascimento do
sol, senão o nascimento da luz. É advertência de Santo Ambrósio, e advertência
que quis o grande doutor que soubéssemos que era sua: Advertimus quod lucis
ortus, antequam solis, diem videatur aperire: Tenho advertido, diz Santo
Ambrósio, que o que primeiro abre e faz o dia, é o nascimento da luz, e não o
do 501.[6] Está esta grande máquina e variedade do universo coberta de trevas,
está o mundo todo fechado no cárcere da noite, e qual é a chave que abre as
portas ao dia? O sol? Não, senão a luz, porque ao aparecer do sol, já o mundo
está patente e descoberto: Diem sol clarificat, lux facit: O sol faz o dia mais
claro, mas a luz é a que faz o dia. E se não, vede, diz o santo: Frequenter
coelum nubibus texitur, ut sol tegatur, nec ullus radius ejus appareat; lux
tamen diem demonstrat: Quantas vezes acontece forrar-se o céu de nuvens
espessas, com que não aparece o sol, nem o menor de seus raios, e contudo,
ainda que não vemos o sol, vemos o dia. Por quê? Porque no-lo mostra a luz. Bem
se segue logo que o dia, tão necessário e tão proveitoso ao mundo, é filho da
luz, e não filho do sol.
Parece que tem alguma coisa de
sofístico este discurso de Santo Ambrósio, porque sendo a luz efeito do sol,
quem faz a luz faz o dia. Assim parece, mas não é assim. E quero dar uma prova
valente a uma razão que parece fraca. Noutras ocasiões declaramos a Escritura
com o santo; agora declararemos o santo com a Escritura. Diz Santo Ambrósio que
o dia é filho da luz, e não do sol. Provo e pergunto: O sol, em que dia o criou
Deus? Diz a Sagrada Escritura que criou Deus o sol ao dia quarto: Luminare
majus, ut praeesset diei; et factum est dies quartus (Gên. 1, 16, 19). Deus
criou o sol ao dia quarto? Logo, antes de haver sol já havia dias. Antes de
haver sol já havia dias? Logo o dia não é filho do sol. Pois de quem é filho? É
filho da luz. O mesmo texto sagrado: In principio creavit Deus caelum et terram
(Gên.1, U: No princípio, antes de haver dia nem noite, nem tempo, criou Deus o
céu e a terra. Et tenebrae erant super faciem abyssi: E o mundo todo estava
sepultado em um abismo de trevas. Dixitque Deus, fiat lux, et facta est lux: Disse
Deus, faça-se a luz, e foi feita a luz. Appellavitque lucem diem, et tenebras
noctem. Et factus est dies unus: E chamou Deus à luz dia, e às trevas noite,
deste modo se fez o primeiro dia que houve no mundo (Gên.1, 2, 3, 5). De
maneira, como bem dizia Santo Ambrósio, que o dia é filho da luz e não do sol;
ao nascimento da luz e não ao do sol deve o mundo o benefício do dia. O tempo
ditosíssimo da lei da graça em que estamos é odiado mundo; o tempo da lei da
natureza e da lei escrita, que já passou, foi a noite. Assim o diz S. Paulo:
Nox praecessit, dies auteum appropinquavit.[7] E quem foi a aurora que
amanheceu ao mundo este dia tão alegre, tão salutífero e tão vital, senão
aquela luz divina? O sol fez o dia mais claro, mas a luz, a que rompeu as trevas,
a luz foi a que venceu e despojou a noite, a luz foi a que fez o dia: Diem sol
clarificat, lux facit. Grande privilégio da luz sobre o sol, que ela e não ele,
ou ao menos, que ela primeiro que ele, seja a autora do dia.
Mas eu, sem me sair do mesmo passo,
ainda hei de dizer outro privilégio maior da mesma luz. Criou Deus a luz três
dias antes de criar o sol. Tanto que houve sol no mundo, logo houve também
olhos que o vissem e que gozassem de seus resplendores, porque o sol foi criado
ao quarto dia, e as aves e os peixes ao quinto; os animais da terra e os homens
ao sexto. De sorte que, como notou S. Basilio, todos os três dias em que a luz
esteve criada antes da criação do sol, não havia olhos no mundo.[8] Pois se não
havia olhos no mundo, para que criou Deus a luz? Que crie Deus o sol ao quarto
dia, bem está; porque no quinto e no sexto dia havia de criar os olhos de todos
os viventes; mas se no segundo, no terceiro e no quarto dia não houve nem havia
de haver olhos, por que cria Deus a luz no primeiro? Porque o sol criou-o Deus
para os olhos dos homens e dos animais; a luz criou-a Deus para os seus olhos.
E assim foi Fiat lux; et facta est lux, et vidit Deus lucem quod esset bona
(Gên. 1, 4): Disse Deus: Faça-se a luz, e fez-se a luz; e no mesmo ponto que
nasceu e apareceu a luz, logo foi o emprego e suspensão dos olhos de Deus:
Vidit Deus lucem. Digo emprego e suspensão porque quando Deus criou a luz, já
estava criado o céu, a terra, os elementos, os anjos, e nada disto levou após
si os olhos de Deus, senão a luz. Ela encheu os olhos de Deus de maneira que
sendo os olhos de Deus imensos, parece que não deixou neles lugar para os pôr
noutra coisa. Assim era a luz criada para os olhos de Deus, como o sol para os
dos homens e dos animais.
Não cuideis que digo injúrias ao
Sol Encamado, que assim quis Ele que fosse. Aparece no mundo o sol encamado,
Cristo, e que olhos o viram nascido? Olhos de homens e olhos de animais. Para o
verem nascido olhos de animais, ele mesmo foi buscar os animais a um presépio,
e para o verem nascido olhos de homens, ele os mandou buscar por uma estrela
entre os reis, e por um anjo entre os pastores. Os homens, pelo pecado,
estavam convertidos em animais: Homo, cum in honore esset non intellexit;
comparatus est jumentis.[9] Por isso se mostra o sol nascido aos olhos dos
homens e dos animais porque nascia para fazer de animais homens. Porém a luz,
como nascia para Mãe de Deus, oculta-se a todos os olhos criados, e só nasce
manifesta aos divinos: Vidit Deus lucem. Os olhos de Deus foram os que
festejaram o nascimento desta soberana luz, e festejaram-na aqueles três dias
em que não houve sol, nem outros olhos, porque tomou cada pessoa da Santíssima
Trindade um dia da festa por sua conta: Ipse est enfim lux, quae primam
distinxit dierum nostrorum trinitatem, disse S. Dionísio Areopagita.[10] Os
olhos do Padre festejaram o nascimento da luz o primeiro dia: Et vidit Deus
lucem, quod esset bona: E viu Deus Padre que a luz era boa para filha. Os olhos
do Filho festejaram o nascimento da luz o segundo dia: Et vidit Deus lucem,
quod esset bona: E viu Deus Filho que a luz era boa para Mãe. Os olhos do
Espírito Santo festejaram o nascimento da luz o terceiro dia: Et vidit Deus
lucem quod esset bona: E viu Deus Espírito Santo que a luz era boa para Esposa.
Assim festejou toda a Santíssima Trindade o nascimento daquela soberana luz, e
assim o devemos festejar nós. Ponde os olhos, cristãos, naquela luz, e pedi-lhe
que os ponha em vós e vereis como é boa para tudo: Vidit lucem quod esset bona.
Boa para a consolação, se estiveres afligido; boa para o remédio, se estiveres
necessitado; boa para a saúde, se estiveres enfermo; boa para a vitória, se
estiveres tentado; e se estiveres caído e fora da graça de Deus, boa, e só ela
boa, para vos conciliar com Ele. Tão cheia de privilégios de Deus nasce hoje
esta luz de quem Ele há de nascer! De qua natus est Jesus.
IV
Segunda razão: a luz é mais
benigna que o sol. O sol e a nuvem que guiava os filhos de Israel pelo deserto.
Os rigores do sol da justiça e as benignidades da luz. O nascimento de Maria é
a passagem do sol do signo do Leão para o signo da Virgem. Maria e a sarça
ardente do deserto. S. João, o novo signo celeste e a humanização do sol.
O segundo título por que se deve
mais festejar o dia deste nascimento é por ser a luz mais benigna. É a luz mais
benigna que o sol, porque o sol alumia, mas abrasa; a luz alumia e não ofende.
Quereis ver a diferença da luz ao sol? Olhai para o mesmo sol e para a mesma
luz de que ele nasce, a aurora. A aurora é o riso do céu, a alegria dos campos,
a respiração das flores, a harmonia das aves, a vida e alento do mundo. Começa
a sair e a crescer o sol, eis o gesto agradável do mundo e a composição da
mesma natureza toda mudada. O céu acende-se, os campos secam-se, as flores
murcham-se, as aves emudecem, os animais buscam as covas, os homens as sombras.
E se Deus não cortara a carreira ao sol, com a interposição da noite, fervera e
abrasara-se a terra, arderam as plantas, secaram-se os rios, sumiram-se as
fontes, e foram verdadeiros e não fabulosos os incêndios de Faetonte. A razão
natural desta diferença é porque o sol, como dizem os filósofos, ou
verdadeiramente é fogo, ou de natureza mui semelhante ao fogo, elemento
terrível, bravo, indômito, abrasador, executivo, e consumidor de tudo. Pelo
contrário, a luz em sua pureza, é uma qualidade branda, suave, amiga, enfim,
criada para companheira e instrumento da vista, sem ofensa dos olhos, que são
em toda a organização do corpo humano a parte mais humana, mais delicada e mais
mimosa. Filósofos houve que pela sutileza e facilidade da luz, chegaram a
cuidar que era espírito e não corpo. Mas porque a filosofia humana ainda não
tem alcançado perfeitamente a diferença da luz ao sol, valhamo-nos da ciência
dos anjos.
Aquele anjo visível que guiava os
filhos de Israel pelo deserto, diz o texto, que marchava com duas colunas de
prodigiosa grandeza, uma de nuvem de dia, e outra de fogo de noite: Per diem in
columna nubis, per noctem in columna ignis (Êx.13, 21). E por que e para que
levava o anjo estas duas colunas de nuvem e fogo? A de nuvem, para reparo do
sol, a de fogo, para continuação da luz. Tanto que anoitecia, acendia o anjo a
coluna de fogo sobre os arraiais, para que tivessem sempre luz. E tanto que
amanhecia, atravessava o anjo a coluna de nuvem, para que ficassem reparados e
defendidos do sol. De maneira que todo o cuidado do anjo sobre os seus
encomendados consistia em dois pontos: o primeiro, que nunca lhes tocasse o
sol; o segundo, que nunca lhes faltasse a luz. Tão benignas qualidades
reconhecia o anjo na luz, e tão rigorosas no sol.
Estas são as propriedades
rigorosas e benignas do sol e da luz natural. E as mesmas, se bem o
considerarmos, acharemos no Sol e na Luz divina. Cristo é sol, mas sol de
justiça, como lhe chamou o profeta: Sol justitiae (Mal. 4, 2). E que muito que
no sol haja raios e na justiça rigores? Todos os rigores que tem obrado no
mundo o sol natural, tantas secas, tantas esterilidades, tantas sedes, tantas
fomes, tantas doenças, tantas pestes, tantas mortandades, tudo foram execuções
do sol de justiça, o qual as fez ainda maiores. O sol material nunca queimou
cidades, e o sol de justiça queimou e abrasou em um dia as cinco cidades de
Pentápolis inteiras, sem deixar homem à vida, nem dos mesmos edifícios e pedras
mais que as cinzas. Tais são os rigores daquele sol divino. Mas a benignidade
da luz que hoje nasce, e de que ele nasceu, como a poderei eu explicar? Muitas
e grandes coisas pudera dizer desta soberana benignidade, mas direi só uma que
vale por todas. É tão benigna aquela divina luz, que sendo tão rigorosos e tão
terríveis os raios do divino sol, ela só basta para os abrandar e fazer também
benignos.
Por que vos parece que nasce a
Virgem Maria em tal dia como hoje? Se o dia do nascimento de Cristo foi
misterioso, e misterioso o dia do nascimento do Batista, por ser o precursor de
Cristo, quanto mais odiada Mãe de Cristo? Pois que mistério tem nascer a
Senhora neste dia? Muito grande mistério. O mistério do dia do nascimento de
Cristo, como notou Santo Agostinho, foi porque naquele tempo volta o sol para
nós, e começam os dias a crescer. O mistério do dia do nascimento do Batista
foi porque naquele tempo se aparta o sol de nós, e começam os dias a diminuir.
E o mistério do dia do nascimento da Senhora é porque neste tempo passa o sol
do signo do Leão para o signo da Virgem, e começa o mesmo sol a abrandar. O
caminho do sol é pelos doze signos celestes, em que tem diferentes efeitos,
conforme a constelação e qualidades de cada um. Quando o sol anda no signo de
Leão, como se tomara a natureza daquele animal colérico e assanhado, tais são
os seus efeitos: calores, securas, enfermidades malignas, tresvarios, sangue,
mortes. Porém tanto que o sol passa do signo do Leão ao signo de Virgem, já o
Leão começa a abrandar, já vai manso, já vai pacífico, já vai cordeiro. O mesmo
sucedeu aos rigores do nosso sol. Lede o Testamento Velho, e achareis que Deus
antigamente afogava exércitos, queimava cidades, alagava mundos, despovoava
paraísos. E hoje, sendo os pecados dignos de maior castigo pela circunstância
do tempo, da fé e dos benefícios, não se vêem em Deus semelhantes rigores. Pois
por que, se Deus é o mesmo, e a sua justiça a mesma? Porque então estava o sol
no signo do Leão; agora está no signo de Virgem. Como o sol entrou no signo de
Virgem, logo aquela benigna luz lhe amansou os rigores, lhe embargou as
execuções, e lhe temperou de tal maneira os raios, que ao mesmo fogo abrasador
de que eram compostos, lhe tirou as atividades com que queimava e só lhe deixou
os resplendores com que luzia. Grande caso, mas provado!
Vê Moisés no deserto uma sarça
que ardia em fogo, e não se queimava (Êx. 3, 3). Pasma da visão, parte a vê-la
de mais perto, e quanto mais caminha e vê, tanto mais pasma. – Ser fogo, o que
estou vendo, não há dúvida; aquela luz intensa, aquelas chamas vivas, aquelas
labaredas ardentes, de fogo são; mas a sarça não se consome, a sarça está
inteira, a sarça está verde. Que maravilha é esta? Grande maravilha para quem
não conhecia o fogo nem a sarça, mas para quem sabe que o fogo era Deus, e a
sarça Maria, ainda era maravilha maior, ou não era maravilha. O fogo era Deus
que vinha libertar o povo. Assim diz o texto. A sarça era Maria, em quem Deus
tomou forma visível, quando veio libertar o gênero humano. Assim o diz S.
Jerônimo, Santo Atanásio, S. Basílio, e a mesma Igreja.[11] Como o fogo estava
na sarça, como Deus estava em Maria, já o seu fogo não tinha atividades para
queimar. Luzir sim, resplender sim, que são efeitos de luz; mas queimar,
abrasar, consumir, que são efeitos de fogo, isso não, que já lhos tirou Maria.
Já Maria despontou os raios do sol; por isso luzem, e não ferem, ardem e não
queimam, resplandecem e não abrasam. Parece-vos maravilha que assim abrandasse
aquela benigna luz os rigores do sol? Parece-vos grande maravilha que assim lhe
apagasse o fogoso e abrasado, e lhe deixasse só o resplandescente e luminoso?
Pois ainda fez mais.
Não só abrandou, ou apagou no sol
os rigores do fogo, senão também os rigores da luz. O sol não é só rigoroso e
terrível no fogo com que abrasa, senão também na luz com quê alumia. Em
aparecendo no Oriente os primeiros raios do sol, como se foram archeiros da
guarda do grande rei dos planetas, vereis como vão diante fazendo praça, e como
em um momento alimpam o campo do céu, sem guardar respeito nem perdoar a coisa
luzente. O vulgo das estrelas, que andavam como espalhadas na confiança da
noite, as pequeninas somem-se, as maiores retiram-se, todas fogem, todas, se
escondem, sem haver nenhuma, por maior luzeiro que seja, que se atreva a parar
nem a aparecer diante do sol descoberto. Vedes esta majestade severa? Vedes
este rigor da luz do sol, com que nada lhe pára, com que tudo escurece em sua
presença? Ora, deixai-o vir ao signo de Virgem, e vereis como essa mesma luz
fica benigna e tratável.
Viu S. João no Apocalipse um novo
signo celeste: Signum magnum apparuit in caelo (Apc. 12, 1). Era uma mulher
vestida do sol, calçada da lua e coroada de estrelas: Mulier amicta sole, luna
sub pedibus ejus, et in capite ejus corona stellarum duodecim (Ibid.). Não
reparo no sol e na lua; no sol e nas estrelas reparo. Calçada da lua, e vestida
de sol, bem pode ser, porque diante do sol também aparece a lua. Mas vestida de
sol, e coroada de estrelas? Sole estrelas juntamente? Não é possível, como
acabamos de ver. Pois se na presença do sol fogem e desaparecem as estrelas, e
o sol estava presente, e tão presente no vestido da mesma mulher, como
apareciam nem podiam aparecer as estrelas da coroa? Aí vereis quão mudado está
o sol depois que vestiu uma mulher, ou depois que uma mulher o vestiu a ele!
[12]Este signo em que o sol apareceu a S. João, era o signo de Virgem: Signum
magnum apparuit in caelo: Mulier amicta sole. E depois que o sol entrou no
signo de Virgem, depois que o sol se humanou nas entranhas da Virgem Maria,
logo os seus raios não foram temerosos, logo a sua majestade não foi terrível,
logo a grandeza de soberania da sua mesma luz foi tão benigna que já não fogem
nem se escondem dela as estrelas, antes lhes consente que possam luzir e
brilhar em sua presença. Assim amansou aquela luz divina o sol, noutro tempo
tão severo, assim humanou a intolerável grandeza de sua luz, assim temperou e
quebrou a força de seus raios. Para que vejamos quanto se deve alegrar neste
dia, e quanto deve festejar o nascimento desta benigna luz o gênero humano
todo, e mais aqueles que mais têm ofendido o Sol. Quantas vezes havia de ter o
Sol de justiça abrasado o mundo? Quantas havia de ter fulminado com os seus
raios as rebeldias de nossas ingratidões, e as abominações de nossos vícios,
se não fora pela benignidade daquela luz? Para isso nasceu e para isso nasce
hoje: para o fazer humano antes de nascer, e para lhe atar as mãos e os braços
depois de nascido: De qua natus est Jesus.
V
Terceira razão: a luz é mais
universal; o sol é limitado no tempo e no lugar. Diversidades entre o sol
material e o sol de justiça. O sol de justiça e as trevas do Egito. O papa
Inocêncio III e a comparação do Cântico dos Cânticos.
O terceiro título, por que se
deve mais festejar o dia deste nascimento, é por ser a luz mais universal. É a
luz mais universal que o sol porque o sol nunca alumia mais que meio mundo e
meio tempo; a luz alumia em todo o tempo e a todo o mundo. O sol nunca alumia mais
que meio mundo, porque quando amanhece para nós, anoitece para os nossos
antípodas, e quando amanhece aos antípodas, anoitece para nós. E nunca alumia
mais que meio tempo, porque das vinte e quatro horas do dia natural as doze
assiste em um hemisfério, as doze no outro. Não assim a luz. A luz não tem
limitação de tempo nem de lugar: sempre alumia, e sempre em toda parte, e
sempre a todos. Onde está o sol, alumia com o sol, onde está a lua, alumia com
a lua, e onde não há sol nem lua, alumia com as estrelas, mas sempre alumia. De
sorte que não há parte do mundo, nem movimento de tempo, ou seja dia ou seja
noite, em que, maior ou menor, não haja sempre luz. Tal foi a disposição de
Deus no princípio do mundo. Ao sol limitou-lhe Deus a jurisdição no tempo e no
lugar; à luz não lhe deu jurisdição limitada, senão absoluta para todo o lugar
e para todo o tempo. Ao sol limitou-lhe Deus tempo, porque mandou que alumiasse
o dia: Luminare majus ut praeesset diei (Gên. 1, 16); e limitou-lhe lugar,
porque só quis que andasse dentro dos trópicos de Câncer e Capricórnio, e que
deles não saísse. Porém à luz, não lhe limitou tempo, porque mandou que
alumiasse de dia por meio do sol, e de noite por meio da lua e das estrelas:
Luminare majus ut praeesset diei; luminare minus ut praeesset nocti, et stellas
(ibid.). E não lhe pôs limitação de lugar, porque quis que alumiasse não só
dentro dos trópicos, senão fora deles, como faz a luz, que dentro dos trópicos
alumia por meio do sol e da lua, e fora dos trópicos por meio das estrelas,
para que por este modo, de dia e de noite, no claro e no escuro, na presença e
na ausência do sol, sempre houvesse luz como há.
Esta mesma diferença se acha na
verdadeira luz e no verdadeiro sol, Cristo e sua mãe. Cristo é sol do mundo,
mas sol que tem certo hemisfério, sol que tem seus antípodas, sol que quando
nasce, nasce para alguns e não para todos. Assim o disse Deus por boca do
profeta Malaquias: Orietur vobis timentibus nomem meum sol justitiae (Mal. 4,
2): Nascerá o sol de justiça para vós, os que temeis o meu nome. – Fala o
profeta não da graça da redenção, ou suficiente, que é universal para todos,
senão da santificante e eficaz, de que muitos, por sua culpa, são excluídos, e
por isso diz que o sol de justiça não nasce para todos, senão só para aqueles
que o temem. Todo este mundo, tomado nesta consideração, se divide em dois
hemisférios: um hemisfério dos que temem a Deus, outro hemisfério dos que o
não temem. No hemisfério dos que temem a Deus, só nasce o sol da justiça, e só
para eles há dia; só eles são alumiados. No hemisfério dos que não temem a
Deus, nunca jamais amanhece o sol; sempre há perpétua noite, todos estão em
trevas e às escuras. Neste sentido chamou o profeta a este sol, sol de justiça:
Sol justitiae. O sol material, se bem se considera, é sol sem justiça, porque
trata a todos pela mesma forma, e tanto amanhece para os bons como para os
maus: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos (Mt. 5, 45). E possível
que tanto sol há de haver para o bom, como para o mau? Para o cristão, como
para o infiel? Para o que adora a Deus, como para o que adora o ídolo? Tanto há
de amanhecer o sol para o diligente, como para o preguiçoso? Tanto para o que
lhe abre a janela, como para o que lha fecha? Tanto para o lavrador que o espera,
como para o ladrão que o aborrece? Notável injustiça do sol material! Não assim
o Sol da Justiça É Sol da Justiça porque trata a cada um conforme o que merece.
Só para os bons amanhece, e para os maus esconde-se; só alumia aos que o temem,
e aos que o não temem sempre os tem às escuras.
Parece coisa dificultosa que no
mesmo hemisfério, na mesma cidade, e talvez na mesma casa estejam uns alumiados
e outros às escuras; mas assim passa, e já isto se viu com os olhos no mundo
algum dia. Uma das pragas do Egito foram as trevas. E descrevendo-as, o texto
diz assim: Factae sunt tenebrae horribiles in universa terra Aegypti. Nemo
vidit fratrem suum, nec movit se de loco in quo erat; ubicumque autem
habitabant filii Israel, lux erat (Êx.10, 22 s): Houve em toda a terra do Egito
umas trevas tão horríveis, que nenhum egípcio via ao outro, e nenhum se podia
mover do lugar onde estava; mas onde habitavam os hebreus, no mesmo tempo havia
luz. – Brava maravilha! Em toda a terra do Egito havia umas casas que só eram habitadas
de egípcios, outras que eram habitadas de hebreus e de egípcios juntamente. Nas
que eram habitadas de egípcios, todos estavam em trevas; nas que eram habitadas
de hebreus, todos estavam em luz; nas que eram habitadas de hebreus e de
egípcios juntamente, os hebreus estavam alumiados, e os egípcios às escuras.
Isto que fez no Egito a vara de Moisés, faz em todo mundo a vara do Sol de
Justiça. Muitas casas há no mundo em que todos são pecadores; algumas casas
haverá em que todos sejam justos; outras há, e é o mais ordinário, em que uns
são justos e outros pecadores. E com toda esta diversidade de casas e de
homens, executa a varado Sol de Justiça o que a de Moisés no Egito. Na casa
onde todos são justos, todos estão em luz; na casa onde todos são pecadores,
todos estão em trevas; na casa onde há pecadores e justos, os justos estão
alumiados e os pecadores às escuras. De sorte que o Solde Justiça, nesta
consideração em que falamos, é sol tão particular e tão parcial, que não só no
mundo tem diferentes hemisférios, mas até na mesma casa tem antípodas.
Não assim aquela luz que hoje
nasce, que para todos e para todo o tempo, e para todo lugar é sempre luz.
Viramos anjos nascer hoje aquela formosa luz, e admirados de sua beleza
disseram assim: Quae est ista quae progreditur quasi aurora consurgens, pulchra
ut luna, electa ut sol? Quem é esta que nasce e aparece no mundo, diligente
como a aurora, formosa como a lua, escolhida como o sol (Cânt. 6,9)?– A aurora,
à lua e ao sol comparam os anjos esta Senhora, e parece que dizem menos em três
comparações do que diriam em uma Se disseram só que era semelhante ao sol,
diriam mais, porque de sol à lua é minguar, de sol à aurora é descer. Pois
porque razão, que não podia ser sem grande razão, uns espíritos tão bem entendidos
como os anjos, ajustam umas semelhanças tão desiguais, e comparam a Senhora
quando nasce à aurora, à lua, e ao sol juntamente? Deu no mistério
advertidamente o papa Inocêncio III. Comparam os anjos a Maria quando nasce,
juntamente ao sol, à lua e à aurora, para mostrar que aquela Senhora é luz de
todos os tempos. Todos os tempos ou são dia ou são noite, ou são aquela hora de
luz duvidosa que há entre a noite e o dia Ao dia alumia o sol, à noite alumia a
lua, à hora entre noite e dia, alumia a aurora. Pois por isso chamam os anjos
juntamente à Senhora aurora, lua e sol, para mostrarem que é luz que alumia em
todos os tempos. Luz que alumia de dia, como sol; luz que alumia de noite, como
lua; luz que alumia quando não é noite nem dia, como aurora. E que são ou que
significam estes três tempos? Ouvi agora a Inocêncio: Luna lucet in nocte,
aurora in diluculo, sol in die. Nox autem est culpa, diluculum poenitentia,
dies gratia: A lua alumia de noite, e a noite é a culpa; a aurora alumia de
madrugada, e a madrugada é a penitência; o sol alumia de dia, e o dia é a graça
–E para todos estes tempos, e para todos estes estados é Maria luz universal.
Luz para os justos que estão em graça, luz para os pecadores que estão na
culpa, e luz para os penitentes que querem passar da culpa à graça: Qui ergo
jacet in nocte culpae, respiciat lanam, deprecetur Mariam; qui surgit ad
diluculum poenitentiae, respiciat auroram, deprecetur Mariam; qui vivit in die
gratiae, respiciat solem, deprecetur Mariam: Pelo que, conclui exortando o
grande pontífice, se sois pecador, se estais na noite do pecado, olhai para a
lua, fazei oração a Maria para que vos alumie e vos tire da noite do pecado,
para a madrugada da penitência Se sois penitente, estais na madrugada do
arrependimento, ponde os olhos na aurora, fazei oração a Maria, para que vos
alumie e vos passe da madrugada da penitência ao dia da graça. Se sois justo,
se estais no dia da graça, ponde os olhos no sol, fazei oração a Maria, para
que vos sustente e vos aumente nesse dia, porque desse dia ditoso não há para
onde passar. – Assim alumia aquela soberana luz universalmente a todos, sem
exceção de tempo nem de estado, o Sol de justiça alumia só aos que o temem:
Timentibus nomen meum; mas a Luz de misericórdia alumia aos que o temem,
porque o temem, e aos que o não temem, para que o temam, e a todos alumia. O
Sol de justiça nasce só para os justos, mas a Luz de misericórdia nasce para os
justos e mais para os pecadores. E por este modo é mais universal para todos a
luz que hoje nasce, do que o mesmo sol que dela nasceu: De qua natus est Jesus.
VI
Quarta e última razão: a
diligência de Maria. Em Ganó, ainda não era chegada a hora de Jesus e já era
chegada a hora de Maria. A presteza de Cristo e de Maria declaradas por Davi e
S. João. Maria e o sacramento do batismo. A causa da perdição das cinco
virgens néscias. Admoestação de Habacuc. Maria e a mãe de Jacó.
O quarto e último título por que
se deve mais festejar este dia, é por ser a luz mais apressada para nosso bem.
Ser mais apressada a luz que o sol, é verdade que vêem os olhos. Parte o sol do
oriente e chega ao ocidente em doze horas. Aparece no oriente a luz, e em um
instante fere o ocidente oposto, e se dilata e se estende por todos os
horizontes, alumiando em um momento o mundo. O sol, como dizem os astrólogos,
corre em cada hora trezentas e oitenta mil léguas. Grande correr! Mas toda esta
pressa e ligeireza do sol, em comparação da luz, são vagares. O sol faz seu
curso em horas, em dias, em anos, em séculos; a luz sempre em um instante. O
sol, no inverno, parece que anda mais tardo no amanhecer, e no verão mais
diligente, mas nunca se levanta tão cedo o sol, que não madrugue a luz muito
diante dele. Ó luz divina, como vos pareceis nesta diligência à luz natural!
Foram convidados a umas bodas a
luz e o sol: Cristo e Maria. Faltou no meio do convite aquele licor que noutra
mesa, depois de o sol posto e antes de o sol se pôr, deu matéria a tão grandes
mistérios. Quis a piedosa Mãe acudir à falta, falou ao Filho, mas respondeu o
senhor tão secamente como se negara sê-lo: Quid mihi et tibi est mulier? Nondum
venit hora mea (Jo. 2, 4): Que há de mim para ti, mulher? Ainda não chegou a
minha hora. – Aqui reparo: esta hora não era de fazer bem? Não era de encobrir
e acudir a uma falta? Não era de remediar uma necessidade? Pois como responde,
Cristo que não era chegada a sua hora? Nondum venit hora mea? E se não era
chegada a sua hora, como trata a Senhora do remédio? Era chegada a hora de
Maria, e não era chegada a hora de Cristo? Sim, que Maria é luz, e Cristo é
sol, e a hora do sol sempre vem depois da hora da luz: Nondum venit hora mea.
Ainda não era vinda a hora do sol, e a hora da luz já tinha chegado. Por isso
disse Cristo à sua mãe com grande energia: Quid mihi et tibi? Como se dissera:
Reparai Senhora na diferença que há de mim a vós na matéria de socorrer aos
homens, como agora quereis que eu faça. Vós os socorreis, e eu os socorro; vós
lhes acudis, e eu lhes acudo; vós os remediais, e eu os remedeio, mas vós
primeiro, e eu depois; vós logo, e eu mais devagar; vós na vossa hora, que é
antes da minha, e eu na minha, que é depois da vossa: Nondum venit hora mea. É
aquela gloriosa diferença que Santo Anselmo se atreveu a dizer uma vez, e todos
depois dele a repetiram tantas: Velocior nonnunquam salus memorato nomine
Mariae quam invocato nomine Jesus: Que algumas vezes é mais apressado o
remédio, nomeado o nome de Maria que invocado o de Jesus. – Algumas vezes,
disse o santo, e quisera eu que dissera sempre, ou quase sempre. Vede se tenho
razão. Todos os caminhos de Cristo e os de Maria foram para remédio do homem;
mas tenho eu notado que são mui diferentes as carroças que este Rei e Rainha do
céu escolheram para correr à posta em nosso remédio. Cristo escolheu por
carroça o sol, e Maria escolheu a luz. O primeiro viu-o Davi: In sole possuit
tabernaculum suum. O segundo viu-o S. João: Et luna sub pedibus ejus.[13] Cá
nas cortes da terra vemos o rei e a rainha, quando saem, passearem juntos na
mesma carroça; o Rei e a Rainha do céu, por que o não fariam assim? Por que
razão não aparece a Rainha do céu na mesma carroça do sol, como seu Filho? Por
que divide carroça e escolheu para si a da lua? Eu o direi. A lua é muito mais
ligeira que o sol em correr o mundo. O sol corre o mundo pelos signos do
zodíaco em um ano; a lua em menos de trinta dias. O sol corre o mundo em um
ano, uma só vez; a lua doze vezes, e ainda lhe sobejam dias e horas. E como as
manchadas pias que rodam a carroça da lua são muito mais ligeiras que os
cavalos fogosos que tiram pelo carro do sol, por isso Cristo aparece no carro
do sol, e Maria no da lua. Não é consideração minha, senão verdade profética,
confirmada com o testemunho de uma e outra visão, e com os efeitos de ambas.
Tomou Cristo para si o carro do sol, e que se seguiu? Exultavit ut gigas ad
currendam viam, diz Davi (Sl. 18, 6): Largou o sol as rédeas ao carro, e correu
Cristo com passos de gigante. – Tomou Maria para si a carroça da lua, e que se
seguiu? Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae, ut volaret, diz S. João
(Ape. 12, 14): Estando com a lua debaixo dos pés, deram-se a Maria duas asas de
águia, para que voasse. – De sorte que Cristo no carro do sol corre com passos
de gigante, e Maria na carroça da lua voa com asas de águia. E quanto vai das
águias aos gigantes, e das asas aos pés, e do voar ao correr, tanto excede a
ligeireza velocíssima com que nos socorre Maria à presteza, posto que grande,
com que nos socorre Cristo. Não vos acode primeiro nas vossas causas o advogado
que o juiz? Pois Cristo é o juiz, e Maria a advogada.
Mas não deixemos passar sem
ponderação aquela advertência do evangelista: Aquilae magnae. Que as asas com
que viu a Senhora, não só eram de águia, senão de águia grande. De maneira que
Cristo, para correr em nosso remédio com passos mais que de homem, tomou pés de
gigante: Exultavit ut gigas; e a Senhora, para correr em nosso remédio com
passos mais que de gigante tomou asas de águia: Datae sunt mulieri alae duae
aquilae. Mas essas asas não foram de qualquer águia, senão de águia grande:
Aquilae magnae, para que a competência ou a vantagem fosse de gigante a
gigante. Que coisa é uma águia grande, senão um gigante das aves? Cristo
correndo como gigante, mas como gigante dos homens; a Senhora correndo como
gigante, mas como gigante das aves. Cristo, como gigante com pés, a Senhora
como gigante com asas. Cristo como gigante que corre, a Senhora como gigante
que voa. Cristo como gigante da terra, a Senhora como gigante do ar. Mas assim
havia de ser para fazer a Senhora em nosso remédio os encarecimentos verdades.
O maior encarecimento de acudir com a maior presteza, é acudir pelo ar. Assim o
faz a piedosa Virgem. Cristo com passos de gigante acode aos homens a toda a
pressa, mas a Senhora com asas de águia acode-lhes pelo ar. Isto mesmo é ser
luz, que pelo ar nos vem toda.
E para que de uma vez vejamos a
diferença com que esta soberana luz é avantajada ao divino sol na diligência de
acudira nosso remédio, consideremo-los juntos e comparemo-los divididos. E que
acharemos? Coisa maravilhosa! Acharemos que quando o nosso remédio mais se
apressa, é por diligência da luz, e quando alguma vez se dilata, é por
tardanças do sol. Veste-se de carne o Verbo nas entranhas da Virgem Maria, e
diz o evangelista, que logo, com muita pressa se partiu a Senhora com seu
Filho, a livrar o menino Batista do pecado original: Exurgens autem Maria abiit
in montana cum festinatione (Lc. 1, 39). Nasce enfim Cristo, cresce, vive,
morre, ressuscita, e do mesmo dia da Encarnação a trinta e quatro anos institui
o sacramento do Batismo: Baptizantes eos in nomine Patris, et Filii, et
Spiritus Sancti (Mt. 28. 19). O batismo já sabeis que é o remédio do pecado
original, que foi o que Cristo principalmente veio remediar ao mundo, como
restaurador das ruínas de Adão. Pois se Cristo veio ao mundo principalmente a
remediar o pecado original, e se em chegando ao mundo o foi remediar logo no
menino Batista, como agora dilata tantos anos o remédio do mesmo pecado? Então
parte no mesmo instante, e depois dilata-se tanto tempo? Sim. Porque então
estava Cristo dentro em sua Mãe: Exurgens Maria; e agora estava fora, e
apartado dela. E para remediar os males do gênero humano é mui diferentemente
apressado Cristo em si mesmo, ou Cristo em sua Mãe. Cristo em sua Mãe, obra por
ela, e ela como luz obra em instante; Cristo fora de sua Mãe, obra por si
mesmo, e ele como sol obra em tempo, e em muito tempo. Vede se mostra a
experiência o que eu dizia, que quando o nosso remédio mais se apressa, é por
diligências daquela divina luz, e da mesma maneira, quando se dilata, ou quando
se perde, bem que por culpa nossa, é com tardanças do sol.
Das dez virgens do Evangelho, com
desgraça não imaginada, perderam-se cinco, e posto que a causa de sua perdição
foi a sua imprudência, a ocasião que teve essa causa foi a tardança dos
desposados. Se os desposados não tardaram até a meia-noite, não se apagaram as
lâmpadas, e se as lâmpadas se não apagaram, não ficaram excluídas as cinco
virgens. Agora pergunto. E qual dos desposados foi o que tardou? O esposo nesta
parábola é Cristo; a esposa é Maria. Qual foi logo dos dois o que tardou, se
acaso não foram ambos? Foi o esposo ou a esposa? Foi Cristo ou sua Mãe? Não é
necessário que busquemos a resposta nos comentadores: o mesmo texto o diz:
Moram autem faciente sponso, dormitaverunt omnes, et dormierunt (Mt. 25, 5). E
como tardasse o esposo, adormeceram todas e dormiram. – De modo que o que
tardou foi o esposo. É verdade que o esposo e a esposa estavam juntos, mas o
que tardou, ou o que foi causa da tardança, não foi a esposa, senão o esposo:
Moram autem faciente sponso. Atemos agora esta desgraça das virgens com a
ventura do Batista. No Batista conseguiu-se o remédio por diligências: mas
cujas foram as diligências? Estavam juntos Maria e Cristo, mas as diligências
foram de Maria: Exurgens Maria abiit in montana cum festinatione. Nas virgens
perdeu-se o remédio, como sempre se perde, por tardanças; mas cujas foram as
tardanças? Estavam juntos o esposo e a esposa, mas a tardança foi do esposo:
Moram auteur faciente sponso. O divino esposo de nossas almas, é certo que
nunca falta nem tarda; nós somos os que lhe faltamos e lhe tardamos. As suas
diligências e as de sua Santíssima Mãe, todas nascem da mesma fonte, que é o
excessivo amor de nosso remédio; mas é a Senhora por mais agradar e mais se
conformar com o desejo do mesmo Cristo, tão solicita, tão cuidadosa, tão
diligente em acudir, em socorrer, em remediar aos homens, que talvez, como
aconteceu neste caso, as diligências de seu Filho, comparadas com as suas,
parecem tardanças. Tudo é ser ele sol e ela luz. O sol nunca tarda, ainda
quando sai mais tarde, porque quem vem a seu tempo não tarda. Assim o disse o
profeta Habacuc falando à letra, não de outrem, senão do mesmo Cristo: Simoram
fecerit, expecta ilium, quia veniens veniet, et non tardabit. Se tarda, esperai
por ele, porque virá sem dúvida, e não tardará (Hab. 2, 3). – Como não tardará,
se já tem tardado e ainda está tardando: Si moram fecerit, non tardabit? São
tardanças de sol, que ainda quando parece que tarda, não tarda, porque vem
quando deve vir. Mas esse mesmo sol que, regulado com suas obrigações, nunca
tarda, comparado comas diligências da luz, nunca deixa de tardar. Sempre a luz
vem diante, sempre a luz sai primeiro, sempre a luz madruga e se antecipa ao
sol.
Ó divina luz Maria, ditoso aquele
que merecer os lumes de vosso favor! Ditoso aquele que entrar no número dos
vossos favorecidos, ou dos vossos alumiados! Tendo-vos de uma parte a vós e da
outra a vosso Filho, dizia aquele grande servo e amante de ambos: Positus in
medio, quo me vertam? Nescio: Posto em meio dos dois, não sabe Agostinho para
que parte se há de voltar. – E quando Agostinho confessa que não sabe, sofrível
é em qualquer homem, qualquer ignorância. Ut minus sapiens dico: como
ignorante digo: Virgem Santíssima, perdoe-me vosso Filho, ou não me perdoe, que
eu me quero voltar a vós. Já ele alguma hora deixou a seu Pai por sua Mãe; não
estranhará que eu faça o mesmo. Tenha a prerrogativa de Esaú quem quiser, que
eu quero antes a dita de Jacó. Esaú era mais amado e mais favorecido de seu
pai; Jacó era mais favorecido e mais amado de sua Mãe; mas a bênção levou-a
Jacó. E por que levou Jacó a bênção? Pelo que temos dito até agora: porque as
diligências da Mãe foram mais apressadas que as do pai. Quomodo tam cito
invenire potuisti, fili mi? Como pudeste achar tão cedo, disse Isac, o que eu
mandei prevenir para lançar a bênção ao meu primogênito (Gên. 27, 20)? – E que
respondeu Jacó? Sendo que tudo tinham sido prevenções e diligências de sua Mãe,
respondeu que fora vontade de Deus: Voluntas Dei fuit (ibid.). E assim é. A mãe
de Jacó representava neste passo a Mãe Santíssima, e quem tem de sua parte as
diligências desta mãe, sempre tem de sua parte a vontade de Deus. Esaú teve de
sua parte as diligências do pai, mas quando chegou, chegou tarde, porque por
mais diligências que faça o sol, sempre as da luz chegam mais cedo: Quomodo tam
cito? As diligências da mãe já tinham chegado, e as do pai ainda haviam de
chegar. Assim como hoje: a luz já tem nascido, e o sol ainda há de nascer. De qua
natus est Jesus.
VII
Admoestação final. Santo Tomás,
pela luz mede a perfeição das coisas. São Tiago e os dons de Deus, pai dos
lumes. Oração.
Ora, cristãos, suposto que aquela
soberana luz é tão apressada e diligente para nosso remédio, suposto que é tão
universal para todos e para tudo, suposto que é tão piedosa e benigna para nos
querer fazer bem, suposto que é tão privilegiada e favorecida por graça e
benignidade do mesmo sol, metamo-nos todos hoje debaixo das asas desta soberana
protetora para que nos faça sombra e nos dê luz, para que nos faça sombra e nos
defenda dos raios do Sol de justiça, que tão merecidos temos por nossos
pecados, e para que nos dê luz para sair deles, pois é Senhora da Luz. Aquela
mulher prodigiosa do Apocalipse, que S. João viu com as asas estendidas, toda a
Igreja reconhece que era a Virgem Maria. E nós podemos acrescentar que era a
Virgem debaixo do nome e invocação de Senhora da Luz. A mesma luz o dizia e o
mostrava, que da peanha até a coroa toda era luzes: a peanha lua, o vestido
sol, a coroa estrelas; toda luzes e toda luz. E pois a Senhora da Luz está com
as asas abertas; metamo-nos debaixo delas, e muito dentro delas, para que
sejamos filhos da luz. Dum lucem habetis, credite in lucem ut filii lucis
sitis, diz Cristo (Jo. 12, 36). Enquanto se vos oferece a luz, crede na luz,
para que sejais filhos da luz. Sabeis, cristãos, por que não acabamos de ser
filhos da luz? É porque não acabamos de crer na luz. Creiamos na luz, e
creiamos que não há maior bem no mundo que a luz, e ajudem-nos a esta fé os
nossos mesmos sentidos.
Por que estimam os homens o ouro
e a prata, mais que os outros metais? Porque têm alguma coisa de luz. Por que
estimam os diamantes e as pedras preciosas mais que as outras pedras? Porque
têm alguma coisa de luz. Por que estimam mais as sedas que as lãs? Porque têm
alguma coisa de luz. Pela luz avaliam os homens a estimação das coisas, e
avaliam bem, porque quanto mais têm de luz, mais têm de perfeição. Vede o que
notou Santo Tomás: Neste mundo visível, umas coisas são imperfeitas, outras
perfeitas, outras perfeitíssimas; e nota ele com sutileza e advertência
angélica, que as perfeitíssimas têm luz, e dão luz; as perfeitas não têm luz
mas recebem luz; as imperfeitas nem têm luz, nem a recebem. Os planetas, as
estrelas e o elemento do fogo, que são criaturas sublimes e perfeitíssimas, têm
luz e dão luz; o elemento do ar e o da água, que são criaturas diáfanas e
perfeitas, não têm luz mas recebem luz; a terra e todos os corpos terrestres,
que são criaturas imperfeitas e grosseiras, nem têm luz, nem recebem luz,
antes a rebatem e deitam de si. Ora, não sejamos terrestres, já que Deus nos
deu uma alma celestial; recebamos a luz, amemos a luz, busquemos a luz, e
conheçamos que nem temos, nem podemos, nem Deus nos pode dar bem nenhum que
seja verdadeiro bem, sem luz. Ouvi umas palavras admiráveis do apóstolo S.
Tiago na sua epístola:
Omne datum optimum, et omne donum perfectum de
sursum est, descendens a Patre luminum (Tg. 1, 17): Toda dádiva boa, e
todo dom perfeito descende do Pai dos lumes.
Notável dizer! De maneira que quando Deus nos dá um bem que seja
verdadeiramente bom, quando Deus nos dá um bem que seja verdadeiramente
perfeito, não se chama Deus pai de misericórdias, nem fonte das liberalidades:
chamase pai dos lumes e fonte da luz, porque no lume e na luz, que Deus nos dá
com os bens, consiste a bondade e a perfeição deles. Muitos dos que nós
chamamos bens de Deus, sem luz são verdadeiramente males, e muitos dos que nós
chamamos males, com luz são verdadeiros bens. Os favores sem luz são castigos,
e os castigos com luz são favores; as felicidades sem luz são desgraças, e as
desgraças com luz são felicidades; as riquezas sem luz são pobreza, e a
pobreza com luz são as maiores riquezas; a saúde sem luz é doença, e a doença
com luz é saúde. Enfim na luz ou falta de luz consiste todo o bem ou mal desta
vida, e todo o da outra. Por que cuidais que foram santos os santos, senão
porque tiveram a luz que a nós nos falta? Eles desprezaram o que nós estimamos,
eles fugiram do que nós buscamos, eles meteram debaixo dos pés o que nós
trazemos sobre a cabeça, porque viam as coisas com diferente luz do que nós as
vemos. Por isso Davi em todos os salmos, por isso os profetas em todas suas
orações, e a Igreja nas suas, não cessam de pedir a Deus luz e mais luz.
Esse é o dia, cristãos, de
despachar estas petições. Peçamos hoje luz para nossas trevas, peçamos luz para
nossas escuridades, peçamos luz para nossas cegueiras, luz com que conheçamos
a Deus, luz com que conheçamos o mundo, e luz com que nos conheçamos a nós.
Abramos as portas à luz para que alumie nossas casas; abramos os olhos à luz,
para que alumie nossos corações; abramos os corações à luz, para que more
perpetuamente neles. Venhamos, venhamos a buscar luz a esta fonte de luz, e
levemos daqui cheias de luz nossas almas. Com esta luz saberemos por onde
havemos de ir; com esta luz conheceremos donde nos havemos de guardar; com esta
luz, enfim, chegaremos àquela luz onde mora Deus, a que o apóstolo chamou luz
inacessível: Qui lucem inhabitat inaccessibilem (1 Tim. 6, 16), que só por meio
da luz que hoje nasce, se pode chegar à vista do sol que dela nasceu: De qua
natus est Jesus.
Núcleo de Pesquisas em
informática, Literatura e Lingüística
[1] Da qual nasceu Jesus
(Mt.1.16).
[2] Aug. Lib. III de cons. Evang.
c. 24.
[3] Porque o sol pode nascer de
duplo modo: de modo perfeito, quando nasce e aparece sobre a terra, e de outro
modo, quando sua luz começa a aparecer com a aurora, e neste sentido é aqui
tomado o nascimento do sol.
[4] D. Thom. q. 67 art. 4 et q.
70 art. 2 ad 3 sequutus Dion. Areop. c. 4 de Div. Nom. Suar. de Op. sex Dier.
L. 2 c. 8 et alii.
[5] É vontade de Deus que nada
tenhamos senão pelas mãos de Maria.
[6] Amb. in Hexam. Lib. I, e. 9.
[7] A noite passou, e o dia vem
chegando (Rom. 13, 12).
[8] D. Basil. in Hexameron
[9] O homem, quando estava na
honra, não o entendeu; foi comparado aos brutos irracionais (SI. 48, 13).
[10] D. Dionys. Areopag. de D.
nomim. Cap. 4.
[11] Hiero. Athan. Basil.
[12] Bern. Vestis eum, et
vestiris ab eo.
[13] No sol pôs o seu tabernáculo
(Sl. 18, 6). — Tinha a lua debaixo dos pés (Apc. 12, 1).
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