SEU APOGEU E SUA DECADÊNCIA
(Lembrando o “Moinho do Poço” na Ribeira de
P.....)
“Nos
tempos em que se desconhecia a energia eléctrica que haveria de revolucionar o
mundo do trabalho, criando um novo estilo de vida: no período não muito distante em que se
ignorava as maravilhas da técnica
e da mecânica, em que não existia a fábrica
e a máquina ensaiava os primeiros passos, o moinho accionado (...) pela
água reinava então soberanamente.”
Manuel
d’Oliveira Rebelo, in Retalhos da Minha Terra
INTRODUÇÃO
É um privilégio que muito me honra o facto de
ter nascido em P........ uma aldeia rodeada de montes e que bem cedo me viu abalar agarrado à sorte dos meus
progenitores, que como tantos outros, procuraram noutras paragens meios mais
propícios no tocante aos bens essenciais, escassos - ou mesmo ausentes - nas
aldeias da Beira-Serra.
Menino
ainda - tinha, então, nove anos -
recordo-me de um dia em que estava de visita à aldeia, no período das férias grandes, ter abalado com a minha
avó materna, de tão grata memória, a caminho do Moinho do Poço, acedendo de bom grado a um convite que ela me fez.
Eu era no seu dizer simples o neto que vinha de
muito longe... e a quem ela por esse
motivo acrescido dedicava uma grande ternura, tendo tido o condão de adivinhar
de como tudo na aldeia onde havia nascido me interessava saber.
Talvez, por isso, recordo ainda hoje
perfeitamente tudo quanto aconteceu naquele passeio encantado de duas centenas
de metros
Levava a doce velhinha perfeitamente
equilibrado sobre a sua cabeça um taleigo feito de variados panos e de muitas
cores, inchado dos dois alqueires de milho que haviam sido retirados da arca
existente na grande sala da casa aldeã, para que, segundo o ajuizado parecer o munho não moesse em vão...
Quando chegámos, após ter descido pela sua mão
o apertado carreiro que serpenteava pela pequena encosta por entre o mato
florido e as madressilvas que rompiam de entre as silvas cheias de amoras e que
punham no ar o seu perfume tão característico, os meus ouvidos registaram para
sempre um som cadenciado que vinha de dentro do moinho: roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc - uma
melodia bem conhecida da moleira - que a fez exclamar numa expressão de alívio:
- Graças
a Deus! A moega inda tem grão.
Anos depois viria a saber que o facto de se
deixar acabar o grão originava o desaparecimento precoce das rugosidades da mó
móvel, o que implicava o seu desmonte para que fosse picada, uma tarefa algo
trabalhosa que pedia a mão certa de um artífice que nem sempre se encontrava
disponível por perto.
Era isto uma preocupação que exigia muito
cuidado e muita prática.
Esta minha primeira visita ao Moinho do Poço acompanhado daquela santa
moleira, que vi, depois, atarefada nos trabalhos de apalpar a farinha e pelo
tacto calcular o grau da sua eficácia para o fabrico da broa jamais me
esquecerá.
Ela foi o começo de um namoro pelo velho
moinho, que da dezena que houve em laboração ao longo da Ribeira de P..........,
ainda cumpre, hoje - de volta e meia - a sua tarefa secular da moenda, hoje
cometida, apenas, ao pouco milho que recebe.
Na Beira-Serra - segundo penso - algo se passa semelhante a este quadro.
Julgo que as edilidades deveriam ter alguma
intervenção nestes testemunhos autênticos de um passado duro, que moeram como
diz o nosso povo - o pão que o diabo
amassou - e onde se esconde muito da nossa identidade mais pura, na procura
de serem preservados aqueles que restam porque são pedaços genuínos da nossa
cultura e da nossa raça beirã.
Talvez, por isso, não há visita que faça à
minha aldeia sem que os meus passos não desçam a velha encosta - com uma terna saudade pela linda cicerone
da minha infância - constatando que continuam a florescer os matos, as silvas e
as madressilvas, a que se juntam os juncais, os salgueiros e as rosas bravas,
como se nada houvesse mudado, e dê comigo a olhar o cabouco do moinho que alberga já não o velho rodízio de pás de
madeira fortemente encrustado na péla
mas um outro que o progresso arranjou de ferro fundido, mas que não exprime da
mesma maneira a música antiga que trago ainda nos meus ouvidos: roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc /
roc-toc-toc-toc.
É, para essa relíquia velhinha que a minha alma
tangeu na sua lira serrana o seguinte acorde, estribado nesta quintilha que é um espelho reflector da minha própria
saudade:
Tua
lembrança semeia
Uma
saudade distante
Do
tempo em que na aldeia
A
tua canção vibrante
Não
era “de volta e meia”...
RESENHA HISTÓRICA DOS MOINHOS DE ÁGUA
Ainda o
homem lascava as pedras para os seus
machados e preparava as suas facas e
pontas de flechas com seguras e hábeis pancadas e já triturava e moía raízes,
frutos e grãos silvestres que ajudavam a sua magra alimentação.
Fernando
Galhano, in Moinhos e Azenhas de Portugal
A história dos moínhos-de-água com roda de pás
de eixo horizontal - tal como chegaram ao nosso tempo esconde-se sob a poeira
de muitos séculos - o que não impede de
se ter alguns conhecimentos sobre a sua realidade evolutiva no que se refere à
técnica que os tempos iam permitindo e o engenho do homem ia conseguindo
aperfeiçoar.
Conforme peças e documentos antigos os engenhos
molinários sofreram um longo aperfeiçoamento desde o mais primitivo até ao
moinho que chegou aos nossos dias e, ainda vemos, poucos em movimento e muitos
desmantelados, no sopé dos vales da Beira Serra onde correm as nossas ribeiras,
um facto desolador que não deixa de ser um atentado à memória dos nossos avós e
à cultura serrana.
A sua origem, pode dizer-se, terá começado
cerca do ano 10.000 a .C.
no Sudoeste Asiático, no momento em que o homem encetou os primeiros passos no
domínio das coisas naturais, tendo como preocupação o esmagamento de alguns
frutos e suas sementes para prover à sua magra alimentação.
Por volta do ano 8.000 a .C. o homem do
Paleolítico empreendeu uma nova caminhada civilizacional e embora tenha
continuado a depender dos utensílios de pedra aprendeu a fazer as primeiras
culturas de um modo mais organizado.
Dá-se, então, início ao Neolítico.
Segundo se crê este estádio de tempo da
Humanidade teve o seu início no crescente fértil do Médio Oriente, tendo no ano
6.000 a .C.
alastrado para o Sudeste Asiático e para o Sudeste Europeu.
Temos, assim, que no Velho Mundo é ponto
assente que as fases mais importantes da revolução agrícola teriam ocorrido
entre os anos 10.000 e 5.000
a .C., numa faixa que se estendeu entre a Grécia
setentrional e o Irão actuais e, igualmente, do Jordão à Crimeia, com o
cultivo, aqui, dos primeiros cereais: trigo e cevada a que sucedeu a aveia,
tendo resultado daqui uma necessidade crescente de transformar em farinha os
grãos duros destes cereais.
Os primeiros agricultores da actual Europa
central instalaram-se no vale do Danúbio. Provinham da Hungria e teriam chegado
à Holanda por volta do ano 4.000
a .C., tendo o Ocidente - onde se incluía o espaço
geográfico de Portugal - sido colonizado pelos primeiros agricultores
provavelmente por volta do ano 3.500
a .C., altura em que também se dá a conquista das grandes
planícies do Norte da Europa pelos colonizadores neolíticos que penetraram na
Dinamarca e na Suécia.
O moinho-de-água tem deste modo uma longa
história atrás de si, entroncada no tempo da pedra lascada, quando o sistema
pré-agrário originou a necessidade de em primeiro lugar esmagar os frutos silvestres,
as suas sementes e, depois os grãos das primeiras culturas.
Inicialmente, o homem do Paleolítico teria
usado duas pedras toscas e só muito depois o pilão e o gral (almofariz).
Ter-lhe-á sucedido a fricção de uma pedra sobre
uma outra de características planas, especialmente, no Egipto.
Era a época das chamadas mó de rebolo.
O passo seguinte regista o uso das primeiras
mós com movimentos axiais.
Eram formadas por dois blocos de pedra, de
forma irregular: um deles muito maior que o outro e sobre o qual se movia o
mais pequeno. Estes engenhos tinham o
punho da mó moente colocado num dos lados e o eixo descentrado, sendo a
farinação feita por - movimentos de vai-vem -
até ao momento em que tendo-se adoptado o centro de gravidade das duas
pedras em cujo eixo se colocou o espigão, este facto - como é evidente - simplificou a função das moendas.
Isto que
hoje nos pode espantar não ter sido mais cedo posto em uso é, no entanto, uma
realidade histórica na evolução do moinho.
Contudo, este facto apesar da sua importância
não teria levado desde logo as mós a executar um movimento totalmente circular,
pois de acordo com escavações levadas a
efeito com toda a seriedade e cuidado, têm-se encontrado mós com punhos
laterais instalados tão chegados às paredes que era absolutamente impossível
dar-lhes a volta completa.
A História bíblica regista o facto de Sansão -
o último Juíz de Israel - (1.100 anos a.C.) após a traição de Dalila, ter sido
condenado pelos seus inimigos filisteus a fazer girar a mó[. É nessa humilhação histórica de
moleiro forçado que no-lo apresenta o famoso filme de Cecil B. de Mille “Sansão
e Dalila”, realizado em 1949.
Durante muitos séculos este processo permitiu
por em movimento duas pedras maiores que aquelas que era possível movimentar
com a forças das mãos.
No seu afã de se modernizar só muito mais tarde
o homem percebeu que o aproveitamento das energias naturais lhe haviam de
trazer grandes vantagens, não se sabendo, no entanto, qual o ponto do Globo
onde terá surgido o primeiro engenho hidráulico destinado à tarefa da moagem.
O movimento circular completo das mós, segundo
parece, terá surgido em primeiro lugar em Roma por volta do século V a.C.
Estaria, então, em uso o chamado moínho-a-braços - ou mó rotativa - onde era utilizada a mão de obra dos
escravos; mais não era que aquele engenho que passou a designar-se entre os
romanos, por: mola asinária - assim chamada por ser também movida por
burros - e cuja constituição se cingia a uma mó inferior solidamente fixada, de
superfície cónica virada para cima e onde havia um espigão de ferro cravado no
seu vértice. Sobre essa base girava outra mó cónica vazada na parte inferior
para se ajustar à conicidade da base e na parte superior continha um vaso com
alguns orifícios para deixar passar o grão de encontro ao cone fixo, onde era
farinado.
Este aparelho de moendas passeou com todas as
legiões romanas até aos confins do Império,
onde era usada a mão de obra dos
condenados e dos escravos.
No ano 85 a . C., Antíprates de Tessalónica - a actual
Salónica, no mar Egeu - relata num dos
seus trabalhos de poesia a existência dos primeiros moinhos hidráulicos, sendo
certo que o primeiro moínho-de-água de roda vertical - conhecido como moinho
romano, segundo Vitrúvio, no seu livro “De Architectura” - data do ano 25 a . C.
O moinho-de-água de roda horizontal que deu
origem com todas as variantes que lhe foram introduzidas nos mais variados
quadrantes do mundo até àquele que chegou às nossas aldeias teria sido
utilizado pela primeira vez no século I da nossa era, tendo-se, no entanto,
generalizado a sua construção e consequente uso só a partir do século IV, no
tempo do Imperador Constantino - o Grande - (271-337) .
Este
acontecimento terá diminuido de tal modo o esforço do homem que há quem atribua o descanso dominical decretado por
este Imperador, no ano 321, não como uma consequência directa da sua conversão
ao cristianismo, mas por não ser necessária a utilização do trabalho humano
como até então era feito.
Há quem defenda esta aparente indiferença dos romanos
pelo avanço da técnica molinária ao facto histórico de terem podido dispor de
mão de obra barata provinda das grandes legiões de escravos que subjugavam
pelos quatro cantos do seu vasto Império.
Em Portugal, a notícia mais antiga que se
conhece sobre estes engenhos de moer cereais
data de 1157, no tempo em que sendo Gualdim Pais mestre absoluto da Ordem do Templo, houve uma doação régia que a este
mestre e à sua Ordem se fez de oito moinhos na Ribeira de Alviela,
declarando-se que metade do seu rendimento seria para a coroa.
Historicamente, pode afirmar-se que nos forais
que eram concedidos às terras as pensões devidas eram pedidas aos senhorios e
nunca aos moleiros.
Relativamente ao seu apogeu não se poderá fixar
um período exacto.
Poderá no entanto afirmar-se que a sua
utilização intensiva - a par das azenhas, moinhos de vento e de maré -
perpassou durante vários séculos, tendo-os atravessado com grande eficácia
desde o século IV até ao fim do século XIX e, ainda, com alguma projecção importante
no primeiro quartel do século XX, de que é testemunha toda a região da
Beira-Serra onde os moinhos de água constituíram uma parte importante da nossa
história multissecular.
OS MOINHOS, OS MOLEIROS E A LITERATURA
A simplicidade lúdica das construções, normalmente
de pedra tosca e telhados de lousa em conjução com uma envolvente bucólica de
verdes floridos a que o elemento líquido emprestava a componente natural e
fundamental, desde sempre mereceu referências literárias a que se prendia o
factor humano, normalmente radicado na moleira, pois desde tempos imemoriais
foi do sexo feminino a tarefa das moendas.
De todos os autores que expressaram em forma de
poesia o seu amor sobre este tema, nenhum - segundo a nossa opinião - é mais
profundamente lírico e mimoso que Guerra Junqueiro (1850 -1923).
Natural de Trás-os-Montes (Freixo de Espada à
Cinta) o meio da sua infância tê-lo-á influenciado ao escrever Os Simples, em 1892, um livro onde não
há um termo erudito mas onde perpassa a graça simples dum lirismo popular e genuíno, eivado de uma
grande filosofia mas com a total ausência do filósofo.
E foi com os olhos nos moinhos da sua infância
e, sobretudo, assestados na figura linda de uma moleira anciã - a que ele
chamou A Moleirinha - que ele
escreveu em verso uma das páginas mais belas da Literatura portuguesa,
fazendo-a viver, a caminho do moinho, tocando o burrico com um galho verde de
giesta, e que o Poeta, significativamente, descreve como estando em flor, não
descurando neste pequeno pormenor o encanto da poesia que nos legou.
Diz assim, Guerra Junqueiro:
(...)
Toque,
toque, a velha vai para o moinho;
Tem
oitenta anos, bem bonito rol!...
E
contudo alegre como um passarinho,
Toque,
toque e fresca como o branco linho
De
manhã nas relvas a corar ao sol.
Vai
sem cabeçada, em liberdade franca,
O
jerico ruço duma linda cor;
Nunca
foi ferrado, nunca usou retranca,
Tange-o,
toque, toque, a moleirinha branca
Com
o galho verde duma giesta em flor.
Vendo
esta velhita, encarquilhada e benta
Toque,
toque, toque, que recordação!
Minha
avó ceguinha se me representa...
Tinha
eu seis anos, tinha ela oitenta,
Quem
me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...
Sempre que leio este poema lindíssimo,
lembro-me tal como o Poeta, da minha avó aquando da minha primeira visita ao Moinho do Poço, na minha aldeia serrana.
Também ela, ao regressarmos, trazia enfarinhado
o seu avental de sarja preta, e vinha sorridente por transportar a farinha e
algum carolo, com que me fez uma
papas açucaradas que ainda hoje recordo.
Um outro autor que encantou a minha juventude
chama-se Ponson du Terrail (1829-1871)
Escreveu ele, entre muitas obras, O Grilo do Moinho... que era uma
rapariga!
Descreve do seguinte modo o engenho hidráulico
e a sua moleira:
Fica ao
fundo (...) pouco além da Igreja, ao sopé da primeira colina que forma o vale. O ribeiro que o põe em
movimento não vem mencionado nos mapas, nem na carta corográfica do
Departamento.
Penso que este faria parte de Grenoble, a sua
terra natal.
Continua, depois:
É um
riacho turbulento que sai dos areais de Sologne, cuja água tem um ligeiro sabor
a pez, o que não impede que seja clara, límpida e transparente como cristal
quando lhe bate um raio de sol (...)
O moinho
chama-se “Ramo do Amor”.
A moleira
era uma mulher formosa, que teria, quanto muito, quarenta anos (...)
O riacho
fazia-o girar durante todo o ano; noite e dia se ouvia o som cadenciado das
suas rodas.
Tal como Guerra Junqueiro, não deixa o escritor
francês de ligar ao moinho o elemento humano e de novo nos aparece a moleira,
como a asseverar que ao longo dos tempos terá sido a mulher quem mais se dedicou a estes
trabalhos.
Já assim havia acontecido no Egipto, na Arábia
e na Palestina e na Grécia, com os velhos moínhos-de-braço.
Eça de Queirós, com a realidade por vezes dura
da sua pena - mas que mais não fez do que retratar a vida do seu tempo -
escreveu um conto que intitulou: No
Moinho, onde faz a descrição da infeliz Maria da Piedade e do seu primo
Adrião, o literato que desejando vender a
Curgossa, uma fazenda ao pé da vila mas sem ter conhecimento agrários se
valeu dos conhecimentos dela sobre o meio para avaliar a propriedade.
Nestes trabalhos, de uma certa vez, é descrito
um dos passeios ao moinho.
Era - como diz o grande
escritor - um recanto da Natureza, digno
de Corot, sobretudo à hora do meio dia (...)
O moinho
era de um alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua
roda enorme, quase podre (...)
Não vem ao caso relatar o atordoamento causado
tempo depois, em Maria da Piedade, motivado beijo roubado pelo primo Adrião e,
muito menos, todo o enredado do conto, mas tão só, dar a conhecer como o autor
não descurou a beleza rústica de um moinho de província e do seu lugar
romântico para nos deixar páginas de uma realidade que nos podem chocar pelos
afectos tardios e humanamente explicáveis, no tocante a Maria da Piedade, mas
que não deixam de constituir uma forma brilhante de contar histórias tão ao
gosto do celebrado escritor de cuja pena a Literatura portuguesa herdou das
mais fecundas e brilhantes páginas que algum dia se escreveram em Portugal.
Na continuação destas breves incursões
literárias, cabe aqui recordar um texto rústico, autêntico e de tanta beleza
agreste que torna a sua leitura integral uma obrigação intelectual.
Escreveu-o Miguel Torga, fazendo-o inserir nos “Novos Contos da Montanha” sob o título:
“O Senhor”.
Descreve o autor a caminhada do Padre Gusmão
até ao Moinho do Fojo onde vivia um casal de moleiros, o Malaquias e a
Filomena.
Estava a moleira acometida das dores de parto
havia três dias e em trabalhos tais que temendo o pior havia pedido o Senhor.
O Padre Gusmão levava na sua companhia - como
era imperativo quando o campanário anunciava o Senhor fora - todos os que
se sentiam obrigados a obedecer à ordem
que descia do campanário, o que não impedia os mais cansados de se sumirem nos cortelhos...
“O Senhor” é de facto um texto
maravilhoso.
Dá-nos conta do isolamento daquele casal de
moleiros perdidos nos ermos de Midões,
onde ficava o Moinho do Fojo e onde à
falta de médico ou de parteira o Padre Gusmão fez de um e de outro, retirando
sã e salva do ventre da Filomena a criança que havia dias se recusava a nascer.
Para finalizar este bosquejo pelas andanças
literárias de alguns expoentes dessa arte difícil e complexa que é a de
exteriorizar para o papel os sentimentos da alma humana, não era possível
esquecer um autor que é muito nosso.
Trata-se do médico Vasco de Campos - um dos
maiores Poetas deste século, da Beira-Serra - que um dia no cumprimento esforçado
da sua profissão que dedicou com grande sentido altruísta às gentes rurais
junto de quem exerceu o seu sacerdócio clínico, teve usar todo o seu saber e
ciência clínica para salvar o filho e a moleira dos Moinhos da Coruja.
No seu livro “Serra” - que é um grito de
humanidade profundamente vivido nas andanças pelos mais inóspitos alcantis,
todo ele um fruto amargo de uma vida dura e autêntica - conta o autor, no texto: “O Parto da Moleira” ter sido numa certa
manhã abordado deste modo pelo Fartura:
“Senhor
doutor, venho aqui para vossa “incelência” ter o incómodo de ir ver a minha
mulher, que está para dar à luz.
(...)
acompanhei o moleiro até aos Moínhos da
Coruja, que ficam a montante da Ponte Nova, na margem direita do Alva. (...)
Continua, depois, o autor:
Pelo
caminho o Fartura foi desfiando o seu
rosário de desgraças: “duas
ovelhas mortas com baceira; um suíno - com sua licença! - enterrado com malina;
as “recolhenças” perdidas; e agora, a minha mulher...
É assim a
vida dum pobre.
Só
desandanças, senhor doutor! Sé desandanças!...
Não me
alembra dum Samiguel tão escasso...
Após este discurso do Fartura, aponta o médico:
A
residência era por cima dos moínhos. Por baixo tamborilavam as mós e rugia o açude.
Conta, depois, a odisseia clínica que o levou à
salvação de duas vidas: a da mãe, em coma, a quem o forceps retira o filho em
síncope e que é reanimado, um facto que o faz regressar a casa com meia batalha ganha, mas muito
preocupado, segundo diz, acrescentando:
Nessa
noite, pouco dormi, a pensar na moleira...
Cabe aqui referir que outro grande vulto da
poesia da Beira-Serra, José Cabral, por causa desta e doutras noites mal
dormidas lhe disse o seguinte numa carta que lhe enviou para o “Búzio”
Bato-te à
porta Moleiro
Santo do Lirismo Casto[ (...) homenageando desta forma singular o Médico-Poeta, que foi efectivamente
um moleiro santo no grande moinho da
vida.
Ficamos por aqui, na certeza de que estes
breves apontamentos que nos situam na roda dos moinhos de água e daqueles que
em tempos neles exerceram o seu ofício ou exerceram como a minha avó uma
profissão de circunstância, foram, quer o espaço físico das moendas, quer os
moleiros, uma referência válida e motivo de encanto de muitas gerações, onde
sobresaíram aqueles que pela arte da escrita nos deixaram pedaços imorredoiros.
Tendo perdido, hoje, pela força das modernas
tecnologias a sua importância milenar, estas construções simples - as poucas
que ainda restam - deviam merecer todo o nosso cuidado pelo facto de
representarem aos nossos olhos e aos nossos sentimentos mais fundos ecos de um
passado que começa a ficar distante, especialmente às novas gerações.
OS MOINHOS: ANTIGOS OBJECTOS DE ADUAGEM
Como réstia de um costume antigo em que as aduas eram impostos que os reis ordenavam
que fossem pagos em trabalho ou em dinheiro com destino ao conserto ou conservação
dos muros dos castelos ou muralhas defensivas das cidades, em alguns territórios de Portugal eram os habitantes de uma povoação
obrigados aos trabalhos de fortificação, na povoação que habitavam. (...) A
faculdade de exigir a adua era um dos
direitos que o rei, na doação das
povoações, costumava reservar como inalienável e inseparável da coroa.[1]
Este hábito ganhou raízes e mesmo depois de ter
sido abolido, obrigando os naturais de uma certa povoação necessitada de um
melhoramento público, como aconteceu nas aldeias da Beira Serra com a
edificação dos moinhos de água organizavam eles mesmos as suas aduas, ou seja, o tempo ou o dinheiro
que cada um podia dar para levar por diante o evento.
Como resultado prático, cada um, segundo o que
tinha dado, ficava com o direito de exercer em plenitude o seu grau de
proprietário do moinho, fosse em horas ou em dias, fazendo do mesmo uma
propriedade comum devidamente organizada, sem que para a mesma houvesse
escritura lavrada em qualquer cartório notarial.
Este facto demonstrativo de uma vida rural
assente na confiança e nos respeito mútuos, senti-o presente desde que tenho
lembrança na minha aldeia de Praçais, quando ouvia as pessoas - a começar pelas
da minha casa - dizerem, no modo de quem organiza a vida doméstica e a
repartição dos tempos:
- A essa hora não podemos fazer isso porque a adua do moinho, hoje, é nossa...
Queria isto dizer, pela adulteração dos termos
iniciais, que a adua em dinheiro ou
como esforço braçal que os meus antepassados teriam dado para a construção do Moinho do Poço, no tempo da minha
meninice tomara o sentido de tempo - em horas - que recaía de vez em quando na
casa dos meus avós para eles procedessem à moenda dos seus cereais pelo usufruto de um direito
secular, perdido na memória das gentes.
Ou seja, a mão de obra antiga ou o eventual
dinheiro que havia sido dado tinham ainda repercussões expressivas na minha
infância, um facto que hoje não acontece em virtude do pouco milho[1]
que é cultivado deixar a bela várzea da minha terra que é irrigada por uma
farta levada de água cristalina, de relva em grandes extensões, o que é
um desencanto para os meus olhos.
O “MOINHO DO POÇO” NA RIBEIRA DE P...............
De acordo com dados que foi possível obter
juntos das pessoas mais idosas da aldeia, onde se conta minha Mãe com os seus noventa anos - graças a Deus lúcidos - havia ao longo da
Ribeira de Praçais, a começar de jusante até à povoação do Vale Derradeiro, os
seguintes moinhos de água:
Cortavinha (nome devidado do facto da sua
construção ter causado o corte de um pedaço de terreno cultivado de vides) ; Moinho do Poço (por se situar naquele
lugar um poço profundo devido à queda de água da Ribeira e que constitue uma
piscina natural). ; Volta (situado
num cotovelo da Ribeira) ; Vale das
Amoras (devido aos grandes silvedos que o rodeavam e os seus frutos
consequentes) Fábrica (derivando-lhe
o nome pelo facto de naquele lugar ter existido um a Fábrica de tecidos na
segunda metade do século XIX até aos primeiros anos deste século) ; Salgueiro (devido à quantidade desta
espécie vegetal ali existente) ; Canhoto
(pelo facto da àgua entrar no rodízio ao contrário do que era vulgar nos outros
moinhos) ; Moinho Grande (onde os
moleiros podiam dormir, passando a noite devidamente acomodados) ; Miudeiros (derivando-lhe o nome da carta
corográfica do lugar) e moinhos doVale
Derradeiro.
Segundo os dados escassos que é possível ter à
disposição, o Moinho do Poço - o
único que resta - terá, possivelmente,
dois séculos de existência.
Ao longo do tempo sofreu as reparações que
foram sendo necessárias para chegar ao tempo de hoje ainda em funcionamento,
tendo sofrido, entretanto, uma descaracterização da sua beleza plástica - há
cerca de vinte anos - quando perante a necessidade de não deixar vir abaixo as
velhas paredes de pedra argamassada no barro ligante e o telhado de lousas que
ameaçava ruir, os co-proprietários, utilizando o velho processo da adua uma vez mais alterado na sua raiz
histórica, repartiram entre si os custos da reparação, rebocando as paredes com
cimento e areia e cobrindo-o com um telhado de laje de betão armado.
Por dentro, tudo está igual
Mantêm-se intactas as várias peças do engenho,
de uma beleza artesanal que sempre me encantam quando as vejo, sem nunca cansar
o meu olhar e, muito menos, o meu amor pelo velho Moinho que moeu o pão duro
das gentes da minha terra.
O Moinho
do Poço perdeu, no entanto, muito do seu encanto antigo, um facto que se
lamenta, mas que deve constituir, como já se disse, um chamamento ao pelouro da
Cultura, seja da Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra ou de outras Câmaras
vizinhas, para que tais atentados não voltem a acontecer, pela necessidade que
há de manter viva na sua beleza rústica este património riquíssimo, de valor
inestimável.
Na primeira viagem que fiz a P.......... após o arranjo do Moinho do Poço, dei comigo no
próprio lugar a compôr mentalmente as primeiras rimas, que depois no silêncio
da minha casa, por entre o barulho da água a cair no Poço, junto ao Moinho,
resultaram nesta peça de recorte poético:
Recordo-me
bem da tua graça
Meu
lindo e velho moinho
De
pedra tosca e simples traça
Coberto
de um pó branquinho
Como
se fosse uma manta!
Ainda
te vestes de era
Com
um donaire que encanta
Quando
chega a Primavera!
Estás
às claras de quem passa,
Bem
no fundo... no teu ninho.
Mas
ao ver-te, hoje, na cor baça
O
meu olhar que te enlaça
Lembra-se
do velho moinho!
Dantes...
era noite e dia.
O
teu rodízio era uma asa...
Sempre
de roda se ouvia!
Lá
dentro a tua mó moía
E
dava pão à minha casa.
Benzia-o
a minha avó
E
a sua mão de santinha,
Tinha
a força da tua mó
E
a brancura da farinha!
Tudo
está longe e perdido...
Ó
meu moinho de outrora!
Como
tenho vivo o sentido
De
um tempo que foi embora!
Mas
o álamo vive, ainda,
E
o sussurro da cachoeira
Tem
a mesma canção linda
Ao
borbulhar na ribeira...
E
continua a haver juncais
E
madressilvas onde moras!
E
há giestas e silvas tais
Que
dão enormes amoras!
Mas
tu perdeste a canção
Que
acordou muitas auroras
Em
tempos que já lá vão!
-
Porque foi que a perdeste
Se
há perfumes no caminho?
-
Porque foi que emudeceste
Meu
lindo e velho Moinho!
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