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domingo, 16 de junho de 2013

Os moinhos de água da Beira - Serra




SEU APOGEU E SUA DECADÊNCIA

(Lembrando o “Moinho do Poço” na Ribeira de P.....)



“Nos tempos em que se desconhecia a energia eléctrica que haveria de revolucionar o mundo do trabalho, criando um novo estilo de vida: no período não muito distante  em que se  ignorava  as maravilhas da técnica e da mecânica, em que não existia a fábrica  e a máquina ensaiava os primeiros passos, o moinho accionado (...) pela água reinava então soberanamente.”

Manuel d’Oliveira Rebelo, in Retalhos da Minha Terra



INTRODUÇÃO

É um privilégio que muito me honra o facto de ter nascido em P........ uma aldeia rodeada de montes e que bem cedo me viu abalar agarrado à sorte dos meus progenitores, que como tantos outros, procuraram noutras paragens meios mais propícios no tocante aos bens essenciais, escassos - ou mesmo ausentes - nas aldeias da Beira-Serra.
 Menino ainda - tinha, então, nove anos - recordo-me de um dia em que estava de visita à aldeia, no período das férias grandes, ter abalado com a minha avó materna, de tão grata memória, a caminho do Moinho do Poço, acedendo de bom grado a um convite que ela me fez.

Eu era no seu dizer simples o neto que vinha de muito longe... e a quem ela por esse motivo acrescido dedicava uma grande ternura, tendo tido o condão de adivinhar de como tudo na aldeia onde havia nascido me interessava saber.
Talvez, por isso, recordo ainda hoje perfeitamente tudo quanto aconteceu naquele passeio encantado de duas centenas de metros
Levava a doce velhinha perfeitamente equilibrado sobre a sua cabeça um taleigo feito de variados panos e de muitas cores, inchado dos dois alqueires de milho que haviam sido retirados da arca existente na grande sala da casa aldeã, para que, segundo o ajuizado parecer o munho não moesse em vão...

Quando chegámos, após ter descido pela sua mão o apertado carreiro que serpenteava pela pequena encosta por entre o mato florido e as madressilvas que rompiam de entre as silvas cheias de amoras e que punham no ar o seu perfume tão característico, os meus ouvidos registaram para sempre um som cadenciado que vinha de dentro do moinho: roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc - uma melodia bem conhecida da moleira  -  que a fez exclamar numa expressão de alívio:

- Graças a Deus! A moega inda tem grão.

Anos depois viria a saber que o facto de se deixar acabar o grão originava o desaparecimento precoce das rugosidades da mó móvel, o que implicava o seu desmonte para que fosse picada, uma tarefa algo trabalhosa que pedia a mão certa de um artífice que nem sempre se encontrava disponível por perto.
Era isto uma preocupação que exigia muito cuidado e muita prática.

Esta minha primeira visita ao Moinho do Poço acompanhado daquela santa moleira, que vi, depois, atarefada nos trabalhos de apalpar a farinha e pelo tacto calcular o grau da sua eficácia para o fabrico da broa jamais me esquecerá.
Ela foi o começo de um namoro pelo velho moinho, que da dezena que houve em laboração ao longo da Ribeira de P.........., ainda cumpre, hoje - de volta e meia - a sua tarefa secular da moenda, hoje cometida, apenas, ao pouco milho que recebe.
Na Beira-Serra - segundo penso -  algo se passa semelhante a este quadro.

Julgo que as edilidades deveriam ter alguma intervenção nestes testemunhos autênticos de um passado duro, que moeram como diz o nosso povo - o pão que o diabo amassou - e onde se esconde muito da nossa identidade mais pura, na procura de serem preservados aqueles que restam porque são pedaços genuínos da nossa cultura e da nossa raça beirã.
Talvez, por isso, não há visita que faça à minha aldeia sem que os meus passos não desçam a velha encosta  - com uma terna saudade pela linda cicerone da minha infância - constatando que continuam a florescer os matos, as silvas e as madressilvas, a que se juntam os juncais, os salgueiros e as rosas bravas, como se nada houvesse mudado, e dê comigo a olhar o cabouco do moinho que alberga já não o velho rodízio de pás de madeira fortemente encrustado na péla mas um outro que o progresso arranjou de ferro fundido, mas que não exprime da mesma maneira a música antiga que trago ainda nos meus ouvidos: roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc / roc-toc-toc-toc.

É, para essa relíquia velhinha que a minha alma tangeu na sua lira serrana o seguinte acorde, estribado nesta quintilha que é um espelho reflector da minha própria saudade:

                                                            
                                                           Tua lembrança semeia
                                                           Uma saudade distante
                                                           Do tempo em que na aldeia
                                                           A tua canção vibrante
                                                           Não era “de volta e meia”...



RESENHA HISTÓRICA DOS MOINHOS DE ÁGUA


Ainda o homem lascava  as pedras para os seus machados e preparava as suas facas   e pontas de flechas com seguras e hábeis pancadas e já triturava e moía raízes, frutos e grãos silvestres que ajudavam a sua magra alimentação.

Fernando Galhano, in Moinhos e Azenhas de Portugal


A história dos moínhos-de-água com roda de pás de eixo horizontal - tal como chegaram ao nosso tempo esconde-se sob a poeira de muitos séculos -  o que não impede de se ter alguns conhecimentos sobre a sua realidade evolutiva no que se refere à técnica que os tempos iam permitindo e o engenho do homem ia conseguindo aperfeiçoar.

Conforme peças e documentos antigos os engenhos molinários sofreram um longo aperfeiçoamento desde o mais primitivo até ao moinho que chegou aos nossos dias e, ainda vemos, poucos em movimento e muitos desmantelados, no sopé dos vales da Beira Serra onde correm as nossas ribeiras, um facto desolador que não deixa de ser um atentado à memória dos nossos avós e à cultura serrana.

A sua origem, pode dizer-se, terá começado cerca do ano 10.000 a.C. no Sudoeste Asiático, no momento em que o homem encetou os primeiros passos no domínio das coisas naturais, tendo como preocupação o esmagamento de alguns frutos e suas sementes para prover à sua magra alimentação.
Por volta do ano 8.000 a.C. o homem do Paleolítico empreendeu uma nova caminhada civilizacional e embora tenha continuado a depender dos utensílios de pedra aprendeu a fazer as primeiras culturas de um modo mais organizado.

Dá-se, então, início ao Neolítico.
Segundo se crê este estádio de tempo da Humanidade teve o seu início no crescente fértil do Médio Oriente, tendo no ano 6.000 a.C. alastrado para o Sudeste Asiático e para o Sudeste Europeu.
Temos, assim, que no Velho Mundo é ponto assente que as fases mais importantes da revolução agrícola teriam ocorrido entre os anos 10.000 e 5.000 a.C., numa faixa que se estendeu entre a Grécia setentrional e o Irão actuais e, igualmente, do Jordão à Crimeia, com o cultivo, aqui, dos primeiros cereais: trigo e cevada a que sucedeu a aveia, tendo resultado daqui uma necessidade crescente de transformar em farinha os grãos duros destes cereais.

Os primeiros agricultores da actual Europa central instalaram-se no vale do Danúbio. Provinham da Hungria e teriam chegado à Holanda por volta do ano 4.000 a.C., tendo o Ocidente - onde se incluía o espaço geográfico de Portugal - sido colonizado pelos primeiros agricultores provavelmente por volta do ano 3.500 a.C., altura em que também se dá a conquista das grandes planícies do Norte da Europa pelos colonizadores neolíticos que penetraram na Dinamarca e na Suécia.

O moinho-de-água tem deste modo uma longa história atrás de si, entroncada no tempo da pedra lascada, quando o sistema pré-agrário originou a necessidade de em primeiro lugar esmagar os frutos silvestres, as suas sementes e, depois os grãos das primeiras culturas.
Inicialmente, o homem do Paleolítico teria usado duas pedras toscas e só muito depois o pilão e o gral (almofariz).
Ter-lhe-á sucedido a fricção de uma pedra sobre uma outra de características planas, especialmente, no Egipto.
Era a época das chamadas mó de rebolo.

O passo seguinte regista o uso das primeiras mós com movimentos axiais.
Eram formadas por dois blocos de pedra, de forma irregular: um deles muito maior que o outro e sobre o qual se movia o mais pequeno. Estes engenhos tinham o punho da mó moente colocado num dos lados e o eixo descentrado, sendo a farinação feita por - movimentos de vai-vem -  até ao momento em que tendo-se adoptado o centro de gravidade das duas pedras em cujo eixo se colocou o espigão, este facto - como é evidente -  simplificou a função das moendas.
 Isto que hoje nos pode espantar não ter sido mais cedo posto em uso é, no entanto, uma realidade histórica na evolução do moinho.

Contudo, este facto apesar da sua importância não teria levado desde logo as mós a executar um movimento totalmente circular, pois de acordo com escavações levadas a efeito com toda a seriedade e cuidado, têm-se encontrado mós com punhos laterais instalados tão chegados às paredes que era absolutamente impossível dar-lhes a volta completa.
A História bíblica regista o facto de Sansão - o último Juíz de Israel - (1.100 anos a.C.) após a traição de Dalila, ter sido condenado pelos seus inimigos filisteus a fazer girar a mó[. É nessa humilhação histórica de moleiro forçado que no-lo apresenta o famoso filme de Cecil B. de Mille “Sansão e Dalila”, realizado em 1949.
Durante muitos séculos este processo permitiu por em movimento duas pedras maiores que aquelas que era possível movimentar com a forças das mãos.
No seu afã de se modernizar só muito mais tarde o homem percebeu que o aproveitamento das energias naturais lhe haviam de trazer grandes vantagens, não se sabendo, no entanto, qual o ponto do Globo onde terá surgido o primeiro engenho hidráulico destinado à tarefa da moagem.

O movimento circular completo das mós, segundo parece, terá surgido em primeiro lugar em Roma por volta do século V a.C.
Estaria, então, em uso o chamado moínho-a-braços - ou mó rotativa -  onde era utilizada a mão de obra dos escravos; mais não era que aquele engenho que passou a designar-se entre os romanos, por: mola asinária -  assim chamada por ser também movida por burros - e cuja constituição se cingia a uma mó inferior solidamente fixada, de superfície cónica virada para cima e onde havia um espigão de ferro cravado no seu vértice. Sobre essa base girava outra mó cónica vazada na parte inferior para se ajustar à conicidade da base e na parte superior continha um vaso com alguns orifícios para deixar passar o grão de encontro ao cone fixo, onde era farinado.
Este aparelho de moendas passeou com todas as legiões romanas até aos confins do Império,  onde era usada a mão de obra dos condenados e dos escravos.

No ano 85 a. C., Antíprates de Tessalónica - a actual Salónica, no mar Egeu -  relata num dos seus trabalhos de poesia a existência dos primeiros moinhos hidráulicos, sendo certo que o primeiro moínho-de-água de roda vertical - conhecido como moinho romano, segundo Vitrúvio, no seu livro “De Architectura” -  data do ano 25 a. C.
O moinho-de-água de roda horizontal que deu origem com todas as variantes que lhe foram introduzidas nos mais variados quadrantes do mundo até àquele que chegou às nossas aldeias teria sido utilizado pela primeira vez no século I da nossa era, tendo-se, no entanto, generalizado a sua construção e consequente uso só a partir do século IV, no tempo do Imperador Constantino - o Grande - (271-337) .

 Este acontecimento terá diminuido de tal modo o esforço do homem que há quem  atribua o descanso dominical decretado por este Imperador, no ano 321, não como uma consequência directa da sua conversão ao cristianismo, mas por não ser necessária a utilização do trabalho humano como até então era feito.
Há quem defenda esta aparente indiferença dos romanos pelo avanço da técnica molinária ao facto histórico de terem podido dispor de mão de obra barata provinda das grandes legiões de escravos que subjugavam pelos quatro cantos do seu vasto Império.
Em Portugal, a notícia mais antiga que se conhece sobre estes engenhos de moer  cereais data de 1157, no tempo em que sendo Gualdim Pais mestre absoluto da Ordem do Templo, houve uma doação régia que a este mestre e à sua Ordem se fez de oito moinhos na Ribeira de Alviela, declarando-se que metade do seu rendimento seria para a coroa.

Historicamente, pode afirmar-se que nos forais que eram concedidos às terras as pensões devidas eram pedidas aos senhorios e nunca aos moleiros.
Relativamente ao seu apogeu não se poderá fixar um período exacto.
Poderá no entanto afirmar-se que a sua utilização intensiva - a par das azenhas, moinhos de vento e de maré - perpassou durante vários séculos, tendo-os atravessado com grande eficácia desde o século IV até ao fim do século XIX e, ainda, com alguma projecção importante no primeiro quartel do século XX, de que é testemunha toda a região da Beira-Serra onde os moinhos de água constituíram uma parte importante da nossa história multissecular.


OS MOINHOS, OS MOLEIROS E A LITERATURA


A simplicidade lúdica das construções, normalmente de pedra tosca e telhados de lousa em conjução com uma envolvente bucólica de verdes floridos a que o elemento líquido emprestava a componente natural e fundamental, desde sempre mereceu referências literárias a que se prendia o factor humano, normalmente radicado na moleira, pois desde tempos imemoriais foi do sexo feminino a tarefa das moendas.
De todos os autores que expressaram em forma de poesia o seu amor sobre este tema, nenhum - segundo a nossa opinião - é mais profundamente lírico e mimoso que Guerra Junqueiro (1850 -1923).

Natural de Trás-os-Montes (Freixo de Espada à Cinta) o meio da sua infância tê-lo-á influenciado ao escrever Os Simples, em 1892, um livro onde não há um termo erudito mas onde perpassa a graça simples  dum lirismo popular e genuíno, eivado de uma grande filosofia mas com a total ausência do filósofo.
E foi com os olhos nos moinhos da sua infância e, sobretudo, assestados na figura linda de uma moleira anciã - a que ele chamou A Moleirinha - que ele escreveu em verso uma das páginas mais belas da Literatura portuguesa, fazendo-a viver, a caminho do moinho, tocando o burrico com um galho verde de giesta, e que o Poeta, significativamente, descreve como estando em flor, não descurando neste pequeno pormenor o encanto da poesia que nos legou.

Diz assim, Guerra Junqueiro:


                                   (...)

                                   Toque, toque, a velha vai para o moinho;
                                   Tem oitenta anos, bem bonito rol!...
                                   E contudo alegre como um passarinho,
                                   Toque, toque e fresca como o branco linho
                                   De manhã nas relvas a corar ao sol.

                                   Vai sem cabeçada, em liberdade franca,
                                   O jerico ruço duma linda cor;
                                   Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,
                                   Tange-o, toque, toque, a moleirinha branca
                                   Com o galho verde duma giesta em flor.

                                   Vendo esta velhita, encarquilhada e benta
                                   Toque, toque, toque, que recordação!
                                   Minha avó ceguinha se me representa...
                                   Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,
                                   Quem me fez o berço fez-lhe o seu caixão!...

                                  
Sempre que leio este poema lindíssimo, lembro-me tal como o Poeta, da minha avó aquando da minha primeira visita ao Moinho do Poço, na minha aldeia serrana.
Também ela, ao regressarmos, trazia enfarinhado o seu avental de sarja preta, e vinha sorridente por transportar a farinha e algum carolo, com que me fez uma papas açucaradas que ainda hoje recordo.
Um outro autor que encantou a minha juventude chama-se Ponson du Terrail (1829-1871)
Escreveu ele, entre muitas obras, O Grilo do Moinho... que era uma rapariga!
Descreve do seguinte modo o engenho hidráulico e a sua moleira:

Fica ao fundo (...) pouco além da Igreja, ao sopé da primeira colina  que forma o vale. O ribeiro que o põe em movimento não vem mencionado nos mapas, nem na carta corográfica do Departamento.
Penso que este faria parte de Grenoble, a sua terra natal.
Continua, depois:
É um riacho turbulento que sai dos areais de Sologne, cuja água tem um ligeiro sabor a pez, o que não impede que seja clara, límpida e transparente como cristal quando lhe bate um raio de sol (...)
O moinho chama-se “Ramo do Amor”.
A moleira era uma mulher formosa, que teria, quanto muito, quarenta anos (...)
O riacho fazia-o girar durante todo o ano; noite e dia se ouvia o som cadenciado das suas rodas.

Tal como Guerra Junqueiro, não deixa o escritor francês de ligar ao moinho o elemento humano e de novo nos aparece a moleira, como a asseverar que ao longo dos tempos terá sido  a mulher quem mais se dedicou a estes trabalhos.
Já assim havia acontecido no Egipto, na Arábia e na Palestina e na Grécia, com os velhos moínhos-de-braço.

Eça de Queirós, com a realidade por vezes dura da sua pena - mas que mais não fez do que retratar a vida do seu tempo - escreveu um conto que intitulou: No Moinho, onde faz a descrição da infeliz Maria da Piedade e do seu primo Adrião, o literato que desejando vender a Curgossa, uma fazenda ao pé da vila mas sem ter conhecimento agrários se valeu dos conhecimentos dela sobre o meio para avaliar a propriedade.
Nestes trabalhos, de uma certa vez, é descrito um dos passeios ao moinho.
Era - como diz o grande escritor - um recanto da Natureza, digno de Corot, sobretudo à hora do meio dia (...)
O moinho era de um alto pitoresco, com a sua velha edificação de pedra secular, a sua roda enorme, quase podre (...)
Não vem ao caso relatar o atordoamento causado tempo depois, em Maria da Piedade, motivado beijo roubado pelo primo Adrião e, muito menos, todo o enredado do conto, mas tão só, dar a conhecer como o autor não descurou a beleza rústica de um moinho de província e do seu lugar romântico para nos deixar páginas de uma realidade que nos podem chocar pelos afectos tardios e humanamente explicáveis, no tocante a Maria da Piedade, mas que não deixam de constituir uma forma brilhante de contar histórias tão ao gosto do celebrado escritor de cuja pena a Literatura portuguesa herdou das mais fecundas e brilhantes páginas que algum dia se escreveram em Portugal.

Na continuação destas breves incursões literárias, cabe aqui recordar um texto rústico, autêntico e de tanta beleza agreste que torna a sua leitura integral uma obrigação intelectual.
Escreveu-o Miguel Torga, fazendo-o inserir nos “Novos Contos da Montanha” sob o título: “O Senhor”.
Descreve o autor a caminhada do Padre Gusmão até ao Moinho do Fojo onde vivia um casal de moleiros, o Malaquias e a Filomena.
Estava a moleira acometida das dores de parto havia três dias e em trabalhos tais que temendo o pior havia pedido o Senhor.
O Padre Gusmão levava na sua companhia - como era imperativo quando o campanário anunciava o Senhor fora  - todos os que se sentiam obrigados a obedecer à ordem que descia do campanário, o que não impedia os mais cansados de se sumirem nos  cortelhos...

“O Senhor” é de facto um texto maravilhoso.

Dá-nos conta do isolamento daquele casal de moleiros perdidos nos ermos de Midões, onde ficava o Moinho do Fojo e onde à falta de médico ou de parteira o Padre Gusmão fez de um e de outro, retirando sã e salva do ventre da Filomena a criança que havia dias se recusava a nascer.
Para finalizar este bosquejo pelas andanças literárias de alguns expoentes dessa arte difícil e complexa que é a de exteriorizar para o papel os sentimentos da alma humana, não era possível esquecer um autor que é muito nosso.

Trata-se do médico Vasco de Campos - um dos maiores Poetas deste século, da Beira-Serra - que um dia no cumprimento esforçado da sua profissão que dedicou com grande sentido altruísta às gentes rurais junto de quem exerceu o seu sacerdócio clínico, teve usar todo o seu saber e ciência clínica para salvar o filho e a moleira dos Moinhos da Coruja.
No seu livro “Serra” - que é um grito de humanidade profundamente vivido nas andanças pelos mais inóspitos alcantis, todo ele um fruto amargo de uma vida dura e autêntica -  conta o autor, no texto: “O Parto da Moleira” ter sido numa certa manhã abordado deste modo pelo Fartura:

“Senhor doutor, venho aqui para vossa “incelência” ter o incómodo de ir ver a minha mulher, que está para dar à luz.
(...) acompanhei o moleiro  até aos Moínhos da Coruja, que ficam a montante da Ponte Nova, na margem direita do Alva. (...)
Continua, depois, o autor:
Pelo caminho o Fartura foi desfiando o seu  rosário de desgraças:  “duas ovelhas mortas com baceira; um suíno - com sua licença! - enterrado com malina; as “recolhenças” perdidas; e agora, a minha mulher...
É assim a vida dum pobre.
Só desandanças, senhor doutor! Sé desandanças!...
Não me alembra dum Samiguel tão escasso...

Após este discurso do Fartura, aponta o médico:
A residência era por cima dos moínhos. Por baixo tamborilavam as mós e rugia o açude.
Conta, depois, a odisseia clínica que o levou à salvação de duas vidas: a da mãe, em coma, a quem o forceps retira o filho em síncope e que é reanimado, um facto que o faz regressar a casa com meia batalha ganha, mas muito preocupado, segundo diz, acrescentando:
Nessa noite, pouco dormi, a pensar na moleira...
Cabe aqui referir que outro grande vulto da poesia da Beira-Serra, José Cabral, por causa desta e doutras noites mal dormidas lhe disse o seguinte numa carta que lhe enviou para o “Búzio” 

Bato-te à porta  Moleiro Santo do Lirismo Casto[ (...) homenageando desta forma singular o Médico-Poeta, que foi efectivamente um moleiro santo no grande moinho da vida.
Ficamos por aqui, na certeza de que estes breves apontamentos que nos situam na roda dos moinhos de água e daqueles que em tempos neles exerceram o seu ofício ou exerceram como a minha avó uma profissão de circunstância, foram, quer o espaço físico das moendas, quer os moleiros, uma referência válida e motivo de encanto de muitas gerações, onde sobresaíram aqueles que pela arte da escrita nos deixaram pedaços imorredoiros.
Tendo perdido, hoje, pela força das modernas tecnologias a sua importância milenar, estas construções simples - as poucas que ainda restam - deviam merecer todo o nosso cuidado pelo facto de representarem aos nossos olhos e aos nossos sentimentos mais fundos ecos de um passado que começa a ficar distante, especialmente às novas gerações.

                                  
OS MOINHOS: ANTIGOS OBJECTOS DE ADUAGEM


Como réstia de um costume antigo em que as aduas eram impostos que os reis ordenavam que fossem pagos em trabalho ou em dinheiro com destino ao conserto ou conservação dos muros dos castelos ou muralhas defensivas das cidades, em alguns territórios de Portugal eram os habitantes de uma povoação obrigados aos trabalhos de fortificação, na povoação que habitavam. (...) A faculdade de exigir a adua  era um dos direitos  que o rei, na doação das povoações, costumava reservar como inalienável e inseparável da coroa.[1]
Este hábito ganhou raízes e mesmo depois de ter sido abolido, obrigando os naturais de uma certa povoação necessitada de um melhoramento público, como aconteceu nas aldeias da Beira Serra com a edificação dos moinhos de água organizavam eles mesmos as suas aduas, ou seja, o tempo ou o dinheiro que cada um podia dar para levar por diante o evento.

Como resultado prático, cada um, segundo o que tinha dado, ficava com o direito de exercer em plenitude o seu grau de proprietário do moinho, fosse em horas ou em dias, fazendo do mesmo uma propriedade comum devidamente organizada, sem que para a mesma houvesse escritura lavrada em qualquer cartório notarial.
Este facto demonstrativo de uma vida rural assente na confiança e nos respeito mútuos, senti-o presente desde que tenho lembrança na minha aldeia de Praçais, quando ouvia as pessoas - a começar pelas da minha casa - dizerem, no modo de quem organiza a vida doméstica e a repartição dos tempos:

- A essa hora não podemos fazer isso porque a adua do moinho, hoje, é nossa...
Queria isto dizer, pela adulteração dos termos iniciais, que a adua em dinheiro ou como esforço braçal que os meus antepassados teriam dado para a construção do Moinho do Poço, no tempo da minha meninice tomara o sentido de tempo - em horas - que recaía de vez em quando na casa dos meus avós para eles procedessem à moenda dos  seus cereais pelo usufruto de um direito secular, perdido na memória das gentes.
Ou seja, a mão de obra antiga ou o eventual dinheiro que havia sido dado tinham ainda repercussões expressivas na minha infância, um facto que hoje não acontece em virtude do pouco milho[1] que é cultivado deixar a bela várzea da minha terra que é irrigada por uma farta levada de água cristalina,  de relva em grandes extensões, o que é um desencanto para os meus olhos.

O “MOINHO DO POÇO” NA RIBEIRA DE P...............

De acordo com dados que foi possível obter juntos das pessoas mais idosas da aldeia, onde se conta minha  Mãe com os seus noventa anos -  graças a Deus lúcidos - havia ao longo da Ribeira de Praçais, a começar de jusante até à povoação do Vale Derradeiro, os seguintes moinhos de água:

Cortavinha (nome devidado do facto da sua construção ter causado o corte de um pedaço de terreno cultivado de vides) ; Moinho do Poço (por se situar naquele lugar um poço profundo devido à queda de água da Ribeira e que constitue uma piscina natural). ; Volta (situado num cotovelo da Ribeira) ; Vale das Amoras (devido aos grandes silvedos que o rodeavam e os seus frutos consequentes) Fábrica (derivando-lhe o nome pelo facto de naquele lugar ter existido um a Fábrica de tecidos na segunda metade do século XIX até aos primeiros anos deste século) ; Salgueiro (devido à quantidade desta espécie vegetal ali existente) ; Canhoto (pelo facto da àgua entrar no rodízio ao contrário do que era vulgar nos outros moinhos) ; Moinho Grande (onde os moleiros podiam dormir, passando a noite devidamente acomodados) ; Miudeiros (derivando-lhe o nome da carta corográfica do lugar) e moinhos doVale Derradeiro.

Segundo os dados escassos que é possível ter à disposição, o Moinho do Poço - o único que resta  - terá, possivelmente, dois  séculos de existência.
Ao longo do tempo sofreu as reparações que foram sendo necessárias para chegar ao tempo de hoje ainda em funcionamento, tendo sofrido, entretanto, uma descaracterização da sua beleza plástica - há cerca de vinte anos - quando perante a necessidade de não deixar vir abaixo as velhas paredes de pedra argamassada no barro ligante e o telhado de lousas que ameaçava ruir, os co-proprietários, utilizando o velho processo da adua uma vez mais alterado na sua raiz histórica, repartiram entre si os custos da reparação, rebocando as paredes com cimento e areia e cobrindo-o com um telhado de laje de betão armado.

Por dentro, tudo está igual
Mantêm-se intactas as várias peças do engenho, de uma beleza artesanal que sempre me encantam quando as vejo, sem nunca cansar o meu olhar e, muito menos, o meu amor pelo velho Moinho que moeu o pão duro das gentes da minha terra.
O Moinho do Poço perdeu, no entanto, muito do seu encanto antigo, um facto que se lamenta, mas que deve constituir, como já se disse, um chamamento ao pelouro da Cultura, seja da Câmara Municipal de Pampilhosa da Serra ou de outras Câmaras vizinhas, para que tais atentados não voltem a acontecer, pela necessidade que há de manter viva na sua beleza rústica este património riquíssimo, de valor inestimável.

Na primeira viagem que fiz a P.......... após o arranjo do Moinho do Poço, dei comigo no próprio lugar a compôr mentalmente as primeiras rimas, que depois no silêncio da minha casa, por entre o barulho da água a cair no Poço, junto ao Moinho, resultaram nesta peça de recorte poético:



                                               Recordo-me bem da tua graça
                                               Meu lindo e velho moinho
                                               De pedra tosca e simples traça
                                               Coberto de um pó branquinho
                                               Como se fosse uma manta!
                                               Ainda te vestes de era
                                               Com um donaire que encanta
                                               Quando chega a Primavera!
                                               Estás às claras de quem passa,
                                               Bem no fundo... no teu ninho.
                                               Mas ao ver-te, hoje, na cor baça
                                               O meu olhar que te enlaça
                                               Lembra-se do velho moinho!

                                               Dantes... era noite e dia.
                                               O teu rodízio era uma asa...
                                               Sempre de roda se ouvia!
                                               Lá dentro a tua mó moía
                                               E dava pão à minha casa.
                                               Benzia-o a minha avó
                                               E a sua mão de santinha,
                                               Tinha a força da tua mó
                                               E a brancura da farinha!

                                               Tudo está longe e perdido...
                                               Ó meu moinho de outrora!
                                               Como tenho vivo o sentido
                                               De um tempo que foi embora!
                                               Mas o álamo vive, ainda,
                                               E o sussurro da cachoeira
                                               Tem a mesma canção linda
                                               Ao borbulhar na ribeira...
                                               E continua a haver juncais
                                               E madressilvas onde moras!
                                               E há giestas e silvas tais
                                               Que dão enormes amoras!
                                               Mas tu perdeste a canção
                                               Que acordou muitas auroras
                                               Em tempos que já lá vão!

                                               - Porque foi que a perdeste
                                               Se há perfumes no caminho?
                                               - Porque foi que emudeceste
                                               Meu lindo e velho Moinho!




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