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segunda-feira, 17 de junho de 2013

Os bons e os maus




No conto: “Como vai o Mundo” Voltaire, esse macaco de génio como lhe chamou Victor Hugo, põe em acção um anjo, Ituriel, e Babouc (1) como seu enviado a Persépolis (2) com o fim deste lhe fazer o relato do que acontecia naquela urbe, porque lhe constava que ela merecia ser castigada por causa dos seus desmandos.
Babouc encarregou-se o melhor que pode e soube da missão.

Aquilatou do motivo das guerras que havia e dos interesses ocultos que as originavam; dos romances de infidelidade entre homens e mulheres casados; da podridão da justiça; apontou, no entanto, o facto relevante de ter ouvido um palestra eloquente sobre o vício e a virtude, de ter ouvido e de se ter comovido  numa festa pública com um discurso sobre a moral, mas não deixou de anotar a agiotice de quem vendia mercadoria pelo quádruplo do seu valor real. Enfim, deu-se conta do mal que havia, mas, também, de algum bem encontrado.
Indeciso sobre o que havia de escrever do que vira em Persépolis, lembrou-se de visitar os magos e os letrados da cidade, uma vez que uns opinavam sobre a religião e os outros pelo saber.

Num certo dia, deu-se conta de uma imensidade de folhas escritas que constituía o relatório a apresentara a Ituriel.
Indeciso sobre tudo o que havia escrito, num rasgo de fúria rasgou-os, depois de ter ouvido de um letrado que em “todos os lados o mau pulula e o bem é raro”.
Para culminar a sua estadia na cidade, conheceu Téone, uma mulher de rara beleza que lhe fez perder a cabeça a ponto de pensar que se ficasse mais tempo em Persépolis esqueceria o anjo Ituriel em favor daquela mulher fatal, donde se pode concluir, que a ele mesmo encarregado da tarefa de registar os desmandos que havia na cidade lhe acontecia estar a concorrer para os mesmos.
Deu-se conta, então, que se havia afeiçoado àquela cidade, mas como havia rasgado os escritos do seu relatório deu em pensar como o havia de substituir por lhe parecer impossível a sua recuperação e de lhe ter ocorrido um expediente melhor para dar cumprimento à sua missão, tendo-se lembrado de mandar fazer uma bela estátua ao melhor fundidor da cidade.
Assim aconteceu.
Pegou nela e levou-a Ituriel, perguntando-lhe:

-Quebrarias esta bela estátua porque nela nem tudo são diamantes e ouro?

Este conto fantástico acaba com o anjo a perceber o sentido que estava implícito na pergunta de Babouc, o que o levou a não castigar a cidade de Persépolis e Babouc a não se lamentar como Jonas por não ver Ninive destruída.
O que fica de pé nesta história é uma certa humanidade de sentido cristão, em cujo ensinamento é dito que não devemos cortar – num primeiro assomo de fúria - as gramíneas que crescem no meio dos trigais.
Voltaire, como é sabido, nunca foi um homem em paz com a Igreja do seu tempo, mas foi no mais profundo de si mesmo um lutador e agitador de causas pela defesa dos mais fracos ao ver os contraste políticos e sociais que havia na sua Pátria e daquilo que se passava além-Mancha, onde esteve exilado entre os anos 1726 e 1729.
Pesem, embora todas as reservas que possam haver sobre a figura de tão grande intelectual, este conto é um reflexo do homem de génio que ele foi, descrevendo com invulgar malícia e poder de observação o bem e o mal que existe no mundo, sendo que o castigo divino – aqui personificado na figura do anjo – não se deu, porque o confronto entre essas duas vertentes da vivência humana é um facto histórico e o próprio S. Paulo afirma na Carta aos Romanos: (...) “não compreendo o que faço; pois não faço aquilo que quero, mas sim aquilo que aborreço”, (3) ou seja, dando-nos deste modo uma imagem da luta interior entre os desejos mais nobres e os mais vis sentimentos que assaltam os homens e, em consequência, o mundo.

S. Paulo, é sabido, deu o salto em frente e passou a praticar o bem, abjurando todo o mal que fizera, ao ponto de ser um Santo e dos maiores.
A nós todos, cumpre a tarefa de melhorar o espírito da cidade, não destruindo o mal, fazendo o outro tanto, mas tentando que ele deixe de existir pela prática do bem.
Desse modo, rasguemos todos os relatórios do mal que vemos e  substituamo-los, como fez Babouc, usando os expedientes que nos pareçam adequados a cada caso ou a cada situação.
O importante é não fazer um mal para erradicar outro mal.
Este procedimento nunca foi nem nunca será a solução.
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(1) - Babouc, é o personagem principal.
(2) - Trata-se da cidade de Paris.
(3) - Rom 7, 19

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