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quinta-feira, 20 de junho de 2013

A moral das coisas



Os costumes, cuja excelência torna o governo quase inútil e cuja corrupção o torna quase impossível 
Tocqueville , Charles    

Se os teus princípios morais te deixam triste, podes estar certo de que estão errados
Fonte: "Across the Plains"
Stevenson , Robert     


A moral cívica é o conjunto de preceitos e normas que a generalidade dos indivíduos de uma comunidade aceitam como adequados ou válidos. Este é o conceito normalmente inserto nos manuais de Filosofia.
O óbice está na definição correcta dos preceitos e das normas.

Os preceitos sugerem os deveres e as atribuições que lhe são próprias e as normas a directriz e os métodos a que esta deve obedecer, mas é aqui, no estabelecimento harmoniosos destas balizas motoras das sociedades adultas que está a moral das coisas.
Vejamos: partindo de um tempo antigo e numa procura de moralizar a vida e a política, vemos  Aristóteles ao lado de Alexandre, e Séneca ao pé de Nero, acontecendo, até, que em séculos mas próximos, nunca deixou de haver preceptores eméritos ao lado dos que tinham a herdar o ceptro e a coroa.
Sabe-se, contudo, que aqueles antigos moralistas nem sempre foram bem sucedidos, quer na área religiosa, quer na área civil.
Vieram, depois, os tempos modernos.

Cada homem foi levantado a cidadão; cada cidadão teve a sua parte na governação do Estado. E daí resultou que todo o homem, além da sua moral como indivíduo, como membro de urna família e como fiel de uma comunhão religiosa, precisou da moral própria da sua nova situação, da moral política, que é melindrosíssima e de uma dificuldade enorme.

Onde resolver isto? Nasceu aqui o dilema.

O cristianismo não tinha, não podia ter, normas prefixas para a existência militante, activíssima, que é a própria essência da liberdade, embora tenha dado um contributo inestimável na concertação da sociedade, porque em grande parte é ele que formam e movem o amor, a fé, a abnegação, o entusiasmo pelo bem, a dedicação tenaz, a lealdade completa, todos os brandos sentimentos que constituem a nobreza da nossa espécie, e nunca foi possível apertar e conter nas fórmulas estreitas do egoísmo animal.

O cristianismo puro, enquanto doutrina moral e cívica foi, por isso  – e devia ser no tempo de hoje -  o cimento agregador da liberdade individual do homem, se levarmos em linha de conta que um dos mais belos períodos da história humana foi aquele em que se inaugurou a transição dramática do antigo sistema para o actual regime da liberdade. É ainda recente. Os nossos pais foram agentes ou testemunhas dessa transição. O que fascinou, encantou os povos foi a ilusão imensa – formosíssima ilusão! - que fez crer que a felicidade social podia resultar, imediata e perfeita, da simples acção das leis! Certas palavras tiveram então o maior prestígio que pode haver nos sons articulados da nossa língua. A poesia lírica, esta adorável faculdade que conserva sempre no género humano, ainda nas velhas idades, a sua antiga alma infantil e moça; a poesia lírica tomou para si, como assunto, a emancipação da liberdade humana, e cantou-a fervorosamente.

 Mas não foi somente no coração popular, naturalmente ingénuo, que o entusiasmo pela aparência das coisas chegou ao sublime desvairamento em que é possível a germinação conjunta da poesia e do heroísmo. Os primeiros efeitos da mutação política perturbaram e iludiram até os melhores espíritos. Pensou-se, escreveu-se que a liberdade era escola de si própria e um curso permanente de moral política.

Erro profundo foi este, pois, não tardou que a esperança caísse, desfeita... A alma dos povos, como a alma dos indivíduos, agitada e sacudida por uma comoção violenta; transfigura-se, ilumina-se, sente em si um deus interior, vê intuitivamente mil coisas que eram obscuras... Depois a vibração acaba, o entusiasmo arrefece, as coisas entram no seu curso normal, irregular e lento... e vê-se então que em matéria de costumes não se edifica levemente, não se edifica depressa.

Este tem sido outro erro provindo de um regime totalitário anterior ao Liberalismo e, mesmo, no decorrer deste - embora já muito atenuado – a multidão que compunha a sociedade, obedecendo no primeiro dos casos a um só senhor e no segundo a vários mas já menos prepotentes, tem vindo a sofrer de um mal social que não tem sabido erguer os costumes morais numa escala bem alta, não tendo deles apenas uma visão egoísta – como acontece – mas fazer deles a grande alavanca da harmonia colectiva.

Desse modo, por muitos que nos custe, diremos que os povos modernos não têm sabido  como reformar o Estado e que muito embora resulte de leis imanentes de agrupamentos sociais se estes na génese esquecem a moral do cristianismo original – e essa é a pedra angular  - o Estado em vez de ser um acidente no destino humano, de muito secundária importância, ele é esta instituição orgânica, complexa, multiforme, quase omnipotente, que nos envolve por todos os lados, que toma conta de nós antes de nascermos e nem à beira da sepultura nos deixa, que influi na nossa liberdade, que actua na nossa consciência, que tem a seu cargo defender-nos a propriedade e a vida, que, como um grande navio no imenso mar do tempo, nos leva inteiramente para o futuro, com boa ou má fortuna.
Se isto fosse entendido assim, os interesses do Estado andariam, como andam, pospostos na consciência pública, com infinita distância, aos interesses individuais e aos interesses familiares?!

O Corão que vai beber muitas vezes à pureza do cristianismo, tem num dado versículo esta máxima importante: O governo que nomeia um homem para um emprego, havendo nos seus estados outro homem melhor, peca contra o Estado e contra Deus. Quem se impressiona já, neste nosso mundo de Cristo, com a exaltação, predisposta ou improvisada, de tantos que têm apenas, na sede do talento, a habilidade da intriga, e no lugar do coração... um espaço vazio?!
Não há nada mais melindroso do que a reputação do homem de Estado. E com toda a razão. Eu sei que não pode provar-se uma acusação de improbidade pessoal contra qualquer dos homens eminentes, que superintendem nas coisas públicas (...) mas tenho pensado muitas vezes com tristeza que sendo honrados, como quero acreditar, nem sempre se preocupam muito de o parecer!

Palavras sábias, que nos deixam a pensar na moral das coisas… Palavras actuais. Mas é de referir que todo o texto em itálico pertence a António Cândido (1) tendo feito parte de um discurso, em 29 de Agosto de 1887 no Ateneu Comercial do Porto, tendo como pano de fundo a Moral Política.
Faz parte do programa “Vida Nova” apresentado por ele mesmo na Câmara dos Deputados em 17 de Fevereiro de 1880 e que viria a ser desenvolvido por António Pedro Oliveira Martins, em 1884, dentro das linhas orientadoras do Partido Progressista.
Já naquela altura, António Cândido afirmara que a situação política – tal como estava – preparava-se para ir ao fundo na primeira borrasca, declarando:
É preciso refazer o homem interior, desmoralizado pela lição contraditória dos livros e dos factos, pela desastrosa influição da doutrina quase sempre falsa e dos exemplos terrivelmente contagiosos; é urgente restabelecer a justiça, a eterna justiça simples e eficaz, nos sentimentos da opinião e nos factos do poder. Sem isto a teoria é vã e a prática é mortal.
Tem de ser por aqui, refazendo o homem interior, que temos de nos erguer, não nos venha a acontecer o que ele mesmo relatou no final da sua conferência, com esta história, que é um velho apólogo de Platão:

Navegava uma barca pelo mar. Os marinheiros mataram o capitão, e deitaram-no às ondas; depois guerrearam entre si, desesperadamente, disputando o leme.
Os passageiros, que eram pessoas gradas e ricas, sentados comodamente, riam daquela fúria insana, e contemplavam com imenso gosto a sua própria sabedoria... Ninguém notara ainda o, estado do Céu.

De repente, levanta-se o vento, encrespa-se o mar, desencadeia-se uma temerosa tempestade, e a barca, com todos que estavam dentro, vai para o fundo...
Estes passageiros – não importa serem pessoas gradas e ricas, mas pessoas responsáveis – somos todos nós. Não podemos ficar indiferentes às lutas nem sempre exemplares que se passam ao nosso lado e que têm uma profunda influência no nosso destino colectivo.
Cumpre-nos o dever de intervir na sociedade onde quer que nos movamos, dando exemplo de conduta moral e cívica e  desmascarando todos aqueles marinheiros que querem matar o capitão, sendo que aqui, o capitão é o País que temos.
Cumpre-nos o dever de cada um de per si moralizar os costumes, em nome da Liberdade!
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(1) - António Cândido Ribeiro da Costa (Amarante, Candemil, 29 de Março de 1850 - 9 de Novembro de 1922) foi um clérigo, orador e político português; ganhou fama de extraordinário orador, ficando conhecido por A Águia do Marão.(in, Wikipédia)

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