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segunda-feira, 17 de junho de 2013

Um poema teologal


Com o título do seu Livro, “Orfeu Rebelde, Miguel Torga – a grande referência literária da lusitanidade do século XX – faz-nos vir à lembrança o “orfeu” lendário da velha Grécia considerado um revelador dos mistérios sagrados e, sobretudo, um civilizador religioso[1], especialmente, quando o Poeta nos brinda com um poema – Identificação - que é uma chamada de atenção à tibieza e falta de humanidade que tantas vezes anda à solta pelo mundo, quando em seu lugar devia haver a firme decisão de nunca desertar, estribados na confiança que deve existir perante a vida, dando a cada uma das chagas que ela nos dá, os pensos sagrados de que nos fala o autor, numa linguagem teologal de um grande humanismo:
Vai a barca do mundo à flor das vagas
No seu mar de tormentas;
Gemem os remadores
Mordidos pelo beijo do chicote;
E tu, poeta, como um sacerdote
da bonança,
A conjurar o mal,
A pregar confiança,
A cantar,
A cantar,
Sem nenhum desespero
Te desesperar!
Sabe cada ternura a pão azedo,
Os acenos são ódios disfarçados;
E os teus versos, gratuitos, desfolhados,
Sobre as chagas da vida
Como pensos sagrados
De beleza calmante e condoída!
Que humanidade tens irmão?
De onde te vem a força, a decisão,
E esse gosto de nunca desertar?
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
Que ficasse a lutar
Junto de nós,
Tão presente, real e natural
Que podemos ouvir-lhe a própria voz!
 
Este poema é um hino dirigido a todos os homens bons que se identificam com o Poeta no desejo de serem na tal barca do mundo à flor das vagas os sacerdotes da temperança, conjurados para erradicar o mal que campeia, usando a eterna arma do amor, a cantar, sempre  a cantar...
Neste poema como em tantos outros, Miguel Torga assume-se como um teólogo profundo, porque muito daquilo que o  diferencia de outros cultores da Poesia, advém-lhe da  raiz transmontana de S. Martinho de Anta, de cariz religioso e telúrico e que lhe faz pensar no seu semelhante como um ser irmanado num sentimento que o torna puro nos conceitos emotivos de um humanismo lavado, que longe de estar enfeudado a palavras vazias, se torna num dom solidário, como, aliás, devia ser todo o humanismo que nem sempre existe no mundo que temos, egoísta e agressivo, fazendo nossas as perguntas de Torga, com desejos de nunca abandonar a causa do bem:
Que humanidade tens irmão?
De onde te vem a força, a decisão,
E esse gosto de nunca desertar?
Miguel Torga, conclui, depois, com uma afirmação cristológica – que devíamos reter – porque nos dá toda a dimensão da arte maior do seu engenho de grande escultor da palavra:                      
     És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
Que ficasse a lutar
Junto de nós (...)
Para se agigantar no final do poema quando fala do homem e o compara a um Cristo sem altar, que é, afinal, o que cada um de nós devia ser, para com a nossa atitude no meio da massa humana a poder levedar e fazer com ela o pão do amor, na certeza que só ele é capaz de regenerar este mundo falho de valores em todos os campos da vivência humana e onde os Cristos sem altar estão a fazer falta para o erguer de alguns lodaçais, das tais chagas da vida onde é preciso pôr os pensos sagrados de que nos fala o grande Poeta.

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