Com o título do seu
Livro, “Orfeu Rebelde”, Miguel
Torga
– a grande referência literária da lusitanidade do século XX – faz-nos vir à
lembrança o “orfeu” lendário da velha Grécia considerado um revelador dos
mistérios sagrados e, sobretudo, um civilizador religioso[1],
especialmente, quando o Poeta nos brinda com um poema – Identificação - que é uma chamada de atenção à tibieza e
falta de humanidade que tantas vezes anda à solta pelo mundo, quando em seu
lugar devia haver a firme decisão de nunca desertar, estribados na
confiança que deve existir perante a vida, dando a cada uma das chagas
que ela nos dá, os pensos sagrados de que nos fala o autor, numa
linguagem teologal de um grande humanismo:
Vai a barca do mundo à flor das vagas
No seu mar de tormentas;
Gemem os remadores
Mordidos pelo beijo do chicote;
E tu, poeta, como um sacerdote
da bonança,
A conjurar o mal,
A pregar confiança,
A cantar,
A cantar,
Sem nenhum desespero
Te desesperar!
Sabe cada ternura a pão azedo,
Os acenos são ódios disfarçados;
E os teus versos, gratuitos, desfolhados,
Sobre as chagas da vida
Como pensos sagrados
De beleza calmante e condoída!
Que humanidade tens irmão?
De onde te vem a força, a decisão,
E esse gosto de nunca desertar?
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
Que ficasse a lutar
Junto de nós,
Tão presente, real e natural
Que podemos ouvir-lhe a própria voz!
Este poema é um hino
dirigido a todos os homens bons que se identificam com o Poeta no desejo de
serem na tal barca do mundo à flor das vagas os sacerdotes da
temperança, conjurados para erradicar o mal que campeia, usando a eterna arma
do amor, a cantar, sempre a
cantar...
Neste poema como em
tantos outros, Miguel Torga assume-se como um teólogo profundo, porque muito
daquilo que o diferencia de outros
cultores da Poesia, advém-lhe da raiz
transmontana de S. Martinho de Anta, de cariz religioso e telúrico e que lhe
faz pensar no seu semelhante como um ser irmanado num sentimento que o torna
puro nos conceitos emotivos de um humanismo lavado, que longe de estar
enfeudado a palavras vazias, se torna num dom solidário, como, aliás, devia ser
todo o humanismo que nem sempre existe no mundo que temos, egoísta e agressivo,
fazendo nossas as perguntas de Torga, com desejos de nunca abandonar a causa do
bem:
Que humanidade tens
irmão?
De onde te vem a força,
a decisão,
E esse gosto de nunca
desertar?
Miguel
Torga, conclui, depois, com uma afirmação cristológica – que devíamos reter –
porque nos dá toda a dimensão da arte maior do seu engenho de grande escultor
da palavra:
És o Cristo, talvez...
Um Cristo sem altar
Que ficasse a lutar
Junto de nós (...)
Para se agigantar no
final do poema quando fala do homem e o compara a um Cristo sem altar,
que é, afinal, o que cada um de nós devia ser, para com a nossa atitude no meio
da massa humana a poder levedar e fazer com ela o pão do amor, na certeza que
só ele é capaz de regenerar este mundo falho de valores em todos os campos da
vivência humana e onde os Cristos sem altar estão a fazer falta
para o erguer de alguns lodaçais, das tais chagas da vida onde é preciso
pôr os pensos sagrados de que nos fala o grande Poeta.
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