OS AMIGOS
Amigos cento e dez, e talvez
mais,
eu já contei. Vaidades que eu
sentia!
Pensei que sobre a terra não
havia
mais ditoso mortal entre os
mortais.
Amigos cento e dez, tão
serviçais,
tão zelosos das leis da
cortesia,
que eu, já farto de os ver, me
escapulia
às suas curvaturas vertebraís.
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez, houve
um somente
que não desfez os laços quase
rotos.
- Que vamos nós (diziam) lá
fazer?
Se ele está cego, não nos pode
ver". .
- Que cento e nove impávidos
marotos!
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A cegueira que vitimou Camilo Castelo Branco começou a dar os primeiros sinais em 1865 tinha ele 40 anos, tendo-o atormentado nos seus últimos 25 anos de vida, sempre preenchidos com novos livros, até que em 1887 acaba por não publicar nenhum estando quase cego.
A 21 de Maio de 1890 escreve para Aveiro - num último acto de esperança - a seguinte carta ao então muito conhecido oftalmologista Dr. Edmundo de Magalhães Machado:
A 21 de Maio de 1890 escreve para Aveiro - num último acto de esperança - a seguinte carta ao então muito conhecido oftalmologista Dr. Edmundo de Magalhães Machado:
Illmo. e Exmo. Sr.,
Sou o cadáver representante de um nome que teve alguma
reputação gloriosa neste país durante 40 anos de trabalho. Chamo-me Camilo
Castelo Branco e estou cego. Ainda há quinze dias podia ver cingir-se a um dedo
das minhas mãos uma flâmula escarlate. Depois, sobreveio uma forte oftalmia que
me alastrou as córneas de tarjas sanguíneas. Há poucas horas ouvi ler no
Comércio do Porto o nome de V. Exa. Senti na alma uma extraordinária vibração
de esperança. Poderá V. Exa. salvar-me? Se eu pudesse, se uma quase paralisia
me não tivesse acorrentado a uma cadeira, iria procurá-lo. Não posso. Mas
poderá V. Exa. dizer-me o que devo esperar d’esta irrupção sanguínea nuns
olhos em que não havia até há pouco uma gota de sangue? Digne-se V. Exa.
perdoar à infelicidade estas perguntas feitas tão sem cerimónia por um homem
que não conhece.
Camilo Castelo Branco
No dia 1 de Junho recebe na sua casa de S, Miguel de Seide aquele clínico que perante o seu estado, sentindo-se impotente para o curar recomenda-lhe, caridosamente descanso e umas termas e retira-se levando por companhia até à porta a esposa do escritor, Ana Plácido, quando é ouvido, no cimo da escadaria que dava para o quinteiro, o tiro que na têmpora direita liquidou de vez a vida de quem havia sido um dos maiores cultores da língua portuguesa.
O soneto de Camilo que se reproduz, célebre pela dor que encerra é dedicado a um amigo seu - o único que ficou dos tais cento e dez - e é, pela crueza que encerra um libelo acusatório contra os amigos que desaparecem - que vamos nós lá fazer? Se ele está cego, não nos pode ver!
Dá que pensar o que aconteceu com Camilo Castelo Branco e o soneto é a prova maior que ele quis deixar para a posteridade, tendo-se a certeza - posso dizer - que se não fora o seu suicídio, mesmo cego, Camilo Castelo Branco ter-se-ia servido de Ana Plácido para nos deixar mais um romance sobre o tema da amizade fátua que dura - como ele sentiu - mas só enquanto a fama existe.
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