Duas
vezes nos comícios populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha
íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu
representante indivíduo que lhe não pertença; que por larga experiência não
tenha conhecido as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças;
que não tenha com os que o elegeram comunidade de interesses, interesses que
variam, que se modificam, e até se contradizem, de província para província, de
distrito para distrito, e às vezes de concelho para concelho. Esta doutrina,
posto que tenha vantagem no presente, reputo-a sobretudo importante pelo seu
alcance, pelos seus resultados em relação ao futuro.(...)
Durante meses, no decurso de dois anos (...)
Pude então observar amplamente quantas misérias, quanto abandono, quantos
vexames pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos
rurais, (...) que constituem a grande maioria do país.(...)
E isto que vi perspicuamente, apesar de uma
observação transitória, vêem-no todos os dias, palpam-no, e, o que mais é,
padecem-no centenares de homens honestos e inteligentes que vivem obscuramente
por essas vilas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, eles são vítimas
da nossa absurda organização; disso a que por antífrase chamamos administração
e governo. É entre tais homens que os círculos deveriam escolher os seus
representantes.(...)
Os partidos, sejam quais forem as suas
opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes
dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder,
concentra-as num ponto, simplifica-as, e, obtido o poder, a centralização é o
grande meio de o conservarem.(...) (1)
Estas palavras são antigas. Reinava D. Pedro V.
Pertencem a um homem lúcido e inteligente,
daqueles que não fizeram carreira política activa ao longo da vida, porque os
profissionais da política do seu tempo sobrepuseram o interesse dos seus
partidos à causa nacional por que ele se bateu com denodo, ao erguer afoitamente
contra o conservadorismo reinante, a bandeira da descentralização que ainda
hoje está por fazer e não se sabe quando se fará.
Estamos a falar de Alexandre Herculano.
Com a dissolução da Câmara dos Deputados em
26 de Março de 1858, tinham ocorrido as eleições de 2 de Maio, que já
então elegeram 162 deputados.
As palavras do grande homem das letras
nacionais resumem maravilhosamente o seu apego ao municipalismo pelo qual se
bateu em defesa do povo da avidez do poder centralizado. Esta defesa acérrima
que levou ao longo da vida, fez que ele, de igual modo tenha condenado o
materialismo do Setembrismo, de Passos Manuel (1836-1842) através de “A Voz do
Profeta”, o Cabralismo ditatorial de Costa Cabral (1842-1846) que o fez retirar
pela primeira vez da política activa entre os anos de 1841 e 1846 e a
Regeneração, de Saldanha (1851-1865), embora reconhecesse que o Marechal era o
político e militar português com mais carisma, tendo colaborado com ele naquele
movimento político.
Mas, mesmo
assim, na peugada dos anteriores – que não eram estruturalmente Partidos
políticos, mas antes, agremiações de interesses onde não havia ideologias
consistentes – Herculano não deixou de meter os três no mesmo saco, pelo facto
de todos eles representarem a negação dos princípios liberais, já que todos
defendiam a ideia do centralismo contra a sua ideia da vida local ser, como
devia, uma realidade com repercussão no governo e constituir no seu seio uma
voz com a autoridade de quem sabia, melhor que ninguém, os problemas do País.
Arauto da defesa da gente simples contra o
poder de qualquer tirania, Herculano, abjurava a tirania do rei em desfavor dos
povo, bem como a da classe privilegiada contra a arraia miúda, da grande cidade
contra o direito da província, de uma facção social – fosse qual fosse – contra
o resto do País e, finalmente, não podia conceber que um oligarquia instalada
no poder se impusesse à maioria, neste caso, ao povo humilde, trabalhador e
sofredor.
Com os seus olhos de águia este homem
lúcido, nascido numa família da pequena burguesia citadina que não teve meios
de o mandar estudar em Coimbra, via mais longe, ao chamar a atenção para a
necessidade imperiosa de se estender a vida política à vida das localidades,
pois, segundo ele, era só desse modo, que o governo central poderia representar
o pensamento do País, defendendo o que ele chamou a eleição de campanário,
ou seja, aquela que escolhia o representante local no meio onde o mesmo vivia,
pelo facto deles conhecerem os problemas do País real.
Esta sua visão da realidade do País já vinha
de trás.
Em 1851, na Regeneração, quando Saldanha
chamou para o governo Rodrigo da Fonseca Magalhães, de imediato, passa para a
oposição, no pressuposto, que muito embora este vulto importante fosse um
político de convicções – como veio a acontecer, não soube imprimir no Acto
Adicional à Carta Constitucional, em 5 de Julho de 1852 - e nos cinco anos em que se demorou no governo,
o cunho democrático como Herculano sonhava para bem do País e do povo.
O municipalismo por que pugnava e cujo
desiderato político era o estabelecimento de uma classe média que se
interpusesse entre os aristocratas e o povo e deste emanada, veio a falhar
rotundamente, um facto que viria a tornar bem claro o seu pensamento em 1853,
quando se rebelou contra Fontes Pereira de Melo e Rodrigo da Fonseca, nas
páginas de “O Portuguez”, impondo a sua crença, que era um divisa de um
profundo recorte social: que o País seja governado pelo País, desejando
que a vida política fosse levada às mais recônditas parcelas da Nação.
Vem tudo isto a propósito para concluir que
o País tem andado a perder tempo.
Começou, com este homem de eleição em 1851 e
nas eleições de 2 de Maio de 1858, por perder, definitivamente para a vida política – embora tenha sido
eleito por Sintra – um homem da estirpe do grande escritor, que recusou
trabalhar com políticas centralistas, levando-o no ano de 1867 a retirar-se
para a sua quinta de Vale de Lobos, nas cercanias de Santarém, afastando-se de
vez da cena política, tendo lavrado do seguinte modo a sua recusa em pertencer
ao governo:
Fortes
tendências para a eleição da localidade se manifestam já por muitas partes, e
os governos e as parcialidades vêem-se constrangidos a transigir com esse
instinto salvador. Se não me é lícito gloriar-me de ter contribuído para ele se
desenvolver, ser-me-á lícito, ao menos, aplaudi-lo. É o primeiro passo no
caminho do verdadeiro progresso social: cumpre não recuar.
Mas,
pensando assim, como poderia eu, sem desmentir a minha consciência e as minhas
palavras; sem trair a verdade, sem vos trair a vós próprios, aceitar em
silêncio o vosso mandato? É honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos,
mas é mais honroso viver e morrer honrado.
Não haverá
no meio de vós um proprietário, um lavrador, um advogado, um comerciante,
qualquer indivíduo, que, ligado convosco por interesses e padecimentos comuns,
tenha pensado na solução das questões sociais, administrativas e económicas que
vos importam; um homem de cuja probidade e bom juízo o trato de muitos anos vos
tenha certificado? Há, sem dúvida. Porque, pois, não haveis de escolhê-lo para
vosso mandatário? (2)
Neste
tempo, as palavras de Herculano deviam ser um
sino a tocar a rebate nas consciência da Nação, porque ou entendemos de uma vez
para sempre que esta só será realizável nos seus planos sociais e económicos,
quando os homens do Parlamento - como aconteceu nas últimas eleições de 4 de Outubro de 2015, mais uma vez - não forem os homens de mão dos Partidos, mas os
representantes do povo autêntico que mora nas lonjuras das grandes cidades e,
muito dele, se esconde nas brenhas das serras do Portugal profundo, que aspira
a mais justiça social.
Pensamos, que do mesmo modo – como a Regeneração
perdeu Herculano, muito embora, e valha a verdade, foi com este
movimento político que Portugal começou a entrar na modernidade, ao abandonar
os Cabrais situados na ala direita do Liberalismo - nos tempos mais recentes, Portugal tem perdido, homens capazes que se têm
recusado a pactuar com discussões estéreis centradas em Regionalismos, quando,
afinal, Portugal no seu todo, é uma pequena Região, à escala mundial, e melhor
seria levar por diante a ideia do municipalismo descentralizado do poder
central, embora a ele sujeito por força constitucional.
Chamando ainda, Herculano, diremos como ele deixou dito:
Deve haver um dia em que a sociedade, como
os indivíduos, chegue à maioridade. (3)
(1) - Texto de A. Herculano, escrito na Ajuda e datado de 22 de Maio de 1858 e
dirigido aos eleitores de Sintra, que o elegeram para o Parlamento no acto
eleitoral de 2 de Maio do mesmo ano.
(2) - Idem, idem.
(3) - Idem, idem
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