CLANDESTINIDADE
Horas nocturnas de libertação.
Todos os carcereiros na prisão
Do sono.
Dono
Dos sentimentos,
Do instinto
E da razão,
Sonho,
Penso
Imagino.
Faço o pino
Deitado.
E às vezes é-me dado
Neste desatino,
Por invisíveis mãos
A que nem sequer posso
agradecer,
Um poema obscuro
Que de manhã, à luz do sol,
procuro
Claramente agradecer.
in, "Diário XIV"
Este poema de Miguel Torga traz a data de 15 de Dezembro de 1984 e na véspera, relata o Poeta esta confissão breve que a luz do seu brilhante pensamento encheu de claridade humana: Sim, fui infeliz porque tive a sina de ser autêntico.
Como eu o vejo retratado neste poema, parecendo até, pela trama que o envolve que ele foi escrito mentalmente na noite que seguiu ao daquela confissão, porque aquelas horas nocturnas de libertação - como ele começa - representam os momentos que acontece com todos nós, quando o sono não vem e como aconteceu com ele, lembramos assuntos que deram má conta da placidez do dia que imaginamos ter e damos connosco a fazer o pino deitados, tal como no-lo relata Miguel Toga.
Diz ele, explicitamente, que naquela noite - neste desatino - escreveu um poema - este - em que invisíveis mãos traçaram as letras - a que nem sequer posso agradecer - mas é à luz do dia, quando a mente acordada para a escrita feita com ela falsamente a dormir - não tendo agradecido - às tais invisíveis mãos que são as mãos de um poder que nunca dorme, é para elas que o Poeta se volta na procura de lhes agradecer.
Como se sabe, Miguel Torga que foi um deísta voltariano, ou seja, alguém que chegava a Deus pela razão e por isso sentiu que aquele poema escrito pelas tais invisíveis mãos havia sido o produto da sua clandestinidade relativamente à aceitação da crença que recebera na sua infância transmontana.
Por isso, lhe deu aquele nome.
Por isso, lhe deu aquele nome.
De homens como ele foi, infeliz por ter tido a sina de ser autêntico é que o mundo de hoje está precisado. De clandestinos com ele, que têm a sabedoria de reconhecer que dentro do arcaboiço humano da sua existência existem invisíveis mãos, às quais cumpre agradecer à luz do sol, porque esta luz que é um poema da vida acontece todos os dias e é escrito pelas tais invisíveis mãos.
Por isso, só por este facto de o reconhecer, Miguel Torga merece que leiamos este poema quase de mãos postas, agradecendo a Deus aquela noite mal dormida do Poeta que teve o condão de nos deixar a CLANDESTINIDADE de que encheu grande parte da sua vida íntima, no entanto, aqui e ali descoberta nos traços da sua poesia em que, embora difuso, o seu pensamento autêntico aparece nítido.
Basta, para tanto, penetrá-lo por dentro das suas palavras, onde todas têm sentido com muitas delas a roçar o misticismo que lhe encheu o berço da infância em S. Martinho de Anta.
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