Com este título, Anatole France escreveu um bem elaborado
conto, fazendo-nos relembrar de Pôncio Pilatos a personagem central do
julgamento de Jesus, como aliás, é reconhecido pelo senso comum.
Corria o mês de Abril do ano 30. Os sinedristas haviam
decretado a morte do Messias. Mas existia um problema sério: não podiam, por
eles mesmos condenar alguém à pena capital. A última palavra cabia a Roma. Eis
por que Pilatos – o procurador do Império - entrou na história, autorizando a condenação por razões religiosas, mas
mascarada com as cores da baixa política. Pilatos, no entanto, tinha o sentimento que uma das suas funções
era fazer respeitar a lei.
Para além de tudo o mais nutria por aqueles chefes do
judaísmo um sentimento de antipatia e de confrontação, e via no caso de Jesus,
uma óptima ocasião para os contradizer, empunhando o valor da lei. Tinha duas
razões para absolver o acusado e aplicar
um golpe legalista nos chefes do povo, que no fundo não conseguia suportar. Os
judeus praticavam a circuncisão, que os romanos equiparavam à castração e
consideravam uma coisa horrorosa; depois, tinham os seus rituais, que o Pilatos
não entendia nem podia entender: a inactividade aos sábados, a distinção
minuciosa entre alimentos puros e impuros, o que lhe dava trunfos para lhes dar
uma lição. O Messias não era, de facto, um subversivo, a sua pregação podia até
desarmar as mensagens de violência que sempre estavam presentes no meio dessa
inquieta gente da Palestina.
Pilatos, astucioso,
apostou em três cartas, antes de perder a partida.
Primeiro, enviou o prisioneiro a Herodes Antipas, que era o
rei de um Estado fantoche: a Galiléia, pensando em matar dois coelhos com uma
só cajadada. Com esse gesto, reaproximava-se do Tetrarca, com quem estava de
poucas falas, mas temendo-o por se constar que ele era considerado um espião de
Roma. Além disso, como pessoa prática e experiente, estava convencido de que
seria fácil acabar com o caso de Jesus. Alcançou o primeiro objectivo,
tornando-se bom amigo do tirano, mas fracassou clamorosamente quanto ao
segundo. Herodes mandou Jesus de volta.
Pilatos, finalmente, apressou o seu tombo com o movimento
seguinte: a promessa de libertar um prisioneiro à escolha do povo, entre Jesus
e Barrabás. A previsão de Pilatos de que Jesus seria o escolhido demonstra que
ele tinha um conhecimento bastante falho não só da nação que ele governava,
como também dos guias espirituais do povo.
Os acusadores foram para o golpe fatal: "Se soltas
Jesus – gritaram – não és amigo de
César. Quem quer que se faça rei opõe-se a César. Diante desse grito, o
procurado, homem de carne e osso, magistrado romano despido de qualquer
preocupação religiosa e cioso apenas da sua posição em Roma e da sua carreira
política, não podia mais permanecer titubeante. Os acusadores de Jesus
aumentaram a aposta: "Crucifica-o, crucifica-o".
E assim aconteceu.
Sabe-se que em 36,
a mando de Tibério, chega a Antioquia, Vitélio o legado
de Tibério. Sem que esteja bem esclarecido o facto, manda Pôncio Pilatos de
volta para Roma, onde se encontra em 37.
É dele que se ocupa, como já se disse Anatole France , de
cujo conto nos servimos para explanar a cena vivida em Roma, por Lamia, um
antigo estudante de filosofia na Escola de Atenas.
Tinha sessenta e dois anos, quando para curar uma doença foi
tomar as águas de Baies. Esta praia, do
agrado dos anciãos, era então frequentada pelos romanos ricos. Havia uma semana
que Lamia vivia só, quando, um dia, após o jantar subiu as colinas donde se via
muito ao fundo do horizonte o Vesúvio.
Tirou da sua toga um rolo e começou a ler quando viu parar uma liteira.
Viu, ocasionalmente, estendido nas almofadas, um velho
corpulento que de testa apoiada na mão, fitava em volta um olhar orgulhoso e
sombrio. Julgou conhecê-lo. Hesitou, mas depois, alegre, lançou-se para a
liteira:
- Pôncio Pilatos! - exclamou ele. – Que sorte a minha,
voltar a ver-te.
O velho, fixou com um olhar atento o homem que o
cumprimentava tão efusivamente e que voltou, apresentando-se, de imediato:
- Pôncio, já não
reconheces o teu Élio Lamia.
Ouvindo este nome, o velho desceu da liteira com toda a
pressa e abraçou o antigo amigo.
- Claro que tenho o maior prazer em voltar a ver-te.
Recordas-me os tempos antigos, quando eu era procurador da Judeia, na província
da Síria.
- Não me esqueço que intercedeste por mim junto de Herodes
Antipas e de que puseste generosamente a tua bolsa à minha disposição.
- Não falemos disso, uma vez que mal regressaste a Roma, me
remeteste por um dos teus escravos libertos o dinheiro suficiente para me
reembolsar com juros.
- Pôncio, fala-me da
tua família, da tua fortuna, da tua saúde.
- Retirado na Sicília, onde tenho propriedades, cultivo e
vendo o trigo que produzo.
Amargurado, lembrando-se de ter sido demitido por Tibério, o
velho procurador da Judeia declarou ter pedido justiça a Caio.
- Caio, disse, conservava nessa altura junto de si, na
Cidade, o judeu Agripa, seu companheiro e amigo de infância, a quem queria mais
do que aos próprios olhos. Ora, Agripa protegia Vitélio porque este era inimigo
de Herodes Antipas que ele perseguia com todo o seu ódio. O imperador apoiou a
maneira de sentir do seu amigo asiático e recusou-se até a receber-me.
- Pôncio - retorquiu Lamia - estou convencido de que agiste
segundo a rectidão do teu carácter e apenas no interesse de Roma. Mas não
terias tu obedecido demasiado à impetuosa coragem que sempre te arrebatou?
Sabes bem que, na Judeia, muitas vezes te aconselhei brandura e clemência.
E lamia, continuou:
- Os Judeus, acredita, são muito agarrados aos seus antigos
usos. Suspeitavam, sem razão, concordo, de que pretendias abolir a sua fé e
modificares os seus costumes. Desculpa que te diga, Pôncio, mas nem sempre
agiste de forma a dissipar-lhes os receios.
Com os rins arqueados e a cabeça deitada para trás, como se
fosse arrastada pelo peso dos seus compridos cabelos ruivos, Pôncio Pilatos
ficou surpreso, quando neste ponto da conversa, Lamia lhe falou de um pequeno
grupo de homens e de mulheres que seguiam um jovem taumaturgo galileu chamado
Jesus, natural de Nazaré, e que foi crucificado.
- Pôncio, lembras-te desse homem?
- Pôncio Pilatos franziu os sobrolhos e levou a mão à testa,
como quem procura recordar-se.
Depois de alguns momentos de silêncio, murmurou:
- Jesus! Jesus de Nazaré? Não me recordo.
É sempre assim.
Os remorsos não deixam dormir sossegados os carrascos.
É um labéu que os persegue e do qual para sossegar a
consciência gostam de se esquecer.
Pôncio Pilatos, sabia que Jesus não era culpado mas cedeu ao
povo para agradar ao povo, soltando um criminoso e dando a morte a um inocente.
É por isso, que Anatole France, no seu célebre conto,
termina magistralmente com as palavras do pseudo esquecimento do algoz:
- Jesus! Jesus de Nazaré? Não me recordo.
E, no entanto, na alma do velho Procurador da Judeia, estava
cravado – e bem fundo – um espinho igual a um daqueles que a sua cobardia fez
pregar na cabeça de Jesus.
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