Luigi Amicone, para situar a sobrenaturalidade que
está intrínseca na lenda do pastor Yankele, começa o seu relato por se referir
aos velhos pastores de Belém, do tempo em que nasceu Jesus, e que, embora rudes,
foram as personagens escolhidas em primeiro lugar para dar conta de tão grande
acontecimento.
Faz, por esse motivo da sua personagem, alguém que
vai beber nos tempos dos bíblicos guardadores de rebanhos, situando-o no grupo
daqueles, que segundo o Talmude, permaneciam sempre no deserto noite e dia e
que tinham, exactamente, como território os arrabaldes da cidade que não deu
guarida aos pais sagrados.
Efectivamente, havia nos
arredores – de Belém - uns pastores que vigiavam e guardavam os seus
rebanhos durante as vigílias da noite, narra com precisão o evangelista S.
Lucas.
Era o tempo do
Inverno. Diz o evangelista que o céu estava verdadeiramente cheio de
estrelas. O ar frio e seco estaria
certamente limpo e o silêncio era apenas quebrado pelo tilintar dos
sinos dos animais. Mas a noite bela, de frio acerbo como são as noites desta
estação, como atesta o narrador bíblico é interrompida repentinamente pelo
luzir de um imenso clarão, parecendo um raio no céu sereno.
De repente
aqueles pastores incultos que usavam o assobio para se entenderem nas cristas
dos montes e com ele chamavam os animais
que lhes obedeciam cegamente, são visitados pelo anjo, que lhes diz: eis que
vos anuncio uma boa nova que será alegria para todo o povo (...).
É para eles, que passavam o dia a assobiar aos
rebanhos – mas lembrando-se de Deus -
que o anjo se dirige. É uma deferência da divindade.
São palavras estranhas para quem vivia
solitariamente, fazendo dos seus assobios os únicos sinais que davam de si
mesmos, noites e dias pelas imensidões dos desertos de Belém.
Luigi Amicone, após este intróito, dá-nos conta da
lenda do pastor Yankele, focando um
assobio que ele soltou num dado momento solene, dando dele um breve
retracto, focando que o jovem não quisera estudar, um facto que constituíra uma
grande dor para o pai. De pronto, enviado para o deserto com um rebanho de
ovelhas – como os velhos pastores bíblicos de Belém - não se esqueceu, no entanto, do dia do Kippur
(Dia do perdão na tradição judaica), descendo pressuroso, até ao vilarejo onde
se iria assinalar a efeméride.
A sinagoga brilhava de luz e de divino esplendor. Baal
Shem Tov (1) havia
convocado os judeus para a importante reunião.
Na sinagoga chega o momento solene da oração dos
Sacerdotes. Todo o sussurro se extinguiu, podendo-se ouvir apenas a respiração
do grande Rabino recolhido no seu púlpito. De súbito, um assobio estridente,
quebrou o silêncio solene. Todos, admirados, se viraram para o lado de onde ele
tinha vindo.
O pai de Yankele empalideceu e cambaleou. O seu
filho estava lá, com os dois dedos ainda sobre os lábios. Recobrando ânimo,
abriu caminho por entre as pessoas, pronto para punir o filho com toda a raiva
e a vergonha que sentia. O rapaz fugiu assustado e Baal Shem Tov, do
alto do púlpito, disse:
- Tragam-me
aqui aquele rapaz!.
Um murmúrio de maldizer encheu, de repente, a
sinagoga:
- É o pastor Yankele. O pai não o soube educar,
não soube ensiná-lo a amar a Deus!
Quando o jovem chegou à presença do Mestre,
este interrogou-o:
- Sabes o que fizeste, rapaz?
Com a cabeça inclinada, respondeu humílimo:
- Perdoai-me, grande Rabino. Não me consegui
conter. Eu também queria rezar. Queria exprimir ao Santo Bendito a minha
maravilha pela Sua criação, exactamente como faço quando estou lá em cima, nas
montanhas, pois é de lá que eu vejo, à minha frente, no alto e em toda a minha
volta, a majestade da Sua beleza! Perdoai-me, Mestre. Não acontecerá mais. Não
virei mais à sinagoga. Ficarei nas montanhas para sempre!
Naquele momento, foi como se uma luz iluminasse tudo
em volta. O Rabino pousou docemente a mão sobre a cabeça do rapaz e disse:
- Bendito seja este dia, no qual o Senhor quis
falar a nós, filhos, através deste pequeno pastor. O teu assobio, rapaz, este
gesto de amor que te foi dado exprimir, escancarou as portas do céu e fez
chegar as Suas bênçãos sobre todos nós!
Afinal, o pastor Yankele, amava Deus, quando, – como faziam os velhos pastores de Belém –
erguiam na estridência do seus assobios, hinos a Deus, glorificando-O nas
alturas do Céu, que de noite lhes dava a lição da Sua Omnipotência.
Que nos sirva a nós a lição.
A nós, que muitas vezes botamos lindos discursos
cheios de palavras rendilhadas e, quantas vezes, nada dizem a Deus, ao
contrário do que fazia o pastor Yankele com o seu assobio.
Acontece isto, contra os juízos precipitados de uma
sociedade bem arrumada nos seus preconceitos vazios e que se escandaliza
dos gestos que apenas são anómalos nas mentes de boas maneiras, mas sem
que dentro delas more o verdadeiro amor pelo
sobrenatural que se pode viver de muitas maneiras, até assobiando.
E Deus, que tudo entende, escuta mais aqueles que se
lhe dirigem sem gestos estudados ou de grande pompa, desde que neles vá uma
alma limpa de preconceitos do mundo, do que aqueles, que com frases estudadas e
de grande retórica académica enchem discursos bem feitos mas onde a alma fica à
porta ou até se ausenta.
(1) - Baal Shem Tov,
quer dizer: “O Senhor de Boa Fama”. Trata-se aqui do místico Israel Ben
Eliezer, criador do hassidismo em 1740, isto é, criador do
sistema “hassid” que em hebraico significa “pio”, tendo como génese as duas correntes que desde o princípio
existiam no seio do judaísmo: a de um formalismo ritual da Bíblia e do Talmud e
a do misticismo e ocultismo, que criou a
Cabalá e o Zohar. O formalismo ritual rigorosamente praticado na Europa
Oriental nos séculos XVII e XVIII, pelos modos como era vivido tendia a gerar
uma reacção, o que levou Israel Bem Eliezer à prática do hassidismo,
despertando um maior sentido do religioso, com a oração impregnada de uma
alegria tendente a dar ao homem uma maior proximidade com a divindade.
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