A Secreta Viagem
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois,
parados, de mão dada...
Como podem só dois
governar um navio?
Melhor é desistir e
não fazermos nada!
Sem um gesto sequer,
de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e
de madeira, à proa...
Que figuras de lenda!
Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas
mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de
um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver,
a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? —
Com frutos e pecado,
se justifica,
enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu
quem me fora indicada.
O resto passa,
passa... alheio aos meus sentidos.
Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa,
em madeira esculpidos!
David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"
Na imagem que o Poeta construiu vemos um barco vazio - como a gravura documenta - mas dentro dele parados, de mão dada estão dois seres que se amam, aparentemente, senhores de um barco abandonado.
Interrogadores, como todos devemos ser, embora assaltados pela dúvida, melhor é desistir e não fazermos nada, sentindo-se reais e ao mesmo tempo figuras de lenda, porque o humano que os enforma não os deixa sossegar e a miragem, ainda que longínqua leva-os a um desejo de abalar, mesmo sem saberem o caminho.
É por isso que perguntam.
Aonde iremos ter?
E ao encontrar a resposta descobrem algo importante que os não inibe de poderem partir ao encontro da aventura da vida, ainda que, com frutos e pecado, por terem concluindo, que apesar disso - é por isso mesmo - que se justifica e até vai carregada de flores a secreta viagem que num dado momento todos faremos, partindo, embora, o nosso barco duma qualquer praia de calhaus rolados - que são os nossos pecados - mas, porque, por entre as nossas mãos, o verde mar se escoa, é mister largar ao encontro de uma outra praia de areias douradas - que são os nossos frutos - e nos hão-de dar desfeitos num rochedo ou salvos numa enseada, a eternidade, ainda que estejamos esculpidos na frágil madeira que são os nossos corpos mortais.
Mas é, por sabermos isto, que o importante é partir, sabendo que o barco da vida só aparentemente é que está vazio, porque dentro dele é que navegam as almas e estas não ocupam espaço, mas são elas, com frutos e pecado que impelem os braços que agitam nas águas da vida - revoltas ou não - os remos que temos o dever de manobrar, porque se o não fazemos, o nosso barco nunca sairá da praia inóspita de calhaus rolados e é preciso, porque o verde mar se escoa por entre os nossos dedos, encontrar a praia sonhada, sobretudo, quando - como diz o Poeta - agora sei que és tu quem me fora indicada.
Eis, porque, a secreta viagem, que busca a eternidade há-de continuar a ser feita com as nossas frágeis carcaças - em madeira esculpida - porque Deus assim o quis, mas dando-nos a graça, de apesar dessa fraqueza, sermos capazes de partir de qualquer praia até àquela que nos há-de conduzir à eternidade, porque se não fosse assim de nada nos valia ter vivido.
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