Estátua de António Aleixo em Loulé
António Aleixo nasceu em
18 de Fevereiro de 1899 em Vila Real de Santo António e faleceu em 16 de
Novembro de 1949, em Loulé.
Homem simples e pobre de
haveres materiais, foi um homem rico de sabedoria humana e um caso de singular
intuição poética. Nas suas quadras existem conceitos raros de uma filosofia
viva que nasce sem arrebiques de linguagem, mas é, na sua autenticidade, um
espelho do homem verdadeiramente assumido perante a sua vivência humana que tem de respeitar,
vivendo-a com as limitações que a vida lhe impôs, mas cumprindo o dever da denúncia social, um
dever que lhe cabia, como cabe a cada um de nós no sentido de reformar o que
precisa ser melhorado, no sentido de tornar mais humano o mundo onde habitamos.
Foi o que ele fez.
O Poeta foi cauteleiro,
guardador de rebanhos, tecelão e cantador popular vagueando pelas feiras que
se faziam regularmente nos arredores de Loulé. No meio de tudo isto, teve uma
passagem pela imigração em França, onde exerceu o ofício de servente de
pedreiro.
Sendo, literariamente,
um pouco mais que analfabeto, na obra “Este
Livro que vos Deixo” dá-nos de presente e indelevelmente gravadas
composições, como: “Quando começo a
Cantar”, o seu primeiro livro de quadras soltas, “Intencionais” “Auto da Vida e da Morte; “Auto
do Curandeiro” e o “Auto do Ti
Joaquim”
Numa
homenagem ao Poeta e à sua obra, em Loulé foi levantado um monumento defronte
do “Café Calcinha”, um dos locais frequentado pelo Poeta-cauteleiro.
O Estado não ficou
indiferente à arte deste homem de eleição e em sua honra, fez chamar ao antigo
Liceu de Portimão, “Escola Secundária Poera António Aleixo”, tendo concedido o
Estatuto de Utilidade Pública à “Fundação António Aleixo” sediada em Loulé,
vocacionada para conceder bolsas de estudo aos alunos mais carenciados.
No Prefácio ao “Auto do Ti Joaqim”, da autoria de
Fernando Lajinha retiramos as seguintes palavras:
Vi-o
pela primeira vez numa manhã – penso que em 1929 – sentado num banco público
desta vila, dedilhando uma guitarra enquanto cantava de improviso. Rodeavam-no
meia dúzia de curiosos que lhe davam dinheiro de mistura com aplausos. Foi
assim que eu conheci aquele que mais tarde havia de saber guardador de
rebanhos, vendedor de cautelas, cantador de feiras e arraiais e senhor duma
infelicidade a roçar pelo extraordinário.
Foi-me dado ouvir da
boca do Poeta a primeira quadra que deixou adivinhar aos olhos do público, a
revelação do Poeta oportunista, incisivo e que sempre sabia pôr uma amarga
ironia na intensidade do contraste. Vem, talvez a propósito, recordá-lo nesta
curta história e já porque a mesma não é sobremaneira conhecida:
Tinha o Poeta ido
assistir a uns Jogos Florais realizados no Ginásio Clube Farense (...) É claro
que dada a sua escassez de recursos – recursos que lhe permitiriam uma
indumentária compatível com as
exigências do meio – foi o Poeta obrigado a solicitar o empréstimo integral da
mesma. Na noite do certame, conhecida que foi a humildade da sua cultura e a facilidade
intempestiva no improviso, não houve quem regateasse aplausos e homenagens, nem
quem lhe não tributasse manifestações de carinho. No dia seguinte, de regresso
à sua insignificância costumada, já ele comentava de improviso:
Ontem, rei. Hoje sem trono.
Cá vou outra vez na rua!
Entreguei a roupa ao dono
e a miséria continua.
Conta
o prefaciador, que naquela noite onde António Aleixo foi rei teve a
felicidade de travar conhecimento com o Dr. Joaquim Peixoto Magalhães, a quem
ficou a dever a publicação do seu primeiro livro “Quando Começo a Cantar” e que mais tarde, em 1943, haveria
de prefaciar “Este Livro que vos Deixo” edição do filho do Poeta, Vitalino
Martins Aleixo que a abrir o livro tece palavras de agradecimento pelo trabalho
criterioso na compilação das obras de seu pai, elaborada pelo amigo
providencial que ele conheceu afortunadamente, na noite dos Jogos Florais e que
do Poeta diz o seguinte:
(...)
há nos versos que constituem este livro uma correcção de linguagem e,
sobretudo, uma expressão concisa e original de uma amarga filosofia aprendida
na escola impiedosa da vida, que não deixam de impressionar. (....) António
Aleixo compõe e improvisa nas mais diversas situações e oportunidades. Umas
vezes cantando numa feira ou festa de aldeia, outras, a pedido de amigos que lhe
beliscam a veia (...) Os motivos e temas de inspiração são bastantes variados.
(...) O que caracteriza a poesia de António Aleixo é o tom dorido, irónico, um
pouco puritano de moralista com que aprecia os acontecimentos e as acções dos
homens. E, no fundo, muito embora não seja um revoltado, é a chaga aberta de um
sofrimento íntimo, provocado por certas injustiças, a fonte dos seus
desabafos.(...)
Era
a dor de um homem pobre e sensível, que como assinala o Dr. Joaquim Peixoto
Magalhães, tem mulher e filhos a sustentar com o mísero ganho de meia dúzias
de cautelas por semana e vê todos os dias ir morrendo, sem possibilidade de
assistência cuidada, uma filha tuberculosa.
É
para esta dor que o Poeta, canta do seguinte modo:
Quem nada tem, nada come
e ao pé de quem tem
de comer,
se alguém disser
que tem fome,
comete um crime sem
querer.
António
Aleixo foi um génio.
Atente-se
nesta quadra e veja-se o que de profundo existe nela de uma mágoa sentida.
Foi
este estado de espírito que o acompanhou ao longo da vida e lhe deu estro para a denúncia do que estava mal na
sociedade do seu tempo.
Sem nunca afrontar o próximo com modos
desabridos, o Poeta com o seu bom e natural conselho de homem simples e
interrogador de uma sociedade que não o soube aproveitar, encontrou maneira de
a denunciar, como o faz com este seu conselho filosófico, que só não é
ilustrado, porque não foi ouvido – no seu tempo, como ainda hoje acontece – mas
é um conselho ilustre que deveria fazer pensar os homens mais ilustrados pelo
saber das sebentas académicas:
Há luta por mil
doutrinas.
Se querem que o mundo
ande,
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.
É
isto que falta na nossa sociedade doente.
Andamos
todos repartidos por muitas doutrinas sociais, quando apenas uma delas, desde
que fosse o resultado do estudo e da sabedoria das mil pequeninas,
poderia ser por si só, ser o suficientes
para salvar esta Humanidade desavinda pela conquista de poderes efémeros que se
esvaem na fumaça do tempo.
Mas
prestemos atenção ao Poeta e as suas quadras tão socialmente correctas que nos
deveriam interpelar e ajudar a ser homens melhores e mais conscientes da missão
que nos cabe cumprir no mundo.
Para
não fazeres ofensas
e teres dias felizes,
não digas tudo o que
pensas,
mas pensa tudo o que
dizes.
Porque
o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não
sou
a lama que muitos são.
Eu não tenho vistas
largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas
amargas
lições de filosofia.
Vós que
lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o
povo
qu'rer um mundo novo a
sério.
Que importa perder a
vida
em luta contra a
traição,
se a Razão mesmo
vencida,
não deixa de ser Razão?
P'ra
mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de
verdade.
Sei que pareço um
ladrão...
mas há muitos que eu
conheço
que, não parecendo o que
são,
são aquilo que eu
pareço.
Enquanto o homem pensar
que vale mais que outro
homem,
são como os cães a
ladrar,
não deixam comer, nem comem.
Eu já não sei o que faça
p'ra juntar algum
dinheiro;
se se vendesse a
desgraça
já hoje eu era
banqueiro.
O mundo só pode ser
melhor do que até aqui,
- quando consigas fazer
mais p'los outros que
por ti!
Eu não sei porque
razão
certos homens, a meu
ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem
parecer.
Entre leigos ou
letrados,
fala só de vez em
quando,
que nós, às vezes,
calados,
dizemos mais que
falando.
Quando te vês mal, e
dizes
que preferias a morte,
pensa que outros menos
felizes
invejam a tua
sorte.
Mentiu com
habilidade,
fez quantas mentiras
quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele
diz.
Gosto
do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser
franco
que ganhar por não ser
Não sou esperto nem
bruto,
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o
produto
do meio em que fui
criado.
Queremos ver sempre à
distância
o que não está
descoberto,
Sem ligarmos importância
ao que está à vista e
perto.
Porque será que nós
temos
na frente, aos montes,
aos molhos,
tantas coisas que não
vemos
nem mesmo perto dos
olhos?
Vemos gente bem vestida,
no aspecto
desassombrada;
são tudo ilusões da
vida,
tudo é miséria dourada.
Quantas sedas aí
vão,
quantos colarinhos,
são pedacinhos de pão
roubados aos
pobrezinhos!
Julgam-me mui sabedor;
e é tão grande o meu
saber
que desconheço o valor
das quadras que sei
fazer!
Quando não tenhas à
mão
outro livro mais
distinto,
lê estes versos que são
filhos da mágoa que
sinto.
Nos versos que se
improvisem,
Os poetas sabem ler,
Para além do que eles
dizem,
Tudo o que querem dizer
São parvos, não rias
deles,
deixa-os ser, que não
são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que
nós
A arte
em nós se revel
Sempre de forma
diferente:
Cai no papel ou na tela
Conforme o artista sente
Quem prende a água que
corre
É por si próprio
enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro
lado.
Embora os meus olhos
sejam
Os mais pequenos do
mundo,
O que importa é que eles
vejam
O que os Homens são no
fundo.
Julgando um dever
cumprir,
Sem descer no meu
critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a
sério!
Que importa perder a
vida
na luta contra a traição
se a razão mesmo vencida
não deixa de ser razão
Os
novos que se envaidecem
P’lo muito que querem
ser
São frutos bons que
apodrecem
Mal começam a nascer.
Obrigado, Poeta!
Lembra-se com toda a
gratidão a vida honrada e grandiosa de um homem que soube erguer-se do nada
e ficar como uma memória exemplar nesta sociedade que nem sempre tem acarinhado
os seus filhos mais simples e que na modéstia da sua condição social têm
deixado marcas que o tempo não pode, nem deve apagar.
Obrigado, Poeta!
Sem comentários:
Enviar um comentário