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domingo, 22 de setembro de 2013

António Aleixo (1899-1949)




Estátua de António Aleixo em Loulé

 
António Aleixo nasceu em 18 de Fevereiro de 1899 em Vila Real de Santo António e faleceu em 16 de Novembro de 1949,  em Loulé.
Homem simples e pobre de haveres materiais, foi um homem rico de sabedoria humana e um caso de singular intuição poética. Nas suas quadras existem conceitos raros de uma filosofia viva que nasce sem arrebiques de linguagem, mas é, na sua autenticidade, um espelho do homem verdadeiramente assumido perante a  sua vivência humana que tem de respeitar, vivendo-a com as limitações que a vida lhe impôs, mas  cumprindo o dever da denúncia social, um dever que lhe cabia, como cabe a cada um de nós no sentido de reformar o que precisa ser melhorado, no sentido de tornar mais humano o mundo onde habitamos.
Foi o que ele fez.
O Poeta foi cauteleiro, guardador de rebanhos, tecelão e cantador popular vagueando pelas feiras que se faziam regularmente nos arredores de Loulé. No meio de tudo isto, teve uma passagem pela imigração em França, onde exerceu o ofício de servente de pedreiro.
Sendo, literariamente, um pouco mais que analfabeto, na obra “Este Livro que vos Deixo” dá-nos de presente e indelevelmente gravadas composições, como: “Quando começo a Cantar”, o seu primeiro livro de quadras soltas, “Intencionais” “Auto da Vida e da Morte; “Auto do Curandeiro” e o “Auto do Ti Joaquim
Numa homenagem ao Poeta e à sua obra, em Loulé foi levantado um monumento defronte do “Café Calcinha”, um dos locais frequentado pelo Poeta-cauteleiro.
O Estado não ficou indiferente à arte deste homem de eleição e em sua honra, fez chamar ao antigo Liceu de Portimão, “Escola Secundária Poera António Aleixo”, tendo concedido o Estatuto de Utilidade Pública à “Fundação António Aleixo” sediada em Loulé, vocacionada para conceder bolsas de estudo aos alunos mais carenciados.
No Prefácio ao “Auto do Ti Joaqim”, da autoria de Fernando Lajinha retiramos as seguintes palavras:
Vi-o pela primeira vez numa manhã – penso que em 1929 – sentado num banco público desta vila, dedilhando uma guitarra enquanto cantava de improviso. Rodeavam-no meia dúzia de curiosos que lhe davam dinheiro de mistura com aplausos. Foi assim que eu conheci aquele que mais tarde havia de saber guardador de rebanhos, vendedor de cautelas, cantador de feiras e arraiais e senhor duma infelicidade a roçar pelo extraordinário.
Foi-me dado ouvir da boca do Poeta a primeira quadra que deixou adivinhar aos olhos do público, a revelação do Poeta oportunista, incisivo e que sempre sabia pôr uma amarga ironia na intensidade do contraste. Vem, talvez a propósito, recordá-lo nesta curta história e já porque a mesma não é sobremaneira conhecida:
Tinha o Poeta ido assistir a uns Jogos Florais realizados no Ginásio Clube Farense (...) É claro que dada a sua escassez de recursos – recursos que lhe permitiriam uma indumentária compatível  com as exigências do meio – foi o Poeta obrigado a solicitar o empréstimo integral da mesma. Na noite do certame, conhecida que foi a humildade da sua cultura e a facilidade intempestiva no improviso, não houve quem regateasse aplausos e homenagens, nem quem lhe não tributasse manifestações de carinho. No dia seguinte, de regresso à sua insignificância costumada, já ele comentava de improviso:
 
 
Ontem, rei. Hoje sem trono.
Cá vou outra vez na rua!
Entreguei a roupa ao dono
e a miséria continua.
         
   Conta o prefaciador, que naquela noite onde António Aleixo foi rei teve a felicidade de travar conhecimento com o Dr. Joaquim Peixoto Magalhães, a quem ficou a dever a publicação do seu primeiro livro “Quando Começo a Cantar” e que mais tarde, em 1943, haveria de prefaciar  Este Livro que vos Deixo” edição do filho do Poeta, Vitalino Martins Aleixo que a abrir o livro tece palavras de agradecimento pelo trabalho criterioso na compilação das obras de seu pai, elaborada pelo amigo providencial que ele conheceu afortunadamente, na noite dos Jogos Florais e que do Poeta diz o seguinte:
(...) há nos versos que constituem este livro uma correcção de linguagem e, sobretudo, uma expressão concisa e original de uma amarga filosofia aprendida na escola impiedosa da vida, que não deixam de impressionar. (....) António Aleixo compõe e improvisa nas mais diversas situações e oportunidades. Umas vezes cantando numa feira ou festa de aldeia, outras, a pedido de amigos que lhe beliscam a veia (...) Os motivos e temas de inspiração são bastantes variados. (...) O que caracteriza a poesia de António Aleixo é o tom dorido, irónico, um pouco puritano de moralista com que aprecia os acontecimentos e as acções dos homens. E, no fundo, muito embora não seja um revoltado, é a chaga aberta de um sofrimento íntimo, provocado por certas injustiças, a fonte dos seus desabafos.(...)
Era a dor de um homem pobre e sensível, que como assinala o Dr. Joaquim Peixoto Magalhães, tem mulher e filhos a sustentar com o mísero ganho de meia dúzias de cautelas por semana e vê todos os dias ir morrendo, sem possibilidade de assistência cuidada, uma filha tuberculosa.
É para esta dor que o Poeta, canta do seguinte modo:
 
Quem nada tem, nada come
e ao pé de quem tem de comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime sem querer.
 
António Aleixo foi um génio.
Atente-se nesta quadra e veja-se o que de profundo existe nela de uma mágoa sentida.
Foi este estado de espírito que o acompanhou ao longo da vida e lhe deu  estro para a denúncia do que estava mal na sociedade do seu tempo.
 Sem nunca afrontar o próximo com modos desabridos, o Poeta com o seu bom e natural conselho de homem simples e interrogador de uma sociedade que não o soube aproveitar, encontrou maneira de a denunciar, como o faz com este seu conselho filosófico, que só não é ilustrado, porque não foi ouvido – no seu tempo, como ainda hoje acontece – mas é um conselho ilustre que deveria fazer pensar os homens mais ilustrados pelo saber das sebentas académicas:
 
Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande,
Façam das mil pequeninas
Uma só doutrina grande.

É isto que falta na nossa sociedade doente.
Andamos todos repartidos por muitas doutrinas sociais, quando apenas uma delas, desde que fosse o resultado do estudo e da sabedoria das mil pequeninas, poderia ser por si só, ser  o suficientes para salvar esta Humanidade desavinda pela conquista de poderes efémeros que se esvaem na fumaça do tempo.
Mas prestemos atenção ao Poeta e as suas quadras tão socialmente correctas que nos deveriam interpelar e ajudar a ser homens melhores e mais conscientes da missão que nos cabe cumprir no mundo.

 
Para não fazeres ofensas  
e teres dias felizes,
não digas tudo o que pensas,
mas pensa tudo o que dizes.
 
Porque o mundo me empurrou,                 
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são.
 
Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
 
Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos, que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.
 
Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?
 
P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.
 
Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.
 
Enquanto o homem pensar
que vale mais que outro homem,
são como os cães a ladrar,
não deixam comer, nem comem.
 
Eu já não sei o que faça
p'ra juntar algum dinheiro;
se se vendesse a desgraça
já hoje eu era banqueiro.
 
O mundo só pode ser  
melhor do que até aqui,
- quando consigas fazer
mais p'los outros que por ti!
 
Eu não sei porque razão  
certos homens, a meu ver,
quanto mais pequenos são
maiores querem parecer. 
 
Entre leigos ou letrados,  
fala só de vez em quando,
que nós, às vezes, calados,
dizemos mais que falando.
 
Quando te vês mal, e dizes  
que preferias a morte,
pensa que outros menos felizes
invejam a tua sorte. 
 
Mentiu com habilidade, 
fez quantas mentiras quis;
agora fala verdade
ninguém crê no que ele diz.
 
Gosto do preto no branco,   
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
que ganhar por não ser
 
Não sou esperto nem bruto,  
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.
 
Queremos ver sempre à distância   
o que não está descoberto,
Sem ligarmos importância
ao que está à vista e perto.

Porque será que nós temos   
na frente, aos montes, aos molhos,
tantas coisas que não vemos
nem mesmo perto dos olhos?

                                  Vemos gente bem vestida,  
no aspecto desassombrada;
são tudo ilusões da vida,
tudo é miséria dourada.
 
Quantas sedas aí vão,   
quantos colarinhos,
são pedacinhos de pão
roubados aos pobrezinhos!
 
Julgam-me mui sabedor;   
e é tão grande o meu saber
que desconheço o valor
das quadras que sei fazer!
 
Quando não tenhas à mão   
outro livro mais distinto,
lê estes versos que são
filhos da mágoa que sinto.
 
Nos versos que se improvisem,
Os poetas sabem ler,
Para além do que eles dizem,
Tudo o que querem dizer
 
São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós
 
A arte em nós se revel
Sempre de forma diferente:
Cai no papel ou na tela
Conforme o artista sente
 
Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado;
O ribeirinho não morre,
Vai correr por outro lado.
 
Embora os meus olhos sejam
Os mais pequenos do mundo,
O que importa é que eles vejam
O que os Homens são no fundo.
 
Julgando um dever cumprir,
Sem descer no meu critério,
- Digo verdades a rir
Aos que me mentem a sério!
 
Que importa perder a vida
na luta contra a traição
se a razão mesmo vencida
não deixa de ser razão
 
Os novos que se envaidecem
P’lo muito que querem ser
São frutos bons que apodrecem
Mal começam a nascer.
 
 Obrigado, Poeta!
 
Lembra-se com toda a gratidão a vida honrada e grandiosa de um homem que soube erguer-se do nada e ficar como uma memória exemplar nesta sociedade que nem sempre tem acarinhado os seus filhos mais simples e que na modéstia da sua condição social têm deixado marcas que o tempo não pode, nem deve apagar.
Obrigado, Poeta!

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