COM A FORTUNA NÃO SE PERDE
O SER DE BESTA
Na carreira veloz, a deusa cega
Lança às vezes a mão
a um feio mono
E o sobe, num
instante, a um coche, a um trono,
Onde a Virtude com
trabalho chega.
Porém se, louca, num
jumento pega,
Por mais que o erga
não lhe dá abono:
Bem se vê que foi
sonho de seu sono,
Quando a vara ou
bastão ela lhe entrega.
Pouco importa adornar
asno casmurro
Com jaezes reais,
mantas de festa,
Se a conhecer se dá
no rouco zurro.
Quem, no berço, por
vil se manifesta,
Quem nele baixo foi,
quem nasce burro,
Co'a Fortuna não
perde o ser de besta.
Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'
O Poeta Bingre (1) analisou com astúcia e sentido social o seu tempo, do qual este soneto ácido no conteúdo e perfeito na forma é, com toda a acuidade um exame do homem e da sua acção descuidada ou, como muitas vezes acontece, propositadamente assumida, pesem embora, a adquirição de bens materiais.
Voltaire, no "Dicionário Filosófico" quando fala do "carácter" expende o seguinte: A idade amolenta o caráter. Transforma-o em uma árvore que
não dá senão um ou outro fruto abastardado, mas sempre da mesma natureza.
Enodoa-se, cobre-se de musgo, caruncha.
Jamais deixará de ser carvalho ou
pereira, porém. Se fosse possível alterar o caráter, a gente mesmo o plasmaria
a bel prazer, seria senhor da natureza. Podemos lá criar alguma coisa? Não
recebemos tudo? Experimentai animar o indolente de contínua atividade, inspirar
gosto à musica a quem careça de gosto e de ouvido. Não tereis melhor resultado
do que se empreenderdes dar vista a cego de nascença. Nós aperfeiçoamos,
esborcelamos, embuçamos o que nos estereogravou a natureza. Não há, porém,
alterar-lhe a obra.
É assim.
De pouco vale, portanto, como é dito no soneto,
(...) adornar asno casmurro
Com jaezes reais, mantas de festa,
Se a conhecer se dá no rouco zurro, porque, todo aquele que nasce burro jamais deixará de o ser, ainda que a idade o amolente, porque como diz o filósofo, o que pode acontecer é que, se comparamos o homem nascido "burro" a uma árvore, o que acontece é que pode dar frutos, mas um ou outro é abastardado (...) sempre da mesma natureza.
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(1) - Francisco Joaquim Bingre (1763-1856), nasceu em Canelas, (Vila Nova de Gaia). Foi um
poeta arcádico e pré-romântico e sócio da Academia de Belas Letras, que ficou conhecida
como a Nova Arcádia de Lisboa.
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