Saudade, quadro de Almeida Júnior, 1899
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Saudade, na Gramática Portuguesa é um substantivo abstracto
e de tal modo assim é, que só existe na nossa língua.
Constitui, possivelmente, a palavra mais preponderante na
poesia de amor e na música popular do nosso povo, descrevendo toda uma amálgama
dos sentimentos, como os de perda e distância, estando a sua génese
directamente ligada à tradição marítima portuguesa, que ainda hoje não consegue
pensar no mar sem sentir saudade.
É que foi nesse mar que onde ficaram para sempre,
navegadores, pescadores, mulheres, crianças, esposos e filhos, impotentes perante as tragédias,
tendo aprendido ao longo dos séculos a dura lição da humildade perante os
ingentes e revoltos elementos da natureza, sendo esta imprevisibilidade e este
paradoxo do mar os componentes mais directos do grande sentimento da saudade
que mora em Portugal, como não acontece em qualquer outro lugar do mundo.
A palavra tem origem no latim "solitas, solitatis"
(solidão) e é a expressão da forma arcaica de "soedade, soidade e
suidade", entroncando-se na época dos Descobrimentos, definindo a
melancolia da lembrança, quer de coisas, estados de alma ou acções.
Diz o Professor Joaquim de Carvalho (1892-1958) que a
palavra "saudade" é uma das mais difíceis de traduzir em todo o
mundo, porque possui uma significação algo complexa.
Data do século XV, a primeira tentativa de definir esta
palavra que conforme já então se dizia não tinha correspondência noutra língua
qualquer. "Saudade", diz o rei
D. Duarte, é o "sentido do coração que vem da sensualidade e não da
razão" (Leal Conselheiro, cap. XXV).
A saudade é assim algo que é de natureza sentimental antes de ser
consciente ou racional. Em geral podemos traduzir a saudade como um apelo sentimental
de união com algo ausente, distante ou perdido.
Há quem sustente que a saudade se remete, em primeiro
lugar, para aquele ou aquela que fica à
espera de quem partiu, cabendo a este, um outro aspecto de saudade que o povo
liga à nostalgia.
Sem se poder traduzir, há quem a defina a saudade como uma
lembrança especialmente nostálgica de algo vivo ou inanimado que está ausente,
de que o termo matar a saudade, é, quase sempre, fazer que ela desapareça em
face de um encontro com uma realidade que esteve longe, mas deixando sempre
latente a sua presença na alma, porque é
dela um dos atributos sensoriais mais vivos no sentimento do povo português.
Esta asserção ganha todo o sentido quando mergulhamos a
saudade nas ondas do mar que desbravámos no tempo glorioso da gesta portuguesa,
onde se intromete com toda a intenção o heterónimo de Fernando Pessoa, Álvaro
de Campos, ao dizer assim na Ode Marítima:
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Saudade tem merecido de muitos quadrantes da cultura
portuguesa uma atenção muito especial, não só pela carga emocional que possui,
mas também, por ser um tema de eleição que anda preso e não se solta, ou se isso
acontece, volta sempre, como se fosse uma andorinha, que no ano seguinte volta
ao mesmo beiral.
Têm-na vivido e cantado os mais humildes, constituindo-se na
alma do povo como a sua expressão mais pura, porque tem sido ancorado a ela que
ele ao longo dos tempos têm ultrapassado muitas das suas amarguras expressas em
quadras que se cantam, como se as mesma fossem rezadas, como esta:
Esta palavra saudade
E aquele que a inventou
Na primeira vez que a disse
Concerteza que chorou.
Mas o seu influxo nunca deixou de penetrar bem fundo nos
mais letrados que a têm cantado e escrito sobre ela versos e prosas magistrais,
como Eduardo Lourenço, que rendido à sua mística, afirma que é a própria
saudade que se funda dentro do homem, tal como ele afirma na Mitologia da
Saudade:
Na verdade, não temos saudades, é a saudade que nos tem, que
faz de nós o seu objecto. Imersos nela, tornamo-nos outros. Todo o nosso ser
ancorado no presente fica, de súbito, ausente.
Mas é, nesse homem invulgar que foi Poeta e Sacerdote, Moreira
das Neves, que encontramos espelhada como em nenhum outro livro a palavra
saudade, cantada em todos os cambiantes, passando pelo fado e pela guitarra
portuguesa, ou pelo lado mais íntimo, dolente e magoado que sentem as almas dos
que ficam, lembrando os emigrantes, ou até, roçando a candura das preces a
Deus, mas sem faltar, muitas vezes uma réstea de Sol a iluminar o caminho para
dar alento e coragem, porque é preciso crer e sentir o destino como o sente o
marinheiro, quando se perde no alto mar.
Moreira das Neves é um cantor privilegiado da saudade, num
livro precioso, publicado após a sua morte, ocorrida em 1992.
O livro “VARIAÇÕES SOBRE A SAUDADE” foi descoberto , com
outros pequenos tesouros, no espólio do Poeta, pelo seu fiel, infatigável e
douto amigo, discípulo e companheiro também, até nas lides do jornalismo,
Manuel Ferreira da Silva, diz o seu prefaciador Francisco J. Velozo.
Com um sentimento de saudade pelo Homem ilustre, que foi
Padre Francisco Moreira das Neves, é com esse mesmo sentimento que o jornal “ A
Comarca de Arganil” homenageia, reproduzindo algumas quadras do Poeta, que foi,
entre tantas lides, um exímio jornalista.
Eco de fala perdida
Nas brumas do alto mar.
Lenço acenando à partida
De alguém que espera voltar.
Quanto mais a idade cresce
Mais a vida se dilui.
Apenas não esmorece
A saudade do que fui.
Búzio das ondas de Além,
Canção de lago sem fundo.
A saudade é como alguém
Que chega do fim do mundo.
Carta que ao longe se envia,
Telegrama que nos vem.
Toda a saudade anuncia
O pensamento de alguém.
Ninguém diga que a saudade
Abandona os infelizes.
Ela nunca deixa a herdade
Em que fundou as raízes.
Quem busque terra estrangeira
Pode sem medo contar:
- Fica a saudade à lareira
Sentada no seu lugar.
Pescador que vai ao mar
E no mar se perde em rondas
Ouve a saudade gritar
Na voz de todas as ondas.
Extinta a última brasa
Tudo morreu? Ninguém creia.
A saudade em nossa casa
Faz às vezes de candeia.
Nas romagens às ermidas,
Alpendres de claridade,
Não há promessas cumpridas
Com as que cumpre a saudade.
Não sei que mistério atrai
Nuvens d’aquém e d’além.
Se uma saudade nos vai
Outra saudade nos vem.
Debaixo do figueiral
Pôs-se a saudade a bordar.
Gastou agulha e dedal
Sem a tarefa acabar.
Nós é que temos de acabar este incipiente roteiro sobre a
palavra saudade, onde se lembrou este sentimento genuíno da alma portuguesa, do
qual é expressão acabado o génio poético de Moreira das Neves, que hoje,
apontamos como expoente da nosso sentir e pelo qual guardamos uma enorme saudade.
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