Gravura publicada pela Revista
"Occidente" de 1 de Janeiro de 1878
Alexandre
Herculano tinha 27 anos quando escreveu “A Harpa do Crente”, dizendo que é o poema
da minha mocidade., como declara no rodapé do poema “A Semana Santa”,
afirmando: Quando compus estes versos (...) ainda eu cria conceber toda a
magnificência do grande drama do cristianismo, e que a minha harpa estava
afinada para cantar um tal objecto. Enganava-me: a Semana Santa do poeta não
saiu semelhante à Semana Santa da religião. O que é esta de feito? Um poema
representado, um drama, cuja essência é um facto universal, o maior de todos; o
que veio mudar ideias, civilização e destinos do género humano inteiro.
O grande
escritor viveu em França em 1832 na condição de refugiado por ter participado
em 21 de Agosto de 1831 no levantamento do Quarto Batalhão de Infantaria
apostado em implantar as ideias liberais, movimento que foi esmagado pelas
forças governamentais de D. Miguel, cumprindo um exílio europeu entre 21 de
agosto de 1831 e o final de Fevereiro de 1832.
Este episódio
marcaria para sempre a sua vida, ao familiarizar-se em Rennes e Paris com as
leituras de um cristianismo liberal representado pelo grupo do jornal Avenir,
aparecido em Paris em 1830, sob a orientação de Lamennais (1) com a
finalidade de conciliar a vivência cristã com os ideais da revolução burguesa,
apregoando a separação da Igreja do Estado e defendendo a conquista da
Liberdade, também para o proletariado.
Esta vivência
consolidou em Herculano uma concepção religiosa do homem, como resultado do
influxo da Bíblia, especialmente dos escritos de São Paulo na sua vida de
pensador interessado na sorte dos seus concidadãos e que ele haveria de
explanar nas suas poesias da juventude.
Em “A Harpa do
Crente”, na 1ª estrofe, Herculano,
interpretando o que sentia de negativo nos homens e na sociedade dos seu tempo,
fala-nos do vento oeste que passa, para nos alertar das nossas fraquezas
humanas. Diz, assim:
(...) O
oeste passa
Mudo nos troncos da alameda
antiga,
Que à voz da Primavera os
gomos brota:
O oeste passa mudo, e cruza o
átrio
Pontiagudo do templo,
edificado
Por mãos duras de avós, em
monumento
De uma herança de fé que nos
legaram,
A nós seus netos, homens de
alto esforço,
Que nos rimos da herança, e
que insultamos
A Cruz e o templo e a crença de outras eras;
..............................................................................
E contra
aqueles que pela pena do Poeta dizem, sem apreço: Que nos rimos da herança,
e que insultamos / A Cruz e o templo e a crença de outras eras, conclui, na
2ª estrofe, o seu pensamento, como se, com a sua atitude de ir pedir aos
túmulos dos velhos / Religioso entusiasmo e canto novo quisesse – como peregrino
que era - redimir os homens seus contemporâneos de
viverem longe de Deus.
Oh, sim! –
rude amador de antigos sonhos,
Irei pedir aos túmulos dos
velhos
Religioso entusiasmo; e canto
novo
Hei-de tecer, que os homens do futuro
Entenderão; um canto
escarnecido
Pelos filhos dest' época
mesquinha.
Em que vim peregrino a ver o
mundo (...)
Alexandre Herculano, não é, como se sabe, um
escritor pelo qual a Igreja tenha um grande apreço e, no entanto, este homem de
eleição foi um crente em Deus e cantor da Cruz onde Jesus morreu, tendo-nos
deixado esse soberbo quadro da Cruz Mutilada, que ele encontrou, um dia
no monte, perto do Convento do Carmo, em Sintra.
A Cruz do
grande Martírio estava coberta de hera e tinha um braço partido.
E é desse
encontro místico que ele fez e nos legou para sempre o poema que fez inserir em
“A Harpa do Crente” e que diz assim:
Amo-te, ó
cruz, no vértice, firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre
a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde,
entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito
festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro
antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa
no ataúde,
Guias ao cemitério(...)
............................................................................
E eu te
encontrei, num alcantil agreste,
Meia quebrada, ó cruz.
Sozinha estavas
Ao pôr do Sol, e ao elevar-se
a Lua
Detrás do calvo cerro. A
soledade
Não te pôde valer contra a
mão ímpia,
Que te feriu sem dó. As linhas puras
De teu perfil, falhadas,
tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um
crime
Sacrílego, brutal e ao ímpio
inútil!
A tua sombra estampa-se no
solo,
Como a sombra de antigo
monumento,
Que o tempo quase derrocou,
truncada.
No pedestal musgoso, em que
te ergueram
Nossos avós, eu me assentei.
(...)
Fiquemos por aqui, imaginado Herculano, condoído da
sorte daquela Cruz que era uma imagem do sofrimento e da Glória de Cristo,
tendo-se sentado no pedestal musgoso, onde, um dia, os nossos avós a
tinham fundado na aspereza do monte, para sofrer ali, na solidão a investida de
uma mão sacrílega que lhe ceifou um dos braços.
Fiquemos por aqui, mas teçamos uma homenagem ao
Homem que não tendo sido um paroquiano zeloso de uma qualquer Igreja local, foi
um crente.
Alguém
que soube entender o verdadeiro sentido religioso do homem e por ele viveu e
cantou.
Casa de Vale de Lobos onde morreu Alexandre Herculano
(gravura publicada pela Revista "Occidente" de 1 de Janeiro de 1878)
(1) - Felicité Robert de Lamennais, escritor
francês (1782 – 1854). Recebeu a ordenação presbiterial, tornou-se um arauto do
ulramontanismo e liberdade religiosa. A sua acção levou o Papa Gregório XVI
condenado as suas ideias, em 1832. Tal facto fez que Lamennais tenha rompido
definitivamente com a Igreja, tendo convertido a um humanismo socializante. As
suas obras principais, são: Ensaio sobre a indiferença em matéria de religião
(1823) e Palavras de um crente (1834).
Sem comentários:
Enviar um comentário