Ao passar há dias, propositadamente, durante uma viagem que fiz a S. Miguel
(Açores), pelo muro do Convento das Clarissas da Esperança, em Ponta Delgada,
lembrei o suicídio de Antero de Quental.
O meu carinho pelo Poeta guiou os meus passos até
àquele fatídico muro que esconde por detrás da sua grossa parede o Senhor Santo
Cristo dos Milagres e mostra pela frente, o banco onde está, desde então,
omnipresente na sua ausência forçada o grande Poeta que ali acabou com a vida,
perante as árvores do Campo de S. Francisco, uma praça quadrangular, onde o
coreto – que já existia – parece desfiar uma música fúnebre pela alma do homem
que não encontrou saída para os seus males – do corpo e do espírito – que não
fosse no cano de um revólver comprado para o efeito, horas antes na loja de Benjamim
Ferin, que não só vendia quinquilharias, como
também, armas de fogo.
Eça de Queirós cognomiou por “santo Antero” o seu
confrade e grande amigo Antero de Quental, o proeminente pensador, poeta e filósofo nascido em
Ponta Delgada a 18 de Abril de 1842 e
baptizado no dia 2 de Maio, na Igreja Matriz de S. Sebastião, onde está a mesma
pia baptismal que fez entrar no corpo místico de Cristo, um cristão que ele
nunca deixou de ser, pesasse, embora, o seu afastamento da Igreja nos seus
tempos de adulto.
Era filho de Fernando de Quental, um dos bravos dos
7500 liberais que, em 1832, desembarcaram no Mindelo, a norte do Porto e
contribuíram para implantar o regime constitucional. O avô paterno, André da
Ponte Quental da Câmara e Sousa, destacara-se também pelas suas convicções
liberais.. A mãe, Ana Guilhermina da
Maia, deu-lhe uma educação muito religiosa que irá contribuir para as suas
reflexões místicas, mesmo depois de abandonar a religião.
Em 1856, matriculou em Direito na Universidade de
Coimbra, tomando o grau de bacharel em 1864.
Antero de Quental foi o principal preceptor de um
grupo de intelectuais ( Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós,
Germano Vieira Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira
Martins, Manuel Arriaga, Salomão Sáraga e Teófilo Braga) que se dispunham a
reflectir todas as grandes questões que agitavam o seu tempo, religiosas,
políticas, sociais, literárias e científicas, tratando-as com radicalismo,
especialmente as que se entroncavam com a religião cristã, dispostos a combater
os mitos doutrinais das teologias.
O reflexo imediato teve eco nas chamadas “Conferências
do Casino”, uma série de palestras realizadas na primavera de 1871 em Lisboa, impulsionadas pelo Poeta que para tanto havia
insuflado no “Grupo do Cenáculo” (1)
o entusiasmo para as realizar, sob a influência das ideias revolucionárias de
Proudhon. (2)
Portugal agitava-se, ainda, pelos labaredas ateadas
entre as lutas do radicalismo de D. Miguel e o liberalismo de D. Pedro, dois
irmãos desavindos, mas cujos ideais se haviam gravado na alma portuguesa,
gerando o clima propício ao conflito clericalismo-anticlericalismo, ainda hoje,
está perfeitamente presente em muitos sectores da nossa cultura.
Em 1873, Antero adoece gravemente
Em Julho daquele ano vai
a Angra do Heroísmo para consultar um médico homeopata.
Em Setembro regressa
a Lisboa e consulta dois médicos: Sousa Martins e Curry Cabral.
Em Maio de 1875,
publica a 2ª edição do seu livro “Odes Modernas.”
Em 1876, toma
contacto com a filosofia do panteísta
Hartmann (3) que muito o influenciou.
Depois de aspirar ao Nirvana (4) budista, procurou uma
consolação através da filosofia estóica.
Em 1877, vai a Paris
consultar Charcot (5)
e tenta uma cura hidroterápica na comuna de Bellevue. (6)
Nesta localidade
apaixona-se por uma aristocrata francesa, paixão que veio a redundar num fracasso
que quase o levou ao suicídio. No ano seguinte tenta uma nova cura em Bellevue,
mas não consegue melhoras.
Em 1878 é convidado a
candidatar-se como deputado republicano socialista, o que recusa.
Em 1880 instala-se na Calçada de Santana, em Lisboa,
no momento em que toma a seu cargo a educação das duas filhas do seu amigo do
coração, Germano Meireles, falecido em 1877 e seu companheiro de tertúlia.
Em 1885 escreve os seus dois últimos sonetos
Em 1886 publica os
Sonetos Completos, prefaciados por Oliveira Martins.
Em 1887, vai, mais
uma vez aos Açores.
Confessa: Tive um certo prazer em tornar a ver a minha
terra (…) Tem-me agradado esta terra e foi até com certo prazer que ontem me
achei a passear no campo de S. Francisco, local onde se suicidaria no dia
11 de Novembro de 1891, parecendo que o seu célebre soneto “Na Mão de Deus” foi
na época em que o escreveu, um prenúncio do desenlace da sua vida
Na mão de Deus, na sua mão
direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada
estreita.
Como as flores mortais, com que
se enfeita
A ignorância infantil, despojo
vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e
imperfeita.
Como criança. em lôbrega
jornada,
Que a mãe leva ao colo
agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,
Selvas, mares, areias do
deserto...
Dorme o teu sono, coração
liberto,
Dorme na não de Deus
eternamente!
De Carlos Loures, e com a respectiva vénia, relata-se
“ipsis-verbis”os últimos instantes do Poeta.
É um dia
húmido de Novembro. São Miguel está, como quase sempre, sob uma espessa camada
de nuvens. Azorian torpor é como os ingleses chamam a esta atmosfera opressiva,
obsidiante, que não só atormenta o corpo como parece infiltrar-se e assediar a
mente. Na baixa de Ponta Delgada, ao lado da Tabacaria Açoriana, fica a loja de
quinquilharias de Benjamim Ferin. Antero entra na loja e cumprimenta o
empregado. Está calmo, tranquilo. Pergunta se tem revólveres à venda. O
empregado olha-o surpreendido. Antero, sorri:
- Sabe, vou
morar para um local longe de vizinhança. Com os ratoneiros que andam por aí, é
bom estar prevenido.
- Sem dúvida,
senhor doutor. É mais prudente estar prevenido.
E vai buscar
as armas que tem para venda. Antero analisa-as uma a uma. Acaba por optar por
um revólver Lefaucheux. O empregado ensina-o a carregá-lo.
- Nunca peguei
numa arma de fogo...
O homem dá-lhe
mais algumas explicações. Quando vai a retirar as balas do tambor, Antero
diz-lhe:
- Não, não.
Deixe-o assim, já pronto.
O homem
obedece, mas avisa de que convém nunca esquecer que a arma está carregada,
pronta a disparar. Às vezes há acidentes...
- Esteja
descansado. Vou ter todo o cuidado.
Enquanto
embrulha o revólver com sucessivas camadas de papel, o empregado pergunta:
- Ouvi contar
que o senhor doutor ia para Lisboa?
- Pensei
nisso, mas desisti, pois ultimamente tenho passado melhor.
- Ainda bem,
senhor doutor. Ainda bem.
Antero tira da
algibeira algumas libras que põe sobre o balcão:
- Faça o favor
de se pagar. Eu nunca me habituei a fazer dedução de moeda fraca.
Antero sai. Os
homens que estão à porta, saúdam-no respeitosamente.
Vai a casa de
seu primo, Augusto de Arruda Quental. Quando entra coloca o embrulho sobre uma
mesa e, por cima, põe o chapéu. Conversa tranquilamente com o primo. Falam de
banalidades. O tempo, a política, coisas da família. Quando Antero se ergue
para sair, o primo dá-lhe o chapéu e faz depois menção de lhe entregar também o
embrulho. Antero quase grita:
- Não lhe
pegues!
Despedem-se.
Metendo pela
Rua de S. Brás, encaminha-se a passos lentos para o Campo de São Francisco, uma
ampla praça pública de Ponta Delgada. Aí, senta-se num banco, junto do muro do
convento da Esperança.. Nesse muro, por cima do banco, um dístico em pedra
lavrada mostra a palavra esperança sobreposta a uma âncora. Antero sorri.
Esperança e uma âncora que o segurem à vida, eis precisamente o que lhe falta.
Olha o largo, com as suas árvores, com as suas
simétricas placas redondas de relva, circundando o pequeno coreto implantado no
centro. Há pouca gente. Uma senhora passa perto levando pelas mãos duas
crianças. À memória ocorre-lhe a imagem de um menino passeando ali, pela mão de
seu pai, muitos anos atrás. De tudo, o pior mal é ter nascido, pensa.
(1) - Num primeiro
momento o Cenáculo assentava mais na boémia estudantil que na reflexão séria.
Era uma tertúlia sobretudo anárquica em que se insultava todas as instituições
da sociedade portuguesa da Regeneração, contra os seus bacharéis, os seus
ministros, os seus escritores, mas também contra tudo em geral, contra Deus,
contra o Universo, era acima de tudo uma “Boémia feroz” ruidosa, tumultuosa,
adolescente. As discussões do cenáculo
começaram na Travessa do Guarda-Mor, onde Batalha Reis tinha um quarto,
passaram depois para São Pedro de Alcântara, e para a R. da Cruz de Pau e
acabaram por se instalar numa casa da Rua dos Prazeres. Foram membros desta
tertúlia, para além de Antero, Jaime Batalha Reis, Eça de Queiroz , Germano
Vieira Meireles, Salomão Sáraga, Manuel Arriaga e Ramalho Ortigão.
(2) - Pierre-Joseph
Proudhon (1809 - 1865) foi um anarquista
francês, o principal, cuja influência é sentida até os dias de hoje. Acabou
sendo um dos que iniciaram a propor uma ciência da sociedade.
(3) - Karl Robert Eduard von Hartmann (1842 -1906), foi um filósofo alemão. É
chamado “o filósofo do inconsciente.” É um pessimista. Segundo a sua teoria a
felicidade individual é inacessível, aqui e agora ou no futuro. Hartmann
encontra a explicação dos fenómenos da natureza, e especialmente dos fenómenos
orgânicos, na tese de um inconsciente criador do mun
(5) - Jean-Martin
Charcot (1825 - 1893) foi um médico e cientista francês; alcançou fama no
terreno da psiquiatria na segunda metade do século XIX. Foi um dos maiores
clínicos e professores de Medicina da França. É um dos fundadores da moderna neurologia.
(6) - Bellevue-la-Montagne é uma comuna francesa
na região administrativa de Auvergne, no departamento Haute-Loire.
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