O "eu" sozinho, de que serve e para que serve?
Diz S. Tomás de Aquino na "Suma Teológica", Parte I da Primeira Parte, "O homem como criatura", questão 99, art. 2º, que naquilo que respeita ao "eu" primeiro (Adão) a este nada lhe faltava naquele estado de inocência, quanto à perfeição humana para que fora criado, acrescentando no que se refere à perfeição do Universo que, para que tal tivesse acontecido contribuíram graus variados de coisas, tal como a diversidade do género humano contribuiu para a perfeição da natureza humana a partir da criação de ambos os sexos na aurora da Criação.
Eis, porque, se o "eu" - homem - nasceu isolado mereceu, imediatamente de Deus a criação do "outro", no caso - a mulher - para sua companheira e, desde logo, mereceu a exaltação do Criador, quando disse, ter feito uma obra muito boa. (Gn 1, 31)
Foi, desse modo, que o "eu", embora criado num acto isolado trouxe consigo a génese de uma nova criatura que o completasse naquilo que faltava à sua natureza, o que nos leva a concluir que o "eu" só existe plenamente quando se projecta no "outro", resultando da "fusão" genética todos os "nós" e os "outros" no gregarismo humano a que fomos chamados pelo Criador.
Deriva desta asserção que o "eu" que a si mesmo se isola corre o risco de chamar sobre si este apodo, tendo, muitas vezes, consciência do acto de que é sujeito ou objecto de pensamento se levarmos em conta o que nos diz Schopenhauer, em "A Arte de Insultar" ao afirmar que o egoísta quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance - e não contente com isto que já é grande defeito humano - quer ficar completamente livre das dores (...), chamar a si a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer que for capaz (...) e tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio.
Foi para estes egoístas que o poeta popular António Aleixo escreveu a quadra que se reproduz e é bem a imagem da descrição que é feita pelo filósofo.
Diz, assim:
porque julgas ver direito.
Como há-de ver coisas tortas
quem só vê em seu proveito.
Há, contudo, ao contrário deste egoísmo radical o chamado egoísmo relativo que teve em Fernando Pessoa um fiel intérprete, dada a sua natureza e o meio profundamente intelectualizado em que fez viver a sua estrutura mental, afirmando num dos seus muitos pensamentos, o seguinte:
Por mim, o meu egoísmo é a superfície da minha dedicação. O meu espírito vive constantemente no estudo e no cuidado da Verdade, e no escrúpulo de deixar, quando eu despir a veste que me liga a este mundo, uma obra que sirva o progresso e o bem da Humanidade.
Temos assim, que o "eu" radical ou relativo deve renascer de si para si mesmo e ter a atitude comum que desde a primeira centelha de vida o fez viver em comunhão toda a criatura, com capacidade de amar a ponto de viver ou escrever as suas sensações, tornando-as presentes e actuantes no seu semelhante, como, para citar um só exemplo, fez o poeta António Fogaça (1) no poema II do único livro que nos deixou.
Eu não acreditava
Que simplesmente a luz dum doce olhar
Tornasse a alma uma perfeita escrava.
Contudo, ó flor sem par,
Quando ontem, passando, tu me olhaste,
Mal imaginas que no mesmo olhar
A alma me levaste.
Chegam estas duas belíssimas estrofes para provar que o "eu" ao fundir-se no "tu", ambos criados por Obra e Graça de Deus é que cumprimos o que Ele determinou no dealbar do Mundo sem egoísmos vivenciais, egocêntricos, radicais ou relativos.
(1) - Nasceu a 11 de maio de 1863, em Barcelos, e faleceu a 27 de novembro de 1888, em Coimbra. Em 1886, ingressou na Faculdade de Coimbra onde cursou Direito. Morreu muito jovem, quando cursava o terceiro ano. Publicou um único livro: "Versos da Mocidade".
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