PEDRO TOMÉ:UM AMIGO DE JESUS
Recordação de
um serão vivido nos meus 15 anos na aldeia do Soito (Colmeal), tendo plena
consciência que a escrita que se segue, se roubou toda a magia que então senti
na voz e no gesto de quem contou este momento em honra de Jesus-Menino, nada
retirou do sentido altruísta de fazer o bem, que é em síntese, o que encerra o
Conto de Natal que então ouvi contar e que tem perdurado, até hoje, na minha
lembrança.
Como é dito em epígrafe este conto de
Natal teve origem num serão encantado que aconteceu, um dia, no Soito do
Colmeal onde cheguei depois de ter andado às voltas pelos terrenos alcantilados
do Ceiroquinho e das Boiças, a partir de P. a terra que me viu nascer e
me encheu dos odores das giestas e dos matagais sob o manto de um céu azul,
como não há outro.
Este facto trouxe-me à memória a minha cicerone,
a minha querida avó materna - a muito linda
Maria Barata - e me convidou para lhe fazer companhia até àquela aldeia
da Serra onde casara uma das suas irmãs, cujo nome infelizmente não recordo e em cuja casa dormimos depois de aquecidos ao
calor da sua lareira, em cujo caniço, os chouriços, morcelas e farinheiras se
tostavam, emprestando ao ar um aroma que ficou para sempre no meu olfacto.
Foi naquele serão que aconteceu algo tão
belo que para o descrever faltam as palavras apropriadas, pelo que, as que
ficam sendo as melhores que encontrei estão longe de dar cor e vida ao que se
passou naquela ceia que ainda hoje me sabe, pelo cheiro, pelo gosto das coisas e,
sobretudo, pela recordação das pessoas que Deus lá tem.
Vivia-se, então, quase no fim a década de
quarenta do séc. XX e, porque, nos aprestávamos para saudar mais um Natal, a
nossa anfitriã que fora - como me disse depois a minha avó - alguém que vivera
num meio de alguma cultura, mostrou a sua faceta espiritual ao sensibilizar-me
com um conto de Natal exemplarmente contado.
Com toda a ternura registei-o no fundo da
minha memória e também no meu coração de jovem, sequioso como andava em beber
todas as emoções, como aquela em que, no ar quase religioso daquela casa de
aldeia se ergueu aquela voz serena e timbrada, onde a melodia das palavras
ganhou a mística própria de um daqueles momentos raros que ficam para a vida
inteira.
Recordo – como se fora hoje - a irmã de minha avó envolvida no seu xaile de
lã e com a grande tenaz de ferro, de vez em quando a ajeitar o lume, enquanto
desfiava as palavras admiráveis que me encantaram, como se fossem fios de uma
dobadoira singular.
Feita a visita, no dia seguinte – dia da
Consoada – abalamos de manhã, de regresso à aldeia onde os meus pais me
aguardavam para celebrar esse Dia fundamental.
Era então, uma aldeia de sonho que
emprestava aos meus verdes anos um encanto mágico, que não se perdeu de todo na
inexorável roda do tempo.
Recordo-me que naquela noite bendita, de
vento sibilante e de geada que deixavam as ruas e os telhados vidrados, a
lareira onde ardia a lenha de pinho com os seus estalidos e faúlhas
crepitantes, era com o seu espaço envolvente a divisão principal da casa, por
ser ali, ao redor do lume que se comia a ceia de Natal e as iguarias, onde não
faltava a tigelada, o arroz-doce onde a canela assinalava o desejo de um “Feliz
Natal” e as indispensáveis filhós que só na Beira-Serra se fazem.
Recordo-me que a minha santa avó para
além da Oração de louvor ao Menino Jesus de que sempre se incumbia, ensaiou o
pequeno coro e todos cantamos o hino tradicional em louvor do Menino Jesus.
Oh!
Meu menino Jesus...
Oh!
Meu menino tão belo
Logo
vieste nascer
na
noite do caramelo...
…………………………..
Alegrem-se
os Céus e a Terra
Cantemos
com alegria!...
Que
já nasceu o Menino
Filho
da Virgem Maria...
No fim, com algum embaraço, mas decidido –
a convite da minha avó - li o conto de Natal ouvido no Soito e que escrevinhara
num ápice logo que chegara a Praçais com
o fim de não perder os pormenores mais importantes.
Que me lembre foi o primeiro escrito dos
muitos que levo feito no decorrer da vida.
Fiz um sucesso de que foram prova os
muitos beijos que me deram, especialmente a minha avó que julgou ver em mim uma
glória literária qualquer, que só a sua extrema bondade e santa simplicidade
foi capaz de acarinhar para além da condescendência de fui alvo pelos restantes
familiares.
O que se segue é, pois, uma velha memória
carinhosamente guardada e agora reescrita, com toda a saudade de um tempo que
nunca mais volta.
O conto de Natal tem o nome que ouvi, no
Soito:
Pedro Tomé: um amigo de Jesus.
Pedro Tomé: um amigo de Jesus.
Começa assim:
Tudo começara numa determinada Escola
Primária, antes das férias de um certo Natal, correspondendo ao hábito que a
professora tinha de convidar de vez em quando um velho colega, o professor
Mário, já reformado, que com o seu jeito peculiar bem conhecido vinha contar
uma história aos alunos, ouvida sempre com a atenção que era devida àquele
conceituado mestre.
A atenção para além de necessária era
indispensável - porque era pedido aos
pequenos ouvintes, após a palestra, uma redacção sobre o relato ouvido - contando cada um a impressão causada pela
história. A redacção que saia da pena dos alunos era devidamente avaliada pela senhora professora,
constituindo por esse motivo um teste valioso.
Naquele dia o professor Mário agasalhado no seu sobretudo cor de mel e
algo já curvado pela força dos anos postou-se à frente da classe e andando
de um lado para o outro, serenamente, na sua voz bem timbrada começou a desfiar
a sua história, que era, afinal, um lindo conto de Natal.
Começou assim:
- Ouvi esta história, quando era menino como
vós sois agora. E acrescentou: a
personagem principal tem um lindo nome: Pedro Tomé.
Era um pobre de Deus que vivia de esmolas.
Não tendo eira nem beira habitava um
miserável casebre cuja parede do fundo era um enorme penedo por onde escorria a
água da invernia quando lhe dava o vento da nortada.
Apesar de pobre era um homem honrado que
primava pela educação, sobressaindo pelos modos como falava, sobretudo de Jesus,
de quem se dizia seguidor, pelo facto de se chamar Pedro Tomé, algo que o
enobrecia por ostentar com orgulho os nomes próprios de dois dos seus
apóstolos.
Pedro Tomé tinha uma adoração muito
especial pelo Menino que nascera humildemente e se fizera Homem, tendo-se deixado crucificar por amor dos
homens, um acontecimento que levou o professor Mário a dizer que, com o seu sacrifício, Jesus inaugura um
tempo novo de que resultara o Novo Testamento onde se recolhem todos os Livros
Sagrados que surgiram após o Advento de Jesus.
Fora este facto que motivara todo o amor
que lhe dedicava Pedro Tomé, que desde sempre acalentava a ideia de ter um
Menino Jesus de madeira, rosado e de braços abertos, como vira, um dia, na loja
do Sr. Lopes, na última visita que fizer à vila, mas com o senão de o vender por
um preço para o qual não chegava o seu magro pecúlio.
Como não conseguiu comprar aquela
desejada escultura, afeiçoou-se mais a uma imagem d’Ele, velha e já gasta pelo
uso que um dia lhe haviam dado na Casa das Courelas, não indo lá mais vezes por
ter vergonha de incomodar aquela santa gente que o recebia com modos brandos e
caritativos.
A esta velha imagem, Pedro Tomé passou a
guardar um amor muito seu.
Era quase uma adoração.
Já que não era possível ter um Menino
Jesus de madeira que bem desejava colocar num altar na sua humilde habitação –
onde a sua imaginação sempre O viu - gostava que aquela Imagem à qual rezava todos
os dias nunca o desacompanhasse nem se perdesse.
Nas suas deambulações aconteceu-lhe estar,
um dia, em vésperas de Natal defronte da Casa das Courelas, mas com receio de
se anunciar, pois apesar de pobre tinha nobreza de sentimentos e custava-lhe a
o incómodo que causava àquela boa gente.
Pensava nisto, quando sentindo-se muito fraco
e doente, não hesitou mais. Tendo endireitado o corpo dobrado pelos anos e pela
penúria de uma vida de privações a que acrescia, agora, uma dor aguda que há
dias o incomodava, arrimou-se ao portão e puxou com a força que pode o cordão da
sineta.
Aconteceu isto ao cair da noite.
Recebeu-o D. Genoveva a sua santa
protectora e, como era costume mandou-o entrar para o quinteiro, enchendo-lhe o
bornal de abundantes vitualhas.
Reconhecido, Pedro Tomé lembrou-se que
aquela família não faltaria como de costume à Missa do Galo, vindo-lhe à
lembrança o beijo que era dado a um Menino Jesus de madeira, como aquele que
não pudera comprar na loja do Sr. Lopes.
D. Genoveva, condoída do aspecto adoentado
de Pedro Tomé sentiu vontade de o sentar à mesa da consoada, o que faria se
isso dependesse apenas da sua vontade.
Partiu o pobre, soçobrando o muito que a
santa senhora lhe dera e pensando, que apesar de doente devia dirigir-se à
Igreja no intento de agradecer e beijar o Menino, mas porque esta ficava longe
e era bem curto o seu passo, fraquejou e após ter conversado como fazia tantas
vezes com Jesus, só lhe restou arranjar forças para pedir perdão e dirigir-se
para o seu casebre que ficava bem perto, na dobra do caminho.
Pedro Tomé estava, efectivamente, muito mal
de saúde com uma febre altíssima que fazia sacudir o seu corpo magro.
A noite era álgida e fria, cortada de vez
em quando por um vento agreste e batida por uns farrapos de neve que enregelavam
o corpo do pobre que já se arrastava num dado ponto, quando o caminho se
inclinava na ladeira que dava para a sua pobre habitação.
De vez em quando sentia uma dor maior a
roer-lhe o peito e o olhar toldava-se, deixando ficar no ar visões de um
Presépio que nunca tivera e no qual se agigantava um Menino Jesus de braços
abertos onde o pobre julgava ver no delírio da febre um gesto dirigido para
ele.
Era noite funda quando abriu a porta
desengonçada e penetrou no interior da habitação. Acendeu a candeia e a sua
fraca luz pareceu-lhe um imenso clarão e, nele, distinto e bem recortado apareceu-lhe
– no delírio febril - a imagem de um Presépio, no local onde havia pensando
erigir um altar para colocar o Menino Jesus de madeira e, que, agora lhe sorria.
Era um Presépio como nunca vira outro.
Aturdido pela dor que o consumia, Pedro
Tomé deixou-se cair agarrado à Imagem de Jesus que sacou de um dos bolsos do
casaco de onde escorriam alguns flocos de neve.
E foi naquele delírio que pensou ver à
sua frente rosado e lindo um Menino Jesus que estava ali deitado nas palhas louras
daquele Presépio encantado, como se o estivesse a chamar. Debruçado sobre Ele julgou
abraçá-l’O, enquanto no êxtase que o dominava levou os seus dedos a acariciar
os cabelos louros de Jesus, tendo sobre si os olhares atentos e carinhosos de
S. José e de Nossa Senhora, enquanto os seus lábios se colavam aos beijos à
velha Imagem que os anos haviam amarelecido, prefigurando ver nela a escultura
do Menino Jesus de madeira que não pudera adquirir.
E foi neste preparo que, por fim,
adormeceu, até se dar conta que na manhã do Dia de Natal uma ténue claridade lhe
entrava em poalhas de luz através do janelo voltado a Nascente, mas de tal modo
que lhe beijava o rosto como se fora um acaricia. Ainda mal acordado respirou
fundo e de imediato sentiu-se aliviado da dor física que tanto o havia
incomodado e, até, ao passar a mão pela testa sentiu que a febre cedera.
Foi no decorrer do exame “clínico” que
fazia a si mesmo que ouviu alguém chamar à porta do casebre:
- Pedro Tomé.
- Quem é?... já vai.
Ergueu-se, vestiu o velho sobretudo e ao
abrir a porta deu de caras com o Sr. Lopes, o dono da loja da vila, que ele bem
conhecia.
- Seja bem-vindo… que faz aqui, senhor
Lopes?...entre se faz favor.
E, solícito, abriu de para a par a porta
da humilde habitação.
- Olha, Pedro Tomé. Hoje é Dia de Natal… tempo de fazer bem. Trago-te
aqui uma prenda… espero que gostes dela.
- Uma prenda? - Obrigado…mas…
- Deixa-te disso e abre. É para ti.
Pedro Tomé, tremente, abriu o embrulho e
retirou dele, com as lágrimas a correr-lhe pela face o Menino Jesus de madeira
que lhe quisera comprar.
Foi a soluçar que agradeceu:
- Obrigado. Que Jesus e o bom Deus lhe
paguem tão valioso dado.
E num ímpeto com a estatueta do Menino
Jesus agarrada contra o peito com a sua mão direita, com a outra mão abraçou
profundamente o Sr. Lopes, ficando assim por alguns momentos aquele quadro
belíssimo, com Jesus de braços abertos a unir os corações dos dois homens, um
por ter cumprido o preceito do amor humano e o outro, grato ao irmão mais
afortunado e a Jesus que naquele dia nascera, mais uma vez, por amor de todos
os homens.
Conta-se que Pedro Tomé erigiu na pobre
habitação o altar que tanto ambicionara para o Menino-Jesus e ao ter feito
d’Ele sob todos os aspectos a sua maior riqueza, dizia para quem o queria
ouvir, ser o homem mais rico do mundo.
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