Paráfrase de uma
história exemplar sem autor conhecido
Num certo dia
caminhavam sem pressa numa das margens do Ganges dois homens que de vez em
quando ficavam a olhar a paisagem, meditando sobre assuntos certamente
importantes, pelo modo dos gestos e das cogitações
a que se entregavam. Um deles era o célebre filósofo Damodar Mavalankar (1) e o
outro, um dos seus discípulos.
Damodar
praticava o sannyasin, que de acordo com a linguagem sânscrita (2) era
um modo de vida própria do asceta hindu que tendo obtido o mais elevado
conhecimento místico, fixa a mente na verdade suprema e renuncia por completo
aos prazeres do mundo.
Num dado momento,
Damodar deu-se conta que um escorpião corria o risco de se afogar, ora lançado
contra o areal da margem, ora batido pelas águas e engolido por estas até
voltar a ser cuspido. Num ímpeto quando as águas o depositaram sobre a areia, o
filósofo agarrou-o para o salvar, mas sentindo-se picado, soltou-o e ele
mergulhou nas águas.
Esta cena
repetiu-se por três vezes.
Foi então que
o discípulo, admirado pela acção caritativa do mestre e, sobretudo, porque
apesar das dores que sentia por cada uma das investidas do escorpião não abandonava
a tarefa de o salvar, lhe fez a seguinte pergunta:
- Mestre, não
lhe parece demais a ânsia de salvar das águas um animal tão mal agradecido?
Damodar,
olhando o discípulo com os seus olhos profundos, cheios de bondade e sabedoria
humana, ripostou com doçura:
- Cada um de
nós responde pela sua natureza. A do escorpião é picar. A minha, pelos
ensinamentos que adquiri – como quero que seja a tua – é a de salvar.
E assim
aconteceu.
Só depois do escorpião ter sido posto a salvo num
rincão de terreno é que os dois prosseguiram o caminho, cogitando naquele
acontecimento que serviu ao mestre sânscrito para suscitar no discípulo a espiritualidade
que está imanente em todo o ser humano.
A lição de
Damodar continua actual.
Na natureza
humana existem dons que podem fazer dos homens seres de excepção - como
aconteceu com o velho filósofo hindu - ou pelo contrário, dons maléficos que
podem fazer deles seres parecidos com o escorpião da história, sempre dispostos
a picar aqueles de quem recebem, quantas vezes, a mão estendida.
A sabedoria
diz – na linha pura dos Evangelhos – que o homem deve perdoar setenta vezes
sete – ou seja, tendo do perdão uma margem infinita até ao ponto de levar o
outro a emendar o seu erro, norma que posta a circular na vida deve levar o
homem que segue um caminho direito a jamais abandonar aquele que não age assim.
Foi isto que
fez Damodar.
Não abandonou
o escorpião até lhe dar morada firme, retirando-o das águas violentas e mortais
do rio, que por fim o matariam.
A todos nós cumpre fazer o mesmo, tendo na devida
conta o desiderato a que a própria glória de viver nos chama, sem o que não
cumprimos em plenitude a missão humanitária que pede, como uma necessidade inalienável,
que seja posta ao serviço da vida a consciência espiritual que vive no mais
íntimo do homem e que no momento oportuno o chama a agir em prol do outro, de
modo a que este abandone as águas turvas que o batem sem só nem piedade – como
acontecia com o escorpião da história – e possam, com a mão amiga do mais
prudente, viver de acordo com a sua natureza, que por vontade de Deus não pode
deixar de ser digna e capaz de edificar a vida em cima do chão firme, como deve
ser o seu destino, para seu bem e bem do colectivo onde se move a vida de todos
os homens.
(1) - Damodar nasceu em Ahmedadad
(Gujarat) em Setembro de 1857. Oriundo de uma casta brâmane recebeu uma
tradicional formação hindu, tendo conquistado um lugar supremo nos teósofos
ilustres do século XIX
(2) - Os mais antigos
manuscritos da literatura universal conhecidos foram compostos em Sânscrito ,
língua que se perpetuou até hoje como idioma sagrado e de erudição nas ciências
tradicionais da Índia.
Sem comentários:
Enviar um comentário