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sábado, 25 de maio de 2013

A natureza e os seus dons



Paráfrase de uma história exemplar sem autor conhecido

                                                                                      
Num certo dia caminhavam sem pressa numa das margens do Ganges dois homens que de vez em quando ficavam a olhar a paisagem, meditando sobre assuntos certamente importantes, pelo modo dos  gestos e das cogitações a que se entregavam. Um deles era o célebre filósofo Damodar Mavalankar (1) e o outro, um dos seus discípulos.
Damodar praticava o sannyasin, que de acordo com a linguagem sânscrita (2) era um modo de vida própria do asceta hindu que tendo obtido o mais elevado conhecimento místico, fixa a mente na verdade suprema e renuncia por completo aos prazeres do mundo.
Num dado momento, Damodar deu-se conta que um escorpião corria o risco de se afogar, ora lançado contra o areal da margem, ora batido pelas águas e engolido por estas até voltar a ser cuspido. Num ímpeto quando as águas o depositaram sobre a areia, o filósofo agarrou-o para o salvar, mas sentindo-se picado, soltou-o e ele mergulhou nas águas.
Esta cena repetiu-se por três vezes.
Foi então que o discípulo, admirado pela acção caritativa do mestre e, sobretudo, porque apesar das dores que sentia por cada uma das investidas do escorpião não abandonava a tarefa de o salvar, lhe fez a seguinte pergunta:
- Mestre, não lhe parece demais a ânsia de salvar das águas um animal tão mal agradecido?
Damodar, olhando o discípulo com os seus olhos profundos, cheios de bondade e sabedoria humana, ripostou com doçura:
- Cada um de nós responde pela sua natureza. A do escorpião é picar. A minha, pelos ensinamentos que adquiri – como quero que seja a tua – é a de salvar.
E assim aconteceu.
      Só depois do escorpião ter sido posto a salvo num rincão de terreno é que os dois prosseguiram o caminho, cogitando naquele acontecimento que serviu ao mestre sânscrito para suscitar no discípulo a espiritualidade que está imanente em todo o ser humano.
A lição de Damodar continua actual.
Na natureza humana existem dons que podem fazer dos homens seres de excepção - como aconteceu com o velho filósofo hindu - ou pelo contrário, dons maléficos que podem fazer deles seres parecidos com o escorpião da história, sempre dispostos a picar aqueles de quem recebem, quantas vezes, a mão estendida.
A sabedoria diz – na linha pura dos Evangelhos – que o homem deve perdoar setenta vezes sete – ou seja, tendo do perdão uma margem infinita até ao ponto de levar o outro a emendar o seu erro, norma que posta a circular na vida deve levar o homem que segue um caminho direito a jamais abandonar aquele que não age assim.
Foi isto que fez Damodar.
Não abandonou o escorpião até lhe dar morada firme, retirando-o das águas violentas e mortais do rio, que por fim o matariam.
      A todos nós cumpre fazer o mesmo, tendo na devida conta o desiderato a que a própria glória de viver nos chama, sem o que não cumprimos em plenitude a missão humanitária que pede, como uma necessidade inalienável, que seja posta ao serviço da vida a consciência espiritual que vive no mais íntimo do homem e que no momento oportuno o chama a agir em prol do outro, de modo a que este abandone as águas turvas que o batem sem só nem piedade – como acontecia com o escorpião da história – e possam, com a mão amiga do mais prudente, viver de acordo com a sua natureza, que por vontade de Deus não pode deixar de ser digna e capaz de edificar a vida em cima do chão firme, como deve ser o seu destino, para seu bem e bem do colectivo onde se move a vida de todos os homens.

(1) - Damodar nasceu em Ahmedadad (Gujarat) em Setembro de 1857. Oriundo de uma casta brâmane recebeu uma tradicional formação hindu, tendo conquistado um lugar supremo nos teósofos ilustres do século XIX
(2) - Os mais antigos manuscritos da literatura universal conhecidos foram compostos em Sânscrito , língua que se perpetuou até hoje como idioma sagrado e de erudição nas ciências tradicionais da Índia.

      

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