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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Lá vem a nau catrineta...



Painel de Almada Negreiros na Estação Marítima de Alcântara
(Imagem capturada no blog  "Restos de Colecção")



Este episódio náutico de A NAU CATRINETA imortalizado pelo génio do grande Poeta que foi Almeida Garrett, é próprio de um País de marinheiros, como foi Portugal.
Trata-se de uma lenda que ele mesmo recolheu e, nela, perpassam os gigantes marinhos do fim do mundo - como o Adamastor que Camões ilustrou nos Lusíadas - e outros de que ouviram falar os portugueses que outrora se faziam ao mar desconhecido.

Há quem afirme que o célebre poema é o relato duma viagem tumultuosa da nau Santo António,l que transportou de Olinda para Lisboa, Jorge de Albuquerque Coelho no ano de 1565, filho de Duarte Coelho Pereira, donatário da capitania de Pernambuco, viagem que ele mesmo contava com todos os perigos que passou, aos seus amigos, de tal sorte que ela faz parte da História trágico-marítima de Portugal e, daí, ter dado origem à lenda e à cantiga popular.

A dar crédito a este feito, a nau depois de ter sido acossada por um corsário francês sofreu tal sorte, que depois de se ver roubada de tudo quanto transportava, incluindo a bússola, foi abandonada à fúria do mar, ficando sem governo a navegar ao acaso, pelo que, os tripulantes não vendo qualquer hipótese de lobrigarem porto de salvação, estando mortos de fome deitaram sortes para ver de entre eles, qual é que seria sacrificado. tendo calhado ao capitão-general a triste sorte.

E foi a partir daqui que se desenvolveu a história, que Almeida Garrett contou neste famoso poema,



Lá vem a Nau Catrineta,
que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar."

Passava mais de ano e dia,
que iam na volta do mar.
Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.

Já mataram o seu galo,
que tinham para cantar.
Já mataram o seu cão,
que tinham para ladrar."

"Já não tinham que comer,
nem tão pouco que manjar.
Deitaram sola de molho,
para o outro dia jantar.
Mas a sola era tão rija,
que a não puderam tragar."

"Deitaram sortes ao fundo,
qual se havia de matar.
Logo a sorte foi cair
no capitão general"

- "Sobe, sobe, marujinho,
àquele mastro real,
vê se vês terras de Espanha,
ou praias de Portugal."

- "Não vejo terras de Espanha,
nem praias de Portugal.
Vejo sete espadas nuas,
que estão para te matar."

- "Acima, acima, gajeiro,
acima ao tope real!
Olha se vês minhas terras,
ou reinos de Portugal."

- "Alvíssaras, senhor alvissaras,
meu capitão general!
Que eu já vejo tuas terras,
e reinos de Portugal.
Se não nos faltar o vento,
a terra iremos jantar.

Lá vejo muitas ribeiras,
lavadeiras a lavar;
vejo muito forno aceso,
padeiras a padejar,
e vejo muitos açougues,
carniceiros a matar.

Também vejo três meninas,
debaixo de um laranjal.
Uma sentada a coser,
outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar"

- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
Que eu tenho mulher em França,
filhinhos de sustentar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar."

- "A Nau Catrineta, amigo,
eu não te posso dar;
assim que chegar a terra,
logo ela vai a queimar.
- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."
- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar"

- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
Quero a Nau Catrineta,
para nela navegar.
Que assim como escapou desta,
doutra ainda há-de escapar"

Lá vai a Nau Catrineta,
leva muito que contar.
Estava a noite a cair,
e ela em terra a varar.


                                                Almeida Garrett (Romanceiro)


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