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sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Há por aí quem não goste de crianças?



in, Revista Municipal nº 11 - Outubro 2014


Quando Deus quer, diz o povo na sua imensa sabedoria "é possível que nasçam flores no meio do lodo" - como se todas as flores fossem iguais á flor de lótus que é naquele meio que assim floresce - o que é, um caso único, o que nos leva a concluir que nesta excepção há algo que não é anti-natural, mas uma Mensagem de Deus, que nos diz ser possível regenerar toda a pessoa, fazendo-a imergir - e ser, efectivamente "pessoa" - de entre a mais abjecta que seja, das estrumeiras da vida.

É uma imagem, mas é muito profunda naquilo que quer transmitir aos homens!

Este intróito serve para dizer que no local ribeirinho da Av. Ribeira das Naus, entre o Cais do Sodré e a Praça do Comércio, e que a feliz gravura documenta, num tempo não muito longe o que ali havia era lodo, onde hoje existe um belo arranjo urbanístico que não podemos deixar de aplaudir, o que prova, que ao homem de boa vontade tudo lhe é possível regenerar, sejam pessoas ou coisas inertes.

Concluindo, constata-se - como gravura no-lo diz - que no mesmo local do antigo lamaçal, as crianças se equivalem a flores na sua alegria e garridice, provando assim, que neste caso - quando o homem quer - é possível criar beleza, ainda que seja preciso, como foi, limpar o lodo para que possam haver fores, neste caso, as crianças, que como disse Pessoa são o melhor que o Mundo tem.

E perante isto, ficamos perplexos, como é possível haver por aí à solta os novos Herodes de que falou um outro Poeta, Miguel Torga, ao deixá-lo implícito no belo poema que a seguir transcrevemos, em honra de todas as crianças que este punhado àlacre representa, a partir da foto encantadora que o seu autor fixou com todo o mérito.



HISTÓRIA ANTIGA


Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenino
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga


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