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sábado, 25 de outubro de 2014

"In Memoriam"


Um dos meus netinhos - o Vasco -  
a ouvir a cantiga das águas da cachoeira que parecem morrer na queda tumultuosa
para - logo a seguir -  reviveram na calma como se deixam deslizar no leito da ribeira a fazer de espelho de um céu sem mancha e do verde dos montes e das margens!


Sadias como são as águas da cascata que se despenham numa cantiga de amor à Natureza que lhes deu a força de se fazerem ouvir, para regalo de quem, como o meu jovem netinho, sentado num dos penedos da margem, parece escutar por entre a moldura da paisagem, porque se atentarmos no foto, o jovem - que muito amo - está de ouvido à escuta da cantiga das águas.

Sadias, efectivamente, como aquelas águas que a foto documenta, são assim as cantigas que se cantavam - hoje, muito menos - num rincão da Beira Baixa que eu conheço e onde nasci e que costumam cantar-se nos encontros de amigos, muitas delas, intencionalmente dirigidas pelos cantadores aos seus derriços, ou para quem se pretendia que viessem a ser.

Cantigas simples, sem arrebiques de grande cultura, tinham e têm na sinjeleza da forma todo o seu encanto da cultura popular onde vão buscar o engenho e a arte, porque é, efectivamente, de uma forma de arte que se trata, até porque na construção do verso e no encadear das rimas se vê, quantas vezes, como são ricas as quadras que o povo canta.


Conheci e fui muito próximo - e ele de mim -  de um lídimo cantor dessas quadras populares e que Deus já lá tem. Tinha o hábito salutar de encher os tempos de lazer, perfumando-os com as simples e belas cantigas que aos serões, num tempo que já lá vai, faziam que as horas se demorassem um pouco mais - como se elas mesmo o quisessem ouvir -  tendo deixado uma grande saudade em todos os que o conheceram pela sua alegria de viver.

Habitualmente, não resistia ao ouvir o trinar duma guitarra sem que pedisse ao artista que dedilhasse "o fado menor" do qual dizia ser a "mãe de todos os fados.", não importando a melancolia que o caracteriza nos seus dois únicos acordes. Noutras vezes pedia o "fado corrido" ou o "mouraria", de acordo com o estado de alma do momento, sendo sempre um regalo ouvi-lo nas quadras simples em que punha toda alma grande que o fez viver e admirar a vida.

Um dia adoeceu da doença que o havia de levar para o Céu, que tenho a certeza, mereceu pela sua postura de homem bom que ele incarnou.
Recordo-me muito bem, porque assisti à sua saída de casa a caminho do Hospital dum facto que jamais esquecerei.
Aquela alma grande saiu de casa a cantar a seguinte quadra de que muito gostava:

                        Cantigas ao desafio
                        Comigo ninguém as cante.
                        Que eu tenho quem mas ensine
                        Que o meu amor é estudante!

Foi-se e não voltou nunca mais a cantar, mas algumas das quadras que agora e logo fui tomando nota e guardei religiosamente, ficam aqui plasmadas em honra da sua memória e dos aprazíveis momentos que vivemos e, que, não são apenas lembranças, mas pedaços de vida que continuam vivos, a demonstrar aos incautos, que a vida merece sempre ser vivida se dela deixarmos memória.

Temos esse dever. 

É um dever sagrado, porque o homem criado "à semelhança de Deus" tem o dever de se parecer com Ele, tal como se pareceu Eduardo da Costa Martins, que assim se chamou aquele saudoso beirão - pai da mulher que Deus me destinou - e com quem convivi de perto tempos que hão-de ficar até que um dia, o Deus Eterno me chame para lhe fazer companhia.




Eis a beleza e a sinjeleza das muitas quadras
que Eduardo da Costa Martins cantou:



Anoiteceu-me na serra,
Duma estrela fiz abrigo.
Apoei-me numa delas
Julgando que era contigo!

Meu amor se vires cair
Folhas verdes da varanda,
Olha que são as saudades
Que o meu coração te manda!

Eu vesti-me; eu assei-me
Não sei se asseado venho.
Quero ver-me nos teus olhos
Já que outro espelho não tenho!

De minha casa p'ra tua
Não vão mais que três adeus.
Morando nós tão juntinhos,
Teus olhos fogem dos meus!

Os meus olhos estão ceguinhos
Mas não posso calcular
Se foi o sol que deu neles
Ou se foi o teu olhar!

Lava a camisa com jeito
Não lhe dês algum rasgão,
Que'stá fraquinha no peito
Do bater do coração!

Se eu soubera que voando
Alcançava o meu desejo
Mandava fazer as asas
Que as penas são de sobejo!

O sol anda, o sol desanda,
Dá voltas para se por.
Eu não ando nem desando
Sou fiel ao meu amor!

Saudades de alguém ausente
Deve ser triste, decerto.
Mas é mais triste senti-las
De quem de nós está perto!


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