UM AMOR PARA SEMPRE!
Naquele
fim de tarde andava pelas ruas do bairro um ruído de pessoas apressadas fazendo
as compras de Natal, ora entrando, ora saindo das lojas onde abundavam numa
amálgama milhares de brinquedos e de outro comércio que nesta época – mais que
em nenhuma outra – oferece
ao público, abundantemente, todas as colecções da época de roupas e agasalhos, juntando-se a tudo isto, como era costume, sobre os passeios das ruas enfeitadas do bairro a venda dos pinheiros de
Natal com todos os elementos decorativos para enfeitar o Presépio.
Manuel Justino olhava tudo à sua
volta, mas sem se deter, um momento que fosse.
De cima dos seus oitenta anos,
lembrava os Natais antigos e os momentos vividos com a sua companheira de toda
a vida, a sua querida Gertrudes, que lhe dera seis filhos dedicadíssimos e,
hoje, com os seus casamentos, um montão de netos que ele muito estimava.
O ancião que havia vivido toda a sua
juventude naquele bairro do centro da grande cidade, era uma referência de
honestidade e rigor de atitudes, sendo, por isso, estimado por todos, quer os velhos da
sua idade, quer pelos mais novos. Todos conhecia pelos nomes.
Naquele fim de tarde, Manuel Justino
levava, de facto, um passo apressado.
Apressado demais para a sua idade, o
que lhe causava algum desajeito no modo como caminhava, torcendo o corpo magro
em cada passada, fazendo crer em todos aqueles que o saudavam que avançava
preocupado, dando ares de quem não queria perder a meta que todos os dias
alcançava, no passeio costumado que o levava à Casa de Saúde onde estava
internada a sua querida Gertrudes.
Ia
de tal modo absorto nos seus pensamentos íntimos que todo o barulho e todas as
luzes não eram bastantes para lhe prende a atenção, durando isto até ao momento
em que o Gonçalo, o seu velho companheiro, ao cruzar-se com ele, o interpelou
deste jeito:
- Que pressa a tua hoje, Manuel...
para onde vais assim... quase a correr?
- Olha, sabes, aquela gente da Casa de Saúde, com estas coisas do Natal, alteraram a hora da visita diária para mais cedo. Como o soube a destempo, apresso-me para não faltar à minha Gertrudes...
- Olha, sabes, aquela gente da Casa de Saúde, com estas coisas do Natal, alteraram a hora da visita diária para mais cedo. Como o soube a destempo, apresso-me para não faltar à minha Gertrudes...
- E ela, como está?
- Continua muito mal – responde de
olhos no chão, Manuel Justino – Sabes, a doença dela é daquelas que incapacitam
de todo... o Alzheimer é terrível, sabes lá... está assim há cinco anos,
mas agora já nem sabe quem eu sou...
O Gonçalo, preocupado com o tom da
conversa e sabendo que o não podia demorar, ainda assim, fez uma última
pergunta seguida desta recomendação desajeitada:
- Mas, então, se ela já não te conhece... porque vais tão depressa? Se hoje a não visitasses, que mal teria?
- Mas, então, se ela já não te conhece... porque vais tão depressa? Se hoje a não visitasses, que mal teria?
Manuel Justino olhou o amigo de alto
a baixo e sem responder àquelas palavras que eram uma ofensa ao seu grande amor
pela esposa, com um modo onde apesar de tudo mostrou algum desagradado, num tom
de voz o mais sereno de que foi capaz, respondeu-lhe:
- Adeus, Gonçalo, tenho de ir. Não
posso perder a hora da visita...
E um pouco a frente, voltando-se para
trás, rematou deste jeito o diálogo:
- É que, se ela já não me conhece eu sei bem quem ela é...
e isso me basta para ir lá todos os dias, assim o Senhor me ajude. É comigo...
Gonçalo ficou apreensivo e de mal
consigo mesmo.
Ao penitenciar-se das suas palavras,
que pela postura do velho amigo lhe
pareceram inadequadas e duras de coração, veio-lhe à lembrança um velho
conceito de Stendhal: O amor é o milagre da civilização, parecendo-lhe,
imediatamente, que agira como se fosse um homem das cavernas, longe de
qualquer sentimento próprio de um homem civilizado, que até era.
Lembrou-se que no dia seguinte era
Dia de Natal, uma época em que o Amor, por um mistério de Deus está mais vivo,
sentindo martelar na sua consciência as últimas palavras do Manuel Justino: É
que se ela já não me conhece eu sei bem quem ela é... e deu consigo a
pensar como é bom sentir um amor assim, dando graças a Deus pelo amor do amigo
para com a velha esposa.
De imediato, correu atrás do amigo
que ofendera, levando no íntimo um sentido arrependimento e um desejo de lhe
pedir perdão. Só que, entretanto, ele já se sumira por entre a amálgama dos
transeuntes, não lhe restando outra hipótese, senão a mais evidente: ir no seu
encalço até à Casa de Saúde.
Assim aconteceu.
Ali chegado, logo à entrada estava
armado o Presépio.
Nossa
Senhora e S. José sorriam e o Menino entre palhas, olhava em redor, parecendo
dar a todos os pormenores um profunda reparo e, de tal modo assim pareceu ao
Gonçalo que ele sentiu no mais fundo do seu íntimo que aquele Menino o olhava
profundamente, verberando-lhe as palavras infelizes que dera ao Manuel Justino,
e que lhe martelavam a consciência, ouvindo distintamente dentro de si a
resposta do amigo à sua falta de respeito pela esposa que a doença privara do
conhecimento das pessoas, incluindo as mais queridas.
- É que se ela já não me conhece eu
sei bem quem ela é...
Ajoelhou-se
ali mesmo, sem quaisquer respeitos humanos e entrou numa bela oração, só
interrompida muito tempo depois, quando deu que ao pé de si estava ajoelhado o Manuel
Justino que acabada a hora da visita dera com o Gonçalo naquela postura de
grande recato e adoração à Sagrada
Família, que ali no átrio da Casa de Saúde, erguia um hino de Amor à gruta de
Belém, onde nem faltavam ovelhas e muito menos os Reis Magos.
Os dois, ficaram ali, ainda um
momento, num silêncio muito doce, mas onde foi possível ouvir, no fim, esta
prece muita sentida do Gonçalo:
- Menino Jesus... se for possível
– e contigo tudo é possível – faz que a Gertrudes volte a conhecer o Manuel
- e uma lágrima rolou quente sobre a sua face até se diluir e esconder na sua
barba espessa.
Na rua, de regresso ao bairro onde
ficavam as suas casas, o Gonçalo, roído de remorsos, passou o braço pela
cintura do velho amigo e disse-lhe:
- Manuel, há pouco fui inconveniente
contigo ao dizer-te palavras que o teu amor pela Gertrudes não podiam
consentir. Peço-te humildemente desculpa e agradeço-te a tua grande lição de
amor... afinal, que mais não é, que a continuação do que tens dito e praticado
ao longo da tua vida.
Manuel, de frente, com um sorriso
cândido, ripostou-lhe:
- Sabes... amanhã é Dia de Natal... e
neste tempo não pode haver discórdias. E até aquelas que existem entre os
homens – que não são anjos – deviam ser sanadas, lembrando o nascimento de
Jesus, que veio a este mundo para dar a paz a todos nós...
E os dois amigos, companheiros de uma
vida inteira que começou nos bancos da Escola Primária que agora apodrece numa
das ruas do seu bairro, seguiram rua fora, serenamente, um deles reconciliado
consigo e o outro, feliz pelo amor que continuava a dar à sua querida Gertrudes
e àquele amigo, a quem desculpara as palavras infelizes, fazendo-o em nome
daquele Menino, cujo nascimento o mundo inteiro se aprestava por festejar.
Com mais vagar o Manuel Justino admirava,
agora, as iluminações das ruas do seu bairro onde havia anjos, estrelas e sinos
de luzes multicores, sentindo que havia no coração do Gonçalo, como havia no
seu, um desejo ardente de Paz e Amor entre os homens.
Sem comentários:
Enviar um comentário