Texto de uma beleza ímpar, no modo e na substância, embora longe no tempo em que foi proferido, não deixa, ainda hoje de estar actual politicamente, o que prova que Alexandre Herculano, ao defender o municipalismo - ele, que foi Presidente da extinta Câmara Municipal de Belém - defendeu neste discurso, para além das suas ideias politicas o seu modo de estar na política ao recusar o lugar de procurador no Parlamento dos eleitores de Sintra por saber que, embora um nome conhecido noutros círculos, para muitos eleitores do circulo para que fora eleito, era um desconhecido, razão primária e suficiente para declinar o cargo.
Eis uma lição para o nosso tempo em que os eleitores não sabem quem são, no Parlamento, os deputados do seu circulo, pela má formação das listas, não se vendo maneira como se hão-de inverter tais anomalias eleitorais.
Carta aos Eleitores do Círculo de Sintra
de Alexandre Herculano
«A DESCENTRALIZAÇÃO É
A CONDIÇÃO IMPRETERÍVEL DA
ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS
PELO PAIS»
Este texto de Alexandre Herculano
é um bom resumo da sua teoria municipalista, que defendeu como salvaguarda das
prepotências do poder central, e que foi
a ideia base da pesquisa histórica sobre a Idade Média que realizou. A defesa
do municipalismo levou-o a condenar o Setembrismo, o Cabralismo e a
Regeneração, como abastardamento ou negação do liberalismo, porque defensores
do centralismo. Para Herculano o
alargamento da vida política à vida local era necessário para que «o governo
central possa representar o pensamento do País», e por isso defende a eleição
de campanário, isto é, a escolha do representante político em função do local
onde esse representante vivia, e unicamente pelos eleitores locais, os únicos
que conheciam os problemas do país real.
Ajuda, 22 de Maio de 1858
Sr. Redactor:
Tendo estado ausente no campo
alguns dias por negócios particulares achei, voltando a Lisboa, retardada no
correio a comunicação oficial da minha eleição de deputado pelo círculo 26.
Decidido a não aceitar aquela honrosa missão, era do meu dever dar imediata
razão de mim a quem assim me dera uma prova de apreço. Tardei talvez, mas a
culpa foi involuntária. da sua amizade espero que, dando quanto antes lugar no
seu jornal à inclusa carta, me ajude a remir de modo possível a minha falta.
Senhores eleitores do círculo
eleitoral de Sintra.
Acabais de me dar uma
demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no parlamento:
sinto que me não seja permitido aceitá-la.
Se tal escolha não foi uma
daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito do grande número, o que
é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de
vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos
merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente,
fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.
Há anos que os eleitores de um
círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a
honra que me fizestes agora. Um deles, um dos mais nobres, mais puros e mais
inteligentes caracteres dos muitos que conheço, sumidos, esquecidos, nessa
vasta granja da capital chamada – as províncias –, encarregou-se de vir a
Lisboa consultar-me. Respondi-lhe como a consciência me disse que lhe devia
responder, e o meu nome foi posto de parte. De Sintra a Lisboa, é mais perto, e
a comunicação mais fácil, do que dos remotos e quase impérvios sertões da
Beira.
Duas vezes nos comícios
populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha íntima convicção de que
nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe
não pertença; que por larga experiência não tenha conhecido as suas
necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os
que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se
modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para
distrito, e às vezes de concelho para concelho. Esta doutrina, posto que tenha
vantagem no presente, reputo-a sobretudo importante pelo seu alcance, pelos
seus resultados em relação ao futuro. É, no meu modo de ver, o ponto de
Arquimedes, um fulcro de alavanca, dado o qual as gerações que vierem ‑depois de nós poderão lançar a sociedade
num molde mais português e mais sensato do que o actual, inutilizando as
cópias, ao mesmo tempo servis e bastardas, de instituições peregrinas, que em
meio século têm dado sobejas provas na sua terra natal do que podem e do que
valem para manterem a paz e a ordem públicas, e mais que uma honesta liberdade.
Durante meses, no decurso de dois
anos, tive de vagar pelos distritos centrais e setentrionais do reino. Pude
então observar amplamente quantas misérias, quanto abandono, quantos vexames
pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos rurais,
como o vosso, que constituem a grande maioria do país. Vi com dor e tristeza
definhados e moribundos os restos das instituições municipais que o absolutismo
nos deixara: vi com indignação essas solenes mentiras a que impiamente chamamos
instrução primária e educação religiosa: vi a agricultura, a verdadeira
indústria de Portugal, lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da
insuficiência dos seus recursos; vi, em resultado dos erros económicos que
pululavam na nossa legislação, a má organização da propriedade territorial e a
desigualdade espantosa na distribuição das populações rurais, precedida da
mesma origem, e dando-nos ao sul do reino uma imagem das solidões sertanejas da
América, e ao norte uma Irlanda em perspectiva: vi a injusta repartição e a
pior aplicação dos tributos e encargos: vi a falta de segurança pessoal e real,
especialmente nos campos, onde o homem é obrigado a confiar só em si e em Deus
para obter: vi um sistema administrativo mau por si e péssimo em relação a
Portugal, com uma hierarquia de funcionários e uma distribuição de funções que
tornam remotas, complicadas, gravosas, e até impossíveis, a administração e a
justiça para as classes populares, e incómodas e espoliadoras para as altas
classes: vi, sobretudo, a falta da vida pública, a concentração do homem na
vida individual e de família, que é ao mesmo tempo causa e efeito da decadência
dos povos que se dizem livres: vi todos esperarem e temerem tudo do governo
central; confiarem nele, como se fosse a Providência; maldizerem-no, como se fosse
o princípio mau: ideias completamente falsas, posto que bem desculpáveis num
país de centralização; ideias que significam uma abdicação tremenda da
consciência de cidadão, e da actividade humana, e que são o sintoma infalível
de que os males públicos procedem, não da vontade deste ou daquele indivíduo,
da índole particular desta ou daquela instituição, mas sim do estado moral da
sociedade e da índole em geral da sua organização.
E isto que vi perspicuamente,
apesar de uma observação transitória, vêem-no todos os dias, palpam-no, e, o
que mais é, padecem-no centenares de homens honestos e inteligentes que vivem
obscuramente por essas vilas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, eles
são vítimas da nossa absurda organização; disso a que por antífrase chamamos
administração e governo. É entre tais homens que os círculos deveriam escolher
os seus representantes; é entre eles que os escolherão por certo no dia em que
compreenderem que o direito eleitoral é uma espada de dois gumes com que os
cidadãos estão armados para se defenderem a si e aos seus filhos, mas com que
também podem assassinar-se e assassiná-los. Foi o que disse a todos aqueles, e
não foram poucos, que durante a minha peregrinação pareceram confiar, se não no
valor das minhas opiniões, ao menos na sinceridade delas. Interrogado acerca do
lenitivo que supunha possível para os males que presenciava, indiquei sempre,
não como remédio definitivo, mas como preparação para ele, como instrumento de
uma reforma futura, a eleição exclusivamente local e os esforços constantes
para obter, contra o interesse das facções, -dos partidos e .dos governos, a
redução dos grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam
servir à restauração da vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública
do país, e de garantia da descentralização administrativa, como a
descentralização administrativa é a garantia da liberdade real.
Fortes tendências para a eleição
da localidade se manifestam já por muitas partes, e os governos e as
parcialidades vêem-se constrangidos a transigir com esse instinto salvador. Se
não me é lícito gloriar-me de ter contribuído para ele se desenvolver, ser-me-á
lícito, ao menos, aplaudi-lo. É o primeiro passo no caminho do verdadeiro
progresso social: cumpre não recuar.
Mas, pensando assim, como poderia
eu, sem desmentir a minha consciência e as minhas palavras; sem trair a
verdade, sem vos trair a vós próprios, aceitar em silêncio o vosso mandato? É
honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e
morrer honrado.
Não haverá no meio de vós um
proprietário, um lavrador, um advogado, um comerciante, qualquer indivíduo,
que, ligado convosco por interesses e padecimentos comuns, tenha pensado na
solução das questões sociais, administrativas e económicas que vos importam; um
homem de cuja probidade e bom juízo o trato de muitos anos vos tenha
certificado? Há, sem dúvida. Porque, pois, não haveis de escolhê-lo para vosso
mandatário?
Os que não vêem como eu nesta
ideia da representação exclusivamente local o primeiro elo de uma cadeia de
transformações, que serão ao mesmo tempo administrativas e políticas, podem,
sem desdouro, não só aceitar, mas até solicitar os vossos votos. Ninguém deve
aferir os seus actos livres senão pelas próprias opiniões, pelas doutrinas que
tem propugnado. Aferir pelas minhas ideias o meu proceder é o que unicamente
faço.
Recusando o vosso favor, nem por
isso vo-lo agradeço menos; e a prova é que vo-lo retribuo com estes conselhos,
que não serão bons, mas que evidentemente são desinteressados. Da confiança que
mostrastes ter em mim deriva o meu direito a dar-vo-los.
Aconselho-vos, como acabais de
ver, uma coisa para a qual os estadistas de profissão olham com supremo
desprezo, a eleição de campanário, só a eleição de campanário, a eleição de
campanário, permiti-me a expressão, até à ferocidade.
Não sei se podereis sofrer o
afrontoso ridículo que anda associado à doutrina que vos inculco. Eu posso. Em
mim este alto esforço é o hábito que resulta de longo trato. A aguda e graciosa
invectiva de deputado de campanário tem cãs veneráveis. Conheço-a há muitos
anos. Além dos Pirinéus andava já em serviço dos ambiciosos, dos oficiais de
política há bem meio século. Os nossos políticos encartados traduziram-na para
seu uso. É que, assim como traduzem leis, traduzem o mais, posto que, se me é
lícito dizê-lo, o façam mal, muito mal, de ordinário.
Indubitavelmente este país
transborda de homens grandes, de profundos estadistas. Aqui o estadista nasce,
como nasce o poeta; precede a escolha: dispensa-a, até. Sou o primeiro a
confessá-lo. E a paixão dos homens grandes, dos profundos estadistas, é a
salvação da pátria: é a sua vocação, o seu destino, a sua suprema felicidade.
Esses varões ilustres pertencem, porém, ao país: é do país que devem ser
deputados. Entendem-no eles assim, e parece-me que entendem bem. Em tal caso,
eleja-os o país. Quando algum vos mendigar de porta em porta, e com o chapéu na
mão, os vossos votos, respondei-lhe, como os eleitores dos diversos círculos do
reino lhe responderiam, se o são juízo fosse uma coisa desmesuradamente vulgar:
«Somos uma pobre gente, que apenas
conhecemos as nossas necessidades, e queremos por mandatário quem também as
conheça e que nelas tenha parte; quem seja verdadeiro intérprete dos nossos
desejos, das nossas esperanças, dos nossos agravos. Se os deputados dos outros
círculos procederem de uma escolha análoga, entendemos que as opiniões
triunfantes no parlamento representarão a satisfação dos desejos, o complemento
das esperanças, a reparação dos agravos da verdadeira maioria nacional sem que
isto obste a que se atenda aos interesses da minoria, que aí se acharão
representados e defendidos como se representa e defende uma causa própria. Na
vulgaridade da nossa inteligência, custa-nos a abandonar as superstições de
nossos pais: cremos ainda na aritmética, e que o país não é senão a soma das localidades.
Homem do absoluto, das vastas concepções, se a vossa abnegação chega ao ponto
de solicitar a deputação do campanário, fazei que vos alejam aqueles que vos
conhecem de perto, que podem apreciar as vossas virtudes, o vosso carácter.
Certamente vós habitais nalguma parte. Se não quereis abater-vos tanto,
arredai-vos da sombra do nosso presbitério, que ofusca o brilho do vosso grande
nome. Sede, como é razão que sejais, deputado do país. Não temos para vos dar
senão um mandato de campanário.»
A resposta dos eleitores aos
estadistas parece-me que deveria ser esta.
A eleição de campanário é o
sintoma e o preâmbulo de uma reacção descentralizadora, é a condição
impreterível da administração do país pelo país, e a administração do país pelo
país é a realização material, palpável, efectiva da liberdade na sua plenitude,
sem anarquia, sem revoluções, de que não vem quase nunca senão mal. Para obter
este resultado, é necessário começar pelo princípio; é necessário que a vida
pública renasça.
Na verdade, a doutrina de que o
excesso de acção administrativa, hoje acumulada, deve derivar em grande parte
do centro para a circunferência repugna aos partidos, e irrita-os. Sei isso, e
sei porquê. Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses,
ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de
probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto,
simplifica-as, e, obtido o poder, a centralização é o grande meio de o
conservarem. Nunca esperem dos partidos essas tendências. Seria o suicídio. Daí
vem a sua incompetência, e nenhuma autoridade do seu voto nesta matéria. É
preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das
cidades, das províncias acabe com o país nominal, inventado nas secretarias,
nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do
funcionalismo que é, e do funcionalismo que quer e que há-de ser.
A centralização tem ido até às
Saturnais. A hierarquia administrativa chegou já, por exemplo, a arrogar-se o
direito de declarar suspensas ou em vigor as leis civis e criminais do reino e
a acção dos tribunais. Lede o artigo 357 ° do Código Administrativo e estudai a
sua jurisprudência, que haveis de ficar edificados. Vede se algum governo, se
algum grande estadista, saído de qualquer parte, propôs a sua revogação. Não o
espereis jamais.
O poder que pela imunidade do
funcionário criminoso, que pelo monopólio na distribuição e todas as funções
retribuídas, que pela monstruosa invenção do contencioso administrativo, que
pelas mais ou menos disfarçadas ditaduras, cuja necessidade ele mesmo cria, que
por mil concessões arrancadas à fraqueza ou à condescendência parlamentar, acha
grandes facilidades para penetrar na esfera dos outros poderes, deve ir longe na
própria esfera. E vai.
Quereis encontrar o governo
central? Do berço à cova encontrai-lo por todas as fases da vossa vida,
raramente para vos proteger, de contínuo para vos incomodar. Nada, a bem dizer,
se move na vida colectiva do povo que não venha dc cima o impulso, ou que pelo
menos o governo se não associe a esse impulso. Entrai, por exemplo, no
presbitério da primeira aldeia que topardes. Vereis aí um homem enchendo a pia
de água benta, apagando ou acendendo as velas, arrumando os ciriais. É o governo
central. O sacristão, exornado com o título pomposo de tesoureiro, e seu
funcionário; é a mão dele estendida até ao gavetão das vestimentas. Essa
personagem tem carta pela secretaria de Estado.
Isto é impossível que, seja
racional, sensato. Essa imensa tutela de milhões de homens por seis ou sete
homens é forçosamente absurda. Deve haver um dia em que a sociedade, como os
indivíduos, chegue à maioridade.
Não receeis que a
descentralização seja a desagregação. O governo central há-de e deve ter sempre
uma acção poderosa na administração pública; há-de e deve cingi-la; mas cumpre
restringir-lhe a esfera dentro de justos limites, e os seus justos limites são
aqueles em que a razão pública e as demonstrações da experiência provarem que a
sua acção é inevitável. O âmbito desta não deve dilatar-se mais.
A centralização, na cópia
portuguesa, como hoje existe e como a sofremos, é o fideicomisso legado pelo
absolutismo aos governos representativos, mas enriquecido, exagerado; é,
desculpai-me a frase, o absolutismo liberal. A diferença está nisto: dantes os
frutos que dá o predomínio da centralização supunha-se colhê-los um homem
chamado rei: hoje colhem-nos seis ou sete homens chamados ministros. Dantes os
cortesãos repartiam entre si esses frutos, e diziam ao rei que tudo era dele e
para ele: hoje os ministros reservam-nos para si ou distribuem-nos pelos que
lhes servem de voz, de braços, de mãos; pelo partido que os defende, e dizem
depois que tudo é do país, pelo país, e para o país. E não mentem. O país de que
falam é o seu país nominal; é a sua clientela, o seu funcionalismo; é o próprio
governo; é a tradução moderna da frase de Luís XIV -l'état c'est moi, menos a
sinceridade.
Não acuso alguém em particular;
descrevo um facto geral; não sirvo, nem combate, nenhum partido: pago-vos com a
franqueza um pouco rude da minha linguagem a vossa benevolência. Se acusasse,
acusava-me também a mim, e talvez a vós. Ninguém está acima das paixões, dos
preconceitos, das fórmulas, da índole da sua época. Nem sequer, e muito é, os
estadistas o estão, se me é concedido avaliar essas altas capacidades. A carne
é fraca. Sejam quais forem as nossas aspirações, as nossas teorias, e, se
quiserem, os nossos sonhos quanto ao futuro, vivemos no presente, e quando não
nos abstemos da política, enfileiramo-nos nos partidos, às vezes, até, sem o
querermos, sem o sabermos. Como tive a honra de vos fazer notar, a questão da
liberdade na sua plenitude e na sua existência real está fora ou, antes, acima
dos partidos. Se, conforme creio, a eleição na qual quisestes que eu tivesse
uma parte honorífica manifesta as vossas propensões para manter o ministério
actual, não se deduz do que vos digo a necessidade de mostrar propensões
contrárias. Por ora não se trata senão de adoptar um princípio, uma regra,
cujas consequências verdadeiramente importantes virão mais tarde. Não importa,
em relação a essas consequências, que escolhais neste ou naquele partido: o que
importa é que escolhais de entre vós; o que importa é que os círculos rurais
não obriguem algum homem grande a consumir dez minutos em procurar no mapa do
reino a situação relativa do distrito que representa, e muitas horas em
soletrar os nomes romanos, góticos, mouriscos, bárbaros, que nesse mapa
designam rios, montes, lugarejos, aldeias, freguesias, concelhos, em que nunca
ouviu falar. Pelos recostos das vossas pitorescas montanhas, pelos vossos vales
frondosos, pelas quintas e granjas mais remotas, no campo ou nas povoações,
deve habitar algum amigo do ministério que mereça os vossos votos. Dai-lhos, se
entendeis que os homens que estão no poder são menos maus do que os seus
adversários.
Não me consentindo a brevidade do
tempo e a urgência de outras ocupações expor-vos todos os motivos por que dou
tanta importância à doutrina eleitoral que submeto à vossa consideração, não
tenho direito a insistir em que a sigais com a inabalável firmeza com que
intimamente creio que a deveríeis seguir. Nessa hipótese, se vos apresentarem
candidaturas de indivíduos estranhos ao vosso círculo, cujo carácter não
possais avaliar por vós mesmos, consenti em que vos lembre um arbítrio para não
serdes ludibriados. Consultai aqueles que pessoalmente os conhecerem, mas só
aqueles que, pagando tributos, e não desfrutando-os, viverem no meio de vós, há
longos anos, do produto do seu trabalho ou da sua propriedade, e que gozarem de
sólida reputação de inteligência e de probidade. Como homens de bem, e como
tendo interesses análogos aos vossos e confundidos com os vossos, eles não
podem enganar-vos. Escolhei o que eles escolherem; rejeitai o que eles
rejeitarem. Vença qual partido vencer, tereis ao menos um procurador honesto;
porque todos os partidos têm no seu seio gente honrada. Escusado é dizer-vos o
que haveis de ganhar.
Depois, quando alguém, que
acidentalmente se ache no meio de vós, sem casa, sem bens, sem família, sem
indústria destinada a aumentar com vantagem própria a riqueza comum, e só
porque o seu talher na mesa do tributo ficou posto para esse lado, se mostrar
.demasiado solícito em nobilitar o vosso voto pela escolha de algum célebre
estadista, em que talvez nunca ouvistes falar, ou em livrar-vos de elegerdes
algum mau cidadão, cujas malfeitorias escutais da sua boca pela primeira vez,
voltai-lhe as costas. Padre, militar, magistrado, funcionário civil, seja quem
for, esse homem que tanto se agita, aflito pela vossa honra eleitoral, pelos
vossos acertos ou desacertos políticos, pode ser um partidário ardente e
desinteressado; mas é mais provável que seja um hipócrita, um miserável, que já
tenha na algibeira o preço do vosso ludíbrio, ou que, por serviços abjectos,
espere obter, ou dos que são governo, ou dos que querem fazer o imenso
sacrifício de o serem, a realização de ambições que a consciência lhe não
legitima, e acerca das quais só podeis saber uma coisa: é que as haveis de
pagar.
Permiti-me, senhores eleitores,
que termine esta carta, já demasiado extensa, reiterando-vos os protestos da
minha gratidão pela vossa bondade para comigo, e assegurando-os que, se me
falece ambição para aceitar os vossos votos contradizendo as minhas opiniões,
sobeja-me avareza para buscar não perder jamais um ceitil da vossa estima.
in, "O Portal da História"
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