António Cândido Ribeiro da Costa (1852-1922) foi um dos militantes mais fervorosos do Partido Progressista. O discurso tem como espinha dorsal a transição do absolutismo para o liberalismo, ou seja, a passagem da moral política que cabia às disposições da coroa para um regime de mais liberdades políticas, onde a moral cabia a uma massa mais vasta da Nação, logo, devendo ser mais consciente, alertando que todos os que antecederam a sua geração foram ou agentes ou testemunhas de uma transição que os fascinou, fazendo crer que a felicidade dos povos resultaria como que, por encanto, pelo primado das leis, para num dado passo concluir não há vida feliz, individual ou colectiva, sem ideal; é neste éter das almas, neste divino ambiente, que se formam e movem o amor, a fé, a abnegação, o entusiasmo pelo bem, a dedicação tenaz, a lealdade completa, todos os brandos sentimentos que constituem a nobreza da nossa espécie, e nunca foi possível apertar e conter nas fórmulas estreitas do egoísmo animal... terminado este ponto, afirmando que a religião ao servir de cimento aglutinador de que se fazem os melhores ideais, foi, e é, o supremo idealismo dos povos.
Bem diferente do que acontece hoje - entre nós - onde a religião é, apenas, consentida, sem ser,verdadeiramente o tal cimento de que falo este ilustre orador.
Sinal dos tempos...
DISCURSO DE ANTÓNIO CÂNDIDO,
PRONUNCIADO
NO ATENEU COMERCIAL DO PORTO
Conferência Recitada no Ateneu
Comercial do Porto na noite de 29 de Agosto de 1887 sobre a Moral Política
O discurso de António Cândido é
mais um dos momentos de apresentação do programa da «Vida Nova», apresentado
por ele próprio num discurso proferido na Câmara dos Deputados em 17 de
Fevereiro de 1880, desenvolvido depois por Oliveira Martins, em 1884, no interior
do Partido Progressista. É lido numa época em que António Cândido já tinha
afirmado aceitar uma solução ditatorial provisória para resolver a questão
política portuguesa. É que, como o próprio explicava no final do discurso, o sistema político português tal
qual estava, preparava-se para ir ao fundo na primeira borrasca. De facto não
foi, tendo sobrevivido em 1891 à revolução
republicana do Porto, devido à acção do próprio orador, ministro do
Reino - do Interior - na altura, mas acabará por desaparecer em 1910, após a
mal sucedida tentativa de governo ditatorial de João Franco.
«O mal de que padece a sociedade
política portuguesa não é dos que podem ser curados por meio de reformas
engenhosas.»
Meus Senhores,
O ilustre presidente do Ateneu
apresentou-me a esta assembleia com tão encarecidas palavras de simpatia e de
louvor que eu não posso deixar de pôr aqui, em primeiro lugar, a expressão do
meu mais extremado reconhecimento pela sua bondade e pela sua gentileza.
Não valho o que as suas nobres
palavras dizem. A mais de meio caminho da vida, não pratiquei ainda um acto que
fosse útil aos outros. A ciência não me deve uma verdade; a arte conta-me entre
os que a amam, não entre os que a professam. Pouco maleável, mas sem a têmpera
dos que podem e sabem lutar, nem vou na corrente geral, nem consigo opor-me a
ela eficazmente! E nesta consciência do que sou, até penso ás vezes que melhor
fora não ter nascido...
É grande superioridade não querer
enganar-me?! É coragem heróica dizer o que todos sentem?! Não tenho outro
talento; não exercito outra virtude.
Mas fico muito contente com as
palavras que me foram consagradas. Se não exaltam o meu orgulho, consolam a
vaidade do meu coração; irá guardá-las por isso a minha memória, que é fiel.
E, cumprido este dever de
gratidão e de sinceridade, proponho-vos já, meus senhores, o assunto da minha
conferência. É a Moral na Política. Poderia eleger outro, mais fácil, mais
ameno, mais aberto às iluminações do sentimento, sempre gratas ao espírito
peninsular; entendi, porém, que era este o mais útil e oportuno emprego da
minha palavra. Se quisesse apenas entreter-vos, ser agradável à sensibilidade
estética do vosso espírito, sei bem o que havia de fazer... Mas há tempo para
tudo, meus senhores; e, se me não engano, soou a hora de meditarmos seriamente
sobre as graves condições actuais da nossa vida social e política.
Não trago aqui a vestidura
estreita dum partido, nem a só inspiração da história interna do nosso país;
habituei-me a ver, em questões desta ordem, a nação por sobre os partidos e a
civilização por cima dos Estados. O que não quer dizer que me não impressione
principalmente com o que se passa em volta de mim, ou que perca de vista os
interesses da pátria, que eu, com o meu coração ordinariamente triste, não amo
menos do que outros com o seu alegre entusiasmo, optimista e feliz ...
Poderei apenas esboçar as linhas
e os contornos de assunto tão complexo, tão profundo, tão difícil e melindroso
como observação actual, quase impossível de resolver como problema
sociológico... Mas fragmentos de verdade são verdades; e no Porto, como em solo
feracíssimo, as boas sementes germinam sempre.
* * *
Antes do estabelecimento do
regime liberal, o problema da moral politica era extremamente simples. A
multidão obedecia a um senhor, que possuía e exercitava todos os direitos. A
submissão e a lealdade eram portanto as únicas virtudes necessárias aos povos.
Estas virtudes, de grande
simplicidade, assumiram, por vezes, uma forma soberanamente bela. A passividade
do coração tem os seus poemas; a escravidão voluntária pode ser heróica. Mas,
para o maior número de vontades, o dever de se submeter e conservar-se leal não
custava muito... Toda a intensidade moral estava do lado dos imperantes; e
estes, impostos à obediência dos povos por sinais do céu - mediante o voo das
aves, como no monte Capitolino, ou mediante uma sagração pontifícia, como nas
velhas catedrais - encontravam sempre meio de fazer coincidir, na consciência,
o dever com o seu interesse. As responsabilidades, como eram só perante Deus,
não lhes embaraçavam grandemente o pensamento nem a acção.
É certo que se procurava formar,
na melhor educação moral, o ânimo e a vontade dos príncipes. Na remota
antiguidade vê-se Aristóteles ao lado de Alexandre, e Séneca ao pé de Nero; em
séculos mas próximos, nunca deixou de haver preceptores eméritos ao lado dos
que tinham a herdar o ceptro e a coroa.
É também certo que se empregavam
todos os meios para radicar nos povos o respeito e a veneração mais rendida
pelos poderes do Estado, e que a religião e a política dispunham, para esse
fim, de recursos numerosos e valentes. Mas a complicação desses meios nascia
doutra causa, que não das dificuldades teóricas da doutrina consagrada. Se na
consciência havia a fé e se no Estado havia a força, exercia-se o governo sem
embaraços, o rei fazia a felicidade do seu povo, e, para além do universo
visível, Deus inspirava sempre o melhor...
Tudo isto mudou inteiramente em
menos de cem anos. Cada homem foi levantado a cidadão; cada cidadão teve a sua
parte na governação do Estado. E daí resultou que todo o homem, além da sua
moral como individuo, como membro de urna família e como fiel de uma comunhão
religiosa, precisou da moral própria da sua nova situação, da moral política,
que é melindrosíssima e de uma dificuldade enorme.
Aonde havia de procurá-la? De
onde havia de vir-lhe? Não a tinha o Cristianismo, que educou admiravelmente,
sob outros aspectos, a melhor parte do género humano.
É evidente que, nos seus
princípios, se encontram alguns fundamentos de toda a virtude politica; é
inegável que a purificação das almas, que ele recomenda, prepara e facilita
toda a acção exterior. Mas, considerando a vida como transição fugaz para fins
sobrenaturais, como provação, dolorosa e sombria, dum destino que vai todo para
a eternidade o Cristianismo não tinha, não podia ter, normas prefixas para a
existência militante, activíssima, que é a própria essência da liberdade. Leiam
o sermão da montanha e a Imitação de Cristo. O espiritualismo mais extremo
absorve aí todas as potências da alma e da vida. Segundo Jesus, a actividade
exterior do homem só deve ser tanta como a das aves do céu e como a dos lírios
do monte; segundo Gerson, que repete o Eclesiastes, a suma sabedoria consiste
em nos endereçarmos, pelo desprezo do mundo, aos reinos celestes...
Quero eu dizer que o sentimento
religioso seja indiferente, inútil, para a liberdade? Não. Não há vida feliz,
individual ou colectiva, sem ideal; é neste éter das almas, neste divino
ambiente, que se formam e movem o amor, a fé, a abnegação, o entusiasmo pelo
bem, a dedicação tenaz, a lealdade completa, todos os brandos sentimentos que
constituem a nobreza da nossa espécie, e nunca foi possível apertar e conter
nas fórmulas estreitas do egoísmo animal... E a religião foi, e é, o supremo
idealismo dos povos.
Como prova de que se constrói
solidamente na política, quando a religião serve de cimento, citar-vos-ei
apenas, meus senhores, a fundação e a prosperidade dos Estados Unidos,
impossíveis sem o espírito fervoroso dos puritanos, e a emancipação da Holanda,
que Marnix e Guilherme de Orange não teriam realizado sem a fé profunda dos
gueux.
* * *
Um dos mais belos períodos da
história humana foi aquele em que se inaugurou a transição dramática do antigo
sistema para o actual regime da liberdade. É ainda recente. Os nossos pais
foram agentes ou testemunhas dessa transição. O que fascinou, encantou os povos
foi a ilusão imensa – formosíssima ilusão! - que fez crer que a felicidade social
podia resultar, imediata e perfeita, da simples acção das leis! Certas palavras
tiveram então o maior prestígio que pode haver nos sons articulados da nossa
língua. A poesia lírica, esta adorável faculdade que conserva sempre no género
humano, ainda nas velhas idades, a sua antiga alma infantil e moça; a poesia
lírica tomou para si, como assunto, a emancipação da liberdade humana, e
cantou-a fervorosamente.
A himnologia da revolução liberal
em todos os povos é um capítulo interessante, curiosíssimo, que está por
escrever. Vós ainda ouvistes o que se cantava, dentro dos muros desta cidade,
nos memoráveis dias do cerco...
Mas não foi somente no coração
popular, naturalmente ingénuo, que o entusiasmo pela aparência das coisas
chegou ao sublime desvairamento em que é possível a germinação conjunta da
poesia e do heroísmo. Os primeiros efeitos da mutação política perturbaram e
iludiram até os melhores espíritos. Pensou-se, escreveu-se que a liberdade era
escola de si própria e um curso permanente de moral política! Stuart Mill, que
morreu há poucos anos, Laveleye, que vive ainda, tiveram esta convicção, e
sustentaram-na vigorosa mente...
Não era, não podia ser. E não
tardou que a esperança caísse, desfeita... A alma dos povos, como a alma dos
indivíduos, agitada e sacudida por uma comoção violenta; transfigura-se,
ilumina-se, sente em si um deus interior, vê intuitivamente mil coisas que eram
obscuras... Depois a vibração acaba, o entusiasmo arrefece, as coisas entram no
seu curso normal, irregular e lento... e vê-se então que em matéria de costumes
não se edifica levemente, não se edifica depressa.
A demonstração disto é fácil, mas
dolorosa: dolorosa para a minha sensibilidade, que tem o grave defeito de se
retrair ante o conspecto das inferioridades humanas e de sofrer profundamente
com a inanidade e tristeza de muitas coisas... Afirma-se, por isto, que sou
pessimista! Não é exacto. Os pessimistas têm a voluptuosidade do mal, que eu
nunca senti. Creio que a História é uma grande edificação moral, e daí resulta
a minha fé profunda no Bem. Do homem de hoje e de sempre sei dizer que me
merece admiração e piedade, os dois sentimentos ao mesmo tempo, por que ele não
é ange nem bête, segundo o belo pensamento de Pascal.
* * *
Os povos modernos não têm a verdadeira
compreensão do Estado, meus senhores. Não é a da Grécia e de Roma, como insinua
a educação clássica; também não é como a formula e propõe uma certa escola
mística. É menos intensa do que aquela; é mais positiva e complicada do que
esta.
Em vez de criado e imposto por um
poder estranho, o Estado resulta duma lei imanente nos agrupamentos sociais; em
vez de ser um acidente no destino humano, de muito secundária importância, ele
é esta instituição orgânica, complexa, multiforme, quase omnipotente, que nos
envolve por todos os lados, que toma conta de nós antes de nascermos e nem à
beira da sepultura nos deixa, que influi na nossa liberdade, que actua na nossa
consciência, que tem a seu cargo defender-nos a propriedade e a vida, que, como
um grande navio no imenso mar do tempo, nos leva inteiramente para o futuro,
com boa ou má fortuna.
Se isto fosse entendido assim, os
interesses do Estado andariam, como andam, pospostos na consciência pública,
com infinita distância, aos interesses individuais e aos interesses
familiares?!
Desta justa compreensão do Estado
resulta que a intervenção na política, intervenção de boa fé, não é mera
faculdade que possa exercer-se ou não, como se queira, sem desastradas
consequências. É uma faculdade segundo a lei, mas é um dever segundo a
consciência. Quem o julga assim?!
A justiça e a utilidade geral
reclamam que os mais dignos tenham a preeminência das honras e o comando
efectivo das sociedades. O Corão diz num versículo, que vi citado não sei por
quem: - O governo que nomeia um homem para um emprego, havendo nos seus estados
outro homem melhor, peca contra o Estado e contra Deus. Quem se impressiona já,
neste nosso mundo de Cristo, com a exaltação, predisposta ou improvisada, de
tantos que têm apenas, na sede do talento, a habilidade da intriga, e no lugar
do coração... um espaço vazio?!
Distingue-se, e convictamente,
entre dignidade pessoal e dignidade política! Pode esta escorrer sangue, ferida
pela justiça mais evidente, que isso não impede a outra de se ostentar e impor
eficazmente, com o mais exagerado melindre. Como se a honra não fosse
indivisível e simples! Como se na consciência moral pudesse haver soluções de
continuidade...
Não há nada mais melindroso do
que a reputação do homem de Estado. E com toda a razão. Eu sei que não pode
provar-se uma acusação de improbidade pessoal contra qualquer dos homens
eminentes, que superintendem nas coisas públicas da Europa; mas tenho pensado
muitas vezes com tristeza que sendo honrados, como quero acreditar, nem sempre
se preocupam muito de o parecer!
A política económica foi uma das
mais belas inspirações do nosso tempo. Meter todos os interesses da grande
multidão numa fórmula constituída, em partes iguais, de justiça e de
sentimento, é um ideal soberbo! Mas as grandes ideias precisam de grandes
homens; e, em vez disso, é a política de negócios, sem intenção e sem alcance,
a que está de cima neste momento! A finança egoísta, exploradora, insaciável,
triunfa em toda a linha. Na tribuna não ressoam já as grandes palavras que
apaixonaram e comoveram a geração que nos precedeu; as vozes que mais valem são
as que retinem, como metais, no cálculo de operações fabulosas... A França
esperava ainda há pouco, ansiosamente, o anunciado discurso do seu
primeiro-ministro. Disse muitas coisas úteis... Mas procura-se em vão, naquela
multidão de palavras, um pensamento, uma frase que tenha podido consolar a
velha alma gaulesa, tão generosamente idealista! Ora assim como a extinção do
fogo sagrado, que ardia perenemente em cada altar doméstico, na Grécia em Roma,
pressagiava uma desgraça irremediável - eu não considero de bom agouro este
descendimento rápido do coração e do espírito, esta feição pequeninamente
industrial que a política assume, e com que tenta e seduz o maior número...
Não continuo... É destes
elementos, e de outros semelhantes, que se forma a opinião, isto é, a moral
dominante. E a opinião é, para as almas, como o ar atmosférico para os corpos.
Vivifica ou mata. Depende isso da sua composição.
* * *
Tem-se procurado remediar este
mal, universalmente sentido, aperfeiçoando de dia para dia, de hora para hora,
as leis políticas e administrativas, na ingénua suposição de que elas formam os
costumes; e é positivamente assombroso o que se tem feito neste sentido! Nas
escolas e nos partidos não se trabalha noutra coisa há meio século... O que a
razão tirou de si mesma! O que a fantasia pode tecer no seu tear de marfim!
Tomemos um exemplo; e seja o mais
fácil.
A política moderna é
essencialmente, indestructivelmente representativa; a representação da vontade
popular no governo realiza-se por meio do voto. A respeito da natureza, da
extensão e da forma do voto quem poderá aí repetir o que se tem ideado e o que
se tem experimentado?!
Há a teoria do voto como direito
natural, de todos, e a que o restringe à capacidade social de cada um. A
primeira teoria abrange os que entendem que só o homem pode e sabe intervir no
governo das sociedades, e os que sustentam que também as mulheres devem trazer
à política a contribuição da sua encantadora psicologia; a segunda tem a escola
dos que põem a capacidade eleitoral na instrução mais ou menos complexa, e a
dos que a assentam unicamente no censo da propriedade. Temos o sufrágio
directo, o sufrágio em dois graus, e ainda em três e em quatro. Há a lista dum
só nome e a lista de muitos nomes. Há o sistema da simples representação das
maiorias e o que também dá às minorias a sua representação proporcional: este
conta, pelo menos, doze processos diferentes, quase todos experimentados na
Europa e na América. Sobre o modo de garantir o genuíno recenseamento dos
eleitores e o apuramento definitivo das eleições, já não há que fazer! Depois
de se esgotar tudo o que a administração graciosa e contenciosa podia produzir,
recorreu-se ao poder judicial para que aplicasse a esses factos a apertada
forma dos julgamentos civis e criminais...
E que se conseguiu com tudo isto?
Em que melhoraram os costumes públicos com tanta perfeição jurídica nas leis da
liberdade eleitoral? A boca da urna começou, por ventura, a ser a boca da
verdade!
Pelo que se passa no nosso país,
podemos responder a estas perguntas com inteiro conhecimento de causa.
Nós temos a melhor lei eleitoral
do mundo; as da constitucional Inglaterra e da França republicana ficam a
grande distância da nossa. As doutrinas dos melhores publicistas foram aqui
legisladas mal apareceram nos livros; e, o que é singular, tudo se fez com a
mais, edificante unanimidade dos homens públicos e dos partidos! Até para a
última demão nesta obra houve acordo expresso e amorável nos que eram, na
véspera, inimigos jurados e truculentos... E tudo ficou como era antes, se não
ficou pior.
A abstenção eleitoral é cada vez
mais importante pelo número e pela qualidade dos que se abstêm. Os costumes
públicos descem, baixam a olhos vistos. O desalento e a indiferença invadem e
vencem quase toda a gente...
Não se debela uma doença
combatendo apenas os seus sintomas. O mal de que padece a sociedade política
portuguesa, de que padece toda a civilização política actual, não é dos que
podem ser curados por meio de reformas engenhosas, preparadas nas secretarias
de estado, e caldeadas depois na verbosidade parlamentar. Com a nossa Carta de
1826, com a primeira lei eleitoral que tivemos, com o Código Administrativo de
1842, poderíamos nós ser, politicamente, o povo mais feliz da Europa; como a
França o poderia ser com a Carta de Luís XVIII; como o é a Alemanha com o
império quase absoluto e com a sua chancelaria de ferro.
É preciso refazer o homem
interior, desmoralizado pela lição contraditória dos livros e dos factos, pela
desastrosa influição da doutrina quase sempre falsa e dos exemplos
terrivelmente contagiosos; é urgente restabelecer a justiça, a eterna justiça
simples e eficaz, nos sentimentos da opinião e nos factos do poder. Sem isto a
teoria é vã e a prática é mortal.
O parlamento deveria servir para
o julgamento efectivo dos homens e dos seus actos; mas, para isso, seria
preciso que se sentisse ali a opinião pública – que o parlamento não fosse ou
não parecesse, pela solidão em que está, uma como tenda isolada no meio isolada
no meio de um deserto...
A tribuna antiga prestava para
este fim; lá a politica e a Justiça andaram sempre intimamente ligadas. Mas
quem se lembrou já de transformar a tribuna moderna em lugar de acusação
directa dos que prevaricam contra o Estado?... A indignação dos acusados, o
interesse dos seus cúmplices e a cobardia dos outros esmagariam o que se
atrevesse a tanto; e passava-se logo à ordem do dia, que bem poderia ser a nova
importante divisão dum círculo sertanejo nas suas assembleias eleitorais... Desde
que, nas câmaras, é impossível ou perigoso julgar os homens sob o restrito
aspecto da sua dignidade pessoal, que impressão vos faz a paixão política,
furiosa e atroadora, manifestada nas pequeninas coisas que lá se discutem?! A
minha... nem a quero dizer!
* * *
A civilização política dos nossos
dias tem esta sombra espessa; e quando a contemplo, abstraindo do que me cerca,
de tantas virtudes do nosso tempo, que são evidentes, do imenso progresso que
se tem realizado em tantas coisas, chego a sentir a poesia do passado, numa
espécie de impressão nostálgica... Mas esta ilusão da minha alma dura pouco, e
atribuo logo à imaginação o lugar que lhe pertence. Nunca houve tanta bondade
no mundo, e a bondade é a lei suprema da vida. Existem no coração dos povos inefáveis
correntes de simpatia social; o que falta apenas é a unidade, ideal e tangível
que as reúna e represente a todas. Nunca se soube tanto! Consola, faz bem
pensar que, a esta hora, milhares de fantasias, enamoradas da arte, se embebem
no azul da inspiração estética, e milhares de cérebros arrancam tenazmente, aos
problemas mais cerrados, os máximos segredos da vida; e que a ciência positiva,
como uma coluna de diamante, cresce, sobe de dia para dia... Quem desadora o
sol porque tem manchas?! Como há-de negar-se a civilização porque tem sombras?!
Se a minha atenção recai principalmente sobre uma delas, é porque é a maior de
todas, e a que posso contemplar mais vezes e mais de perto.
O absolutismo não pôde educar-nos
para a liberdade; o Cristianismo, preparando as almas para a receberem, não a
organiza, não a disciplina; é insensato dizer-se que a democracia é escola de
si própria; ninguém espera, que desçam da montanha, entre relâmpagos e trovões,
as tábuas de uma nova lei; está por aparecer, pela primeira vez, a escola de
filosofia de que a verdade irrompa, em leito largo e profundo, como um grande
rio fecundante de toda a humana consciência!
Havemos, por isso, de descrer de
nós? Havemos de desesperar do futuro? Não. A Humanidade tem sempre em si um grande
reservatório de forças, de que nem sequer se suspeita nas quadras menos
expressivas da sua existência; e há um sentido profundo e completo nestas
palavras escritas por alguém: A História tem dias tristes, mas não tem dias
estéreis, destituídos de interesse.
É certo que o nível moral da
política tem bailado. É um grave mal, mas não é um mal irremediável. Cumpram o
seu dever os que o conhecem. Podem poucos salvar a muitos. Há contágio no mal,
mas há simpatia no bem. Esta fase, tão mórbida, tão desalentadora, há-de
passar, cedendo, a outra melhor. Como?... Quando?... Ainda, no nosso tempo?...
Não sei. Mas uma das mais belas faculdades da organização humana é a de sentir
e praticar o dever, sem a visão directa do seu fim útil.
A nossa educação, a educação de
todo o mundo ocidental, é essencialmente revolucionária. As épocas da nossa
história foram sempre assinaladas por movimentos bruscos, por transições,
violentas e rápidas, dum para outro estado religioso, político e civil. Isto
faz que nós sucumbamos, abatidos e descoroçoados, diante de qualquer grande
dificuldade, e fiquemos depois, esterilmente, à espera duma revolução que nos
impulsione ou dum Messias que nos salve.
Não é bom. O espírito positivo do
nosso tempo é cada vez mais incompatível com esses processos, só possíveis
noutra compreensão do mundo, metafísica ou mística...
A política forma, entre nós e lá
fora uma classe. Em vez de ser a natureza social de todo o homem, é a profissão
de alguns. Profissão e indústria quase sempre... Em geral vão para aí os que
têm a ganhar, e não os que têm que perder. Erro gravíssimo! O ganho duns é pura
perda dos outros... Se a maioria da nossa sociedade se resolver a intervir nas
coisas públicas, e levar para lá as virtudes que ainda tem, já o mal, de que
nos queixamos todos, ficará atenuado, diminuído. Deve intervir. Além de tudo o
mais, é uma alta obrigação de patriotismo; a história de todos os tempos ensina
que a independência dos pequenos povos depende essencialmente do seu regime
interno.
Li há pouco um livro de Jules
Simon. Destina-se, em grande parte, a combater a apatia moral, a abstenção
sistemática dos conservadores franceses; e o que ele diz é, em muito ponto,
aplicável a nós.
Escreve palavras de ouro o velho
publicista, que é hoje, incontestadamente, uma das mais belas figuras do mundo.
Céptico em mil pequenas coisas,
como quem já mede um largo estádio de observação pessoal no período mais
inconsistente que ainda houve, mas fiel à Liberdade e à Pátria, que tem amado
sempre; com este acre pessimismo, que é inevitável, que se exala de tudo, mas
com uma grande bondade, natural e calma, que é do seu temperamento, e também do
génio literário em que o seu vasto espírito se educou - Júlio Simon é um dos
maiores mestres da nossa raça neste século, e eu amo a sua autoridade como
segurança de acerto e justiça nas minhas opiniões
Combatendo a atitude expectante
dos conservadores franceses, ele refere um velho apólogo de Platão, que não
resisto a resumir aqui. É a moralidade e o remate de tudo o que disse.
Navegava uma barca pelo mar. Os
marinheiros mataram o capitão, e deitaram-no às ondas; depois guerrearam entre
si, desesperadamente, disputando o leme. Os passageiros, que eram pessoas
gradas e ricas, sentados comodamente, riam daquela fúria insana, e contemplavam
com imenso gosto a sua própria sabedoria... Ninguém notara ainda o, estado do
Céu.
De repente, levanta-se o vento,
encrespa-se o mar, desencadeia-se uma temerosa tempestade, e a barca, com todos
que estavam dentro, vai para o fundo...
* * *
Vindo aqui, ao seio do Ateneu
Comercial do Porto, tão admirável por tudo, dizer sinceramente o que me
preocupa neste momento, eu quis, meus senhores ao contrário do que sucede no
apólogo de Platão - chamar a atenção dalguns espíritos para o estado do céu. Poderá
duvidar-se de que haja sério motivo de receio; mas também não consta de
naufrágio determinado por excesso de prudência...
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