Porque é uma peça notável do campo da eclesiologia e da literatura humanista a que o Papa Francisco nos habitou e nesta asserção cabem todos os crentes e, os que o não sendo, reconhecem neste Papa uma reserva essencial da moral e do respeito do homem pelo homem - que é universal pela grandeza que o Papa lhe imprime - "ipsis-verbis" e com a devida vénia se transcreve na integra o texto que no passado dia 8 de Dezembro escreveu para celebrar o XLVIII Dia Mundial da Paz do próximo dia 1 de Janeiro de 2015.
Fica aqui, como lembrança próxima e futura.
Fica aqui, como algo que deve ser lido, meditado e, sobretudo, ser seguido, que foi para isso que o Papa escreveu esta elevada Mensagem subordinado ao expressivo título:
Fica aqui, como lembrança próxima e futura.
Fica aqui, como algo que deve ser lido, meditado e, sobretudo, ser seguido, que foi para isso que o Papa escreveu esta elevada Mensagem subordinado ao expressivo título:
JÁ NÃO
ESCRAVOS, MAS IRMÃOS
1. No início de um novo ano, que
acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a
cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de
Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes
votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras,
os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer
por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades
naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum
de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da
concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos
de forma não digna da nossa humanidade.
Já, na minha mensagem para o 1º
de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio de uma vida plena (…) contém uma
aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em
quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e
abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no
contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é
fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a
sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da
exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a
tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade.
Tal fenômeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do
outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre
as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus,
possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».
À escuta do projeto de Deus para
a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta
mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filemon; nela, o Apóstolo pede ao
seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filemon
mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser
considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por
breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito
mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão,
Onésimo passou a ser irmão de Filemon. Deste modo, a conversão a Cristo, o
início de uma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2
Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da
vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Gênesis (cf.
1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para
que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no
cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a
primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel
são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais,
criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem
ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a
fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre
eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por
natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria
especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em
virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a
construção da família humana criada por Deus.
Infelizmente, entre a primeira
criação narrada no livro do Gênesis e o novo nascimento em Cristo – que torna,
os crentes, irmãos e irmãs do «primogênito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –,
existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa
fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos
irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão
Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato
de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser
irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a
que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]
Também na história da família de
Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Caim para com seu
pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os
outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos
nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da
família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão
torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão
(cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de
geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da
dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades.
Daqui se vê a necessidade de uma conversão contínua à Aliança levada à
perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o
pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho
amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo
aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para
Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adotivo de
seu Pai (cf. Ef 1, 5).
No entanto, os seres humanos não
se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto
é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a
Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da
conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um
o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados;
recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (Act 2, 38). Todos aqueles que
responderam com a fé e a vida àquela pregação de Pedro, entraram na
fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; Act 1, 15.16; 6,
3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3,
28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada
um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar
da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13,
1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova
de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3]
– é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação
entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em
comum: a filiação adotiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio
Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo
não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).
As múltiplas faces da
escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as
diferentes sociedades humanas conhecem o fenômeno da sujeição do homem pelo
homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da
escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este
estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como
as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou
recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas
podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia
dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e
adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência de uma
evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa
humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não
ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito
internacional, como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade
internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em
todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este
fenômeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas
as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições
semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e
trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível
formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da
indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do
trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como –
ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de
vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a
fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e
sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois de uma
viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam detidos em
condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias
sociais, políticas e econômicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles
que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições
indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma
dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho
como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de
trabalho… Sim! Penso no «trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a
prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e
escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas
para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do
marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.
Não posso deixar de pensar a
quantos, menores e adultos, são objeto de tráfico e comercialização para
remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes,
para atividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas
disfarçadas de adoção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles
que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os
seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas
e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são
vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.
Algumas causas profundas da
escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da
escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de
a tratar como um objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta
do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres
de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos
como objetos. Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa
humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade,
mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não
como fim.
Juntamente com esta causa
ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que
concorrem para se explicar as formas atuais de escravatura. Entre elas, penso
em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão,
especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com
uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes,
oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são
pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e,
dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes
criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam
habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e
adolescentes de todos os cantos do mundo.
Entre as causas da escravatura,
deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão
dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das pessoas humanas
requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos
intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros atores do
Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando,
no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro, e não o homem, a
pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico, deve estar a
pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a
pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]
Outras causas da escravidão são
os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há
inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou
exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando
tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas
últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo
à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar
naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas
consequências perniciosas.
Um compromisso comum para vencer
a escravatura
5. Quando se observa o fenômeno
do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces
conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a
impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.
Sem negar que isto seja,
infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que
muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam
silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos atuam em
contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as
cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e
exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos
psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de
chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de
meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência
física. A atividade das congregações religiosas está articulada a três níveis
principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e
formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer
coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da
sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo
da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível
institucional: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os
responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes
globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este
fenômeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes
atores que compõem a sociedade.
Os Estados deveriam vigiar para
que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as
adoções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos
por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da
dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana,
que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem
reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são
necessários também mecanismos eficazes de controle da correta aplicação de tais
normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que
seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano
cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações
intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade,
a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do
crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos
migrantes. Torna-se necessária uma cooperação em vários níveis, que englobe as
instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade
civil e do mundo empresarial.
Com efeito, as empresas[6] têm o
dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e
salários adequados, mas também de vigiar para que não tenham lugar, nas cadeias
de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da
responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do
consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é
sempre um ato moral, para além de econômico».[7]
As organizações da sociedade
civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências
sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé,
acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações
religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à
comunidade internacional pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e
cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns
encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenômeno do tráfico de
pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes atores, incluindo peritos
do mundo acadêmico e das organizações internacionais, forças da polícia dos
diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes
dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este
empenho continue e se reforce nos próximos anos.
Globalizar a fraternidade, não a
escravidão nem a indiferença
6. Na sua atividade de
«proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa
de se empenhar em ações de carácter caritativo guiada pela verdade sobre o
homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar
os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e uma
irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na
liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária
da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a
patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de
dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na
consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e
fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje
testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e
pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no
corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo
convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares,
a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de
servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos
interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas
que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de
comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da
exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque
distraídos com as preocupações diárias, ou por razões econômicas, fecham os
olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo,
comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia
pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom
dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos
custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que
tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.
Temos de reconhecer que estamos
perante um fenômeno mundial que excede as competências de uma única comunidade
ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às
do próprio fenômeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens
e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das
instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão
contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar
à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de
liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de
Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a
quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).
Sabemos que Deus perguntará a
cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da
indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos,
requer de todos nós que nos façamos artífices de uma globalização da
solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los
a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as
novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
FRANCISCUS
[1] N. 1.
[2] Mensagem para o Dia Mundial
da Paz 2014, 2.
[3] Cf. Exort. ap. Evangelii
gaudium, 11.
[4] Cf. Discurso à Delegação
internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014):
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/X/2014), 9.
[5] Discurso aos participantes no
Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014):
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9.
[6] Cf. Pontifício Conselho
«Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e
Roma, 2013).
[7] Bento XVI, Carta enc. Caritas
in veritate, 66.
[8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy
Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da
103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7.
[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas
in veritate, 5.
[10] «Mediante o conhecimento
desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre
filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos
Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança
porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3).
[11] Discurso aos participantes
na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law
Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270.
[12] Cf. Exort. ap. Evangelii
gaudium, 24; 270.
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