Andava há semanas uma grande azáfama
em casa do ramo mais rico do clã dos Godofredos, cujo nome oriundo de uma
linhagem antiga, lembrava tempos de outros Natais sem o aparato mundano que
agora se vivia e sentia, pela mudança bem longe da velha chama espiritual
daquela velha casa.
A azáfama antiga centrava-se no
cumprimento da tradição - na grande
noite da consoada - com toda a família reunida em casa do representante mais
idoso dos Godofredos, à roda de um
Presépio laboriosamente construído, onde O Menino era honrado como a
figura tutelar que se impunha e a quem era rezada em profundo silêncio a Oração
da noite que antecedia a refeição que todos tomavam numa atitude que era um
misto de espiritualidade e de alegria sã, onde cabia com todo o sentido a Missa
do Galo a que todos assistiam, deslocando-se à Igreja paroquial, incluindo os
mais novos da família.
Mas tudo mudara...
Os herdeiros dos antigos Godofredos
que naquele ano tinham a cargo a preparação da festa da noite de Natal haviam
deixado cair o sentido religioso da consoada de outros tempos, tendo levado
seis semanas a acertar todos os pormenores da reunião de família e apenas dois
dias para armar o Presépio, encomendado à última hora a uma firma da
especialidade e cujo fim era o de à volta dele se reunirem os presentes que
haveriam de ser trocados.
Começaram por discutir os convites
por entre um grande alvoroço na escolha dos próprios familiares, um cuidado que
mereceu acesa polémica, sobretudo, quando na tarefa da escolha aparecia algum
menos prendado pela fortuna do mundo, desde logo uma inquietude, tendo em conta
o brilho mundano da festa, onde o Presépio não deixava de ser uma peça da
encenação da noite de Natal, dando-se todo o relevo à importância social das
pessoas e às suas roupagens a preceito, o que nem todos podiam garantir, um
facto considerado como uma rusticidade que envergonhava a festa dos mais ricos
dos Godofredos.
Às nove horas da noite chegaram os
primeiros convidados devidamente vestidos como se fossem a uma festa de gala ou
da abertura da Ópera, sobretudo, as senhoras, escondidas nos seus abafos de
peles raras – e caras! – exalando perfumes que respeitavam, escrupulosamente,
os últimos lançamentos dos mercados de Paris, ansiosamente procurados nas lojas
mais chiques.
Pelas dez horas começou o banquete e
não a consoada, pelo facto de não ter havido a Oração de graças pelo Menino
Jesus, que os antigos Godofredos ao longo de séculos respeitavam naqueles
jantares de família e, muito menos, haveria a assistência à Missa do Galo,
porque estava frio e até chovia.
Acresceu a tudo isto que não se
trocaram palavras que dessem àquela noite o seu sentido religioso, mas antes,
se falou das últimas cotações da Bolsa e dos negócios imobiliários, discussões
em que os menos afortunados dos Godofredos não meterem, um que fosse, qualquer
comentário, pelo facto de estarem longe daqueles assuntos, mas sentindo-se
incomodados pela falta de respeito que alguns manifestavam pelo ramo mais pobre
da família.
No Presépio, Nossa Senhora, S. José
e O Menino Jesus assistiam a tudo isto.
Incomodados, como é bom de ver,
sentindo-se perfeitamente irmanados com a sorte dos Godofredos mais pobres, que
tão calados como eles, assistiam ao desfiar das balelas e das basófias que
enchiam a sala do repasto naquela noite de Natal, onde O Menino devia ser a
figura principal e não passava de um simples boneco de barro deitado numas
pobres palhas, de olhos abertos de espanto para aquelas conversas mercantis.
Pela meia-noite foi o grande
burburinho. Tocou a hora da troca dos presentes.
Os mais caros trocados entre os
membros mais ricos da família no meio de grande algazarra, festejos e desejos de "Bom Natal" e os outros, desprezíveis, ofertados aos mais pobres, denotando a falta de escrúpulos dos ofertantes ricos, sabendo, que em troca iam receber deles as prendas que atestavam as suas carências económicas.
De facto, assim aconteceu.
O clã dos ricos recebera as prendas dos mais pobres da família sem alegria, indo ao ponto de nem sequer se terem dado ao cuidado de as abrir no acto do recebimento... o que provou o quanto estavam longe de perceber o sentido da esmola da pobre viúva do Evangelho, que dando pouco, dera mais que os ricos.
O clã dos ricos recebera as prendas dos mais pobres da família sem alegria, indo ao ponto de nem sequer se terem dado ao cuidado de as abrir no acto do recebimento... o que provou o quanto estavam longe de perceber o sentido da esmola da pobre viúva do Evangelho, que dando pouco, dera mais que os ricos.
Cumprido este ritual de ordem social
começaram os preparativos para o fim da festa com a troca dos últimos brindes
entre os mais afortunados, pedindo – a um Deus que não conheciam - boa sorte para os próximos negócios e para
que não faltasse a nenhum deles a saúde para que estes fossem geridos
convenientemente.
Foi então que o Carlitos, um menino
de doze anos, pertencendo à facção mais pobre dos Godofredos – que nem sequer
merecera uma prenda – abeirou-se do Presépio e tendo fitado longamente os
olhitos no rosto da Mãe de Jesus, num repente, bradou forte e comovido:
-Vejam como chora Nossa Senhora!
Todos olharam sem compreender, o que
não era de admirar.
Foi então que o Carlitos, de
imediato, sacou do bolso das calças um pequeno papel e leu o seguinte:
Olhai todos para o Presépio
que neste Natal está armado
nesta casa.
Pensai no Milagre daquela Vida
que nos foi dada
e está ali, naquele Menino
rosado e nu,
despido de tudo...
Pensai, depois,
como é importante levar para o
mundo
a vida das personagens que
fazem parte
daquele Presépio.
Sobretudo, a Vida d’Aquele
Menino
que se fez Homem
e habitou entre nós – e é Deus
connosco!
É que, podemos construir Presépios
lindos
com papéis coloridos,
luzes, sons, caminhos,
Reis Magos e camelos,
mas se no Presépio
pomos o Menino a dormir
em vez de sentirmos
que a Sua Voz nos interpela...
o Presépio que fazemos
é uma encenação a mais
no grande teatro do mundo!
E isto não devia acontecer
Que o Presépio seja – como deve
ser –
a expressão fiel
do nosso amor por aquele
Menino,
Fonte de todas as graças!
Fez-se um silêncio de chumbo, apenas
quebrado quando Henrique, um dos membros mais velhos dos Godofredos e o mais inconformado
com o aviltamento daquele falsa consoada se abeirou do Carlitos e lhe
perguntou, afável, cofiando-lhe os cabelos louros e encaracolados:
- O poema que leste é muito lindo e
é sensato, mas como sabes tu que Nossa Senhora está a chorar?
- É que a festa está achegar ao fim
e Nossa Senhora queixa-se de ninguém se ter lembrado do seu Filho, Jesus...
dando-lhe a prenda maior, que seria umas palavras que lembrassem o Seu
nascimento há dois milénios, por amor dos homens... Nossa Senhora está a chorar
por sentir que o seu Menino Jesus está
fora da festa...
Ficaram todos mudos, incluindo
Henrique.
Mas este, lembrando-se do costume
antigo que lhe chegara pelo relatos que ouvira dos seus antepassados – e haviam
passado de geração em geração – sentiu-se envergonhado e entendeu que lhe
pertencia por direito e por dever, dizer uma palavra apropriada.
Então, disse o seguinte:
- Meus queridos familiares: foi
necessário que o mais novo da nossa velha família nos chamasse a atenção para o
desleixo e para o jacobinismo em que deixamos cair esta noite de Natal que
antigamente era respeitada pelos nossos maiores como a noite mais santa do ano,
onde a festa era destinada a honrar o Menino Jesus e onde todos éramos iguais
perante o ensinamento do Presépio, que hoje fazemos como um cenário para
alindar a nossa casa e antigamente era feito como um relicário para a
santificar.
E rezou comovidamente uma bela
Oração.
Foi assim que o Carlitos, pobre e
humilde, com os seus doze anos cheios de amor e sensibilidade acabou por tornar vivo e presente naquela festa O Menino Jesus,
que pareceu sorrir para ele, acabada que foi a Oração que faltara no início da
festa.
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