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sábado, 6 de dezembro de 2014

Conto de Natal - O Menino Jesus Fora da Festa






Andava há semanas uma grande azáfama em casa do ramo mais rico do clã dos Godofredos, cujo nome oriundo de uma linhagem antiga, lembrava tempos de outros Natais sem o aparato mundano que agora se vivia e sentia, pela mudança bem longe da velha chama espiritual daquela velha casa.

A azáfama antiga centrava-se no cumprimento da tradição -  na grande noite da consoada - com toda a família reunida em casa do representante mais idoso dos Godofredos, à roda de um  Presépio laboriosamente construído, onde O Menino era honrado como a figura tutelar que se impunha e a quem era rezada em profundo silêncio a Oração da noite que antecedia a refeição que todos tomavam numa atitude que era um misto de espiritualidade e de alegria sã, onde cabia com todo o sentido a Missa do Galo a que todos assistiam, deslocando-se à Igreja paroquial, incluindo os mais novos da família.
Mas tudo mudara...

Os herdeiros dos antigos Godofredos que naquele ano tinham a cargo a preparação da festa da noite de Natal haviam deixado cair o sentido religioso da consoada de outros tempos, tendo levado seis semanas a acertar todos os pormenores da reunião de família e apenas dois dias para armar o Presépio, encomendado à última hora a uma firma da especialidade e cujo fim era o de à volta dele se reunirem os presentes que haveriam de ser trocados.

Começaram por discutir os convites por entre um grande alvoroço na escolha dos próprios familiares, um cuidado que mereceu acesa polémica, sobretudo, quando na tarefa da escolha aparecia algum menos prendado pela fortuna do mundo, desde logo uma inquietude, tendo em conta o brilho mundano da festa, onde o Presépio não deixava de ser uma peça da encenação da noite de Natal, dando-se todo o relevo à importância social das pessoas e às suas roupagens a preceito, o que nem todos podiam garantir, um facto considerado como uma rusticidade que envergonhava a festa dos mais ricos dos Godofredos.

Às nove horas da noite chegaram os primeiros convidados devidamente vestidos como se fossem a uma festa de gala ou da abertura da Ópera, sobretudo, as senhoras, escondidas nos seus abafos de peles raras – e caras! – exalando perfumes que respeitavam, escrupulosamente, os últimos lançamentos dos mercados de Paris, ansiosamente procurados nas lojas mais chiques.
Pelas dez horas começou o banquete e não a consoada, pelo facto de não ter havido a Oração de graças pelo Menino Jesus, que os antigos Godofredos ao longo de séculos respeitavam naqueles jantares de família e, muito menos, haveria a assistência à Missa do Galo, porque estava frio e até chovia.

Acresceu a tudo isto que não se trocaram palavras que dessem àquela noite o seu sentido religioso, mas antes, se falou das últimas cotações da Bolsa e dos negócios imobiliários, discussões em que os menos afortunados dos Godofredos não meterem, um que fosse, qualquer comentário, pelo facto de estarem longe daqueles assuntos, mas sentindo-se incomodados pela falta de respeito que alguns manifestavam pelo ramo mais pobre da família.

No Presépio, Nossa Senhora, S. José e O Menino Jesus assistiam a tudo isto.
Incomodados, como é bom de ver, sentindo-se perfeitamente irmanados com a sorte dos Godofredos mais pobres, que tão calados como eles, assistiam ao desfiar das balelas e das basófias que enchiam a sala do repasto naquela noite de Natal, onde O Menino devia ser a figura principal e não passava de um simples boneco de barro deitado numas pobres palhas, de olhos abertos de espanto para aquelas conversas mercantis.

Pela meia-noite foi o grande burburinho. Tocou a hora da troca dos presentes.

Os mais caros trocados entre os membros mais ricos da família no meio de grande algazarra, festejos e desejos de "Bom Natal" e os outros, desprezíveis,  ofertados aos mais pobres, denotando a falta de escrúpulos dos ofertantes ricos, sabendo, que em troca iam receber deles as prendas que atestavam as suas carências económicas.
De facto, assim aconteceu. 
O clã dos ricos recebera as prendas dos mais pobres da família sem alegria, indo ao ponto de nem sequer se terem dado ao cuidado de as abrir no acto do recebimento... o que provou o quanto estavam longe de perceber o sentido da esmola da pobre viúva do Evangelho, que dando pouco, dera mais que os ricos.
Cumprido este ritual de ordem social começaram os preparativos para o fim da festa com a troca dos últimos brindes entre os mais afortunados, pedindo – a um Deus que não conheciam -  boa sorte para os próximos negócios e para que não faltasse a nenhum deles a saúde para que estes fossem geridos convenientemente.

Foi então que o Carlitos, um menino de doze anos, pertencendo à facção mais pobre dos Godofredos – que nem sequer merecera uma prenda – abeirou-se do Presépio e tendo fitado longamente os olhitos no rosto da Mãe de Jesus, num repente, bradou forte e comovido:

-Vejam como chora Nossa Senhora!

Todos olharam sem compreender, o que não era de admirar.
Foi então que o Carlitos, de imediato, sacou do bolso das calças um pequeno papel e leu o seguinte:

Olhai todos para o Presépio
que neste Natal está armado nesta casa.

Pensai no Milagre daquela Vida
que nos foi dada
e está ali, naquele Menino rosado e nu,
despido de tudo...
Pensai, depois,
como é importante levar para o mundo
a vida das personagens que fazem parte
daquele Presépio.
Sobretudo, a Vida d’Aquele Menino
que se fez Homem
e habitou entre nós – e é Deus connosco!

É que, podemos construir Presépios lindos
com papéis coloridos,
luzes, sons, caminhos,
Reis Magos e camelos,
mas se no Presépio
pomos o Menino a dormir
em vez de sentirmos
que a Sua Voz nos interpela...
o Presépio que fazemos
é uma encenação a mais
no grande teatro do mundo!

E isto não devia acontecer
Que o Presépio seja – como deve ser –
a expressão fiel
do nosso amor por aquele Menino,
Fonte de todas as graças!


Fez-se um silêncio de chumbo, apenas quebrado quando Henrique, um dos membros mais velhos dos Godofredos e o mais inconformado com o aviltamento daquele falsa consoada se abeirou do Carlitos e lhe perguntou, afável, cofiando-lhe os cabelos louros e encaracolados:

- O poema que leste é muito lindo e é sensato, mas como sabes tu que Nossa Senhora está a chorar?

- É que a festa está achegar ao fim e Nossa Senhora queixa-se de ninguém se ter lembrado do seu Filho, Jesus... dando-lhe a prenda maior, que seria umas palavras que lembrassem o Seu nascimento há dois milénios, por amor dos homens... Nossa Senhora está a chorar por sentir que o seu  Menino Jesus está fora da festa...

Ficaram todos mudos, incluindo Henrique.
Mas este, lembrando-se do costume antigo que lhe chegara pelo relatos que ouvira dos seus antepassados – e haviam passado de geração em geração – sentiu-se envergonhado e entendeu que lhe pertencia por direito e por dever, dizer uma palavra apropriada.

Então, disse o seguinte:

- Meus queridos familiares: foi necessário que o mais novo da nossa velha família nos chamasse a atenção para o desleixo e para o jacobinismo em que deixamos cair esta noite de Natal que antigamente era respeitada pelos nossos maiores como a noite mais santa do ano, onde a festa era destinada a honrar o Menino Jesus e onde todos éramos iguais perante o ensinamento do Presépio, que hoje fazemos como um cenário para alindar a nossa casa e antigamente era feito como um relicário para a santificar.
E rezou comovidamente uma bela Oração.

Foi assim que o Carlitos, pobre e humilde, com os seus doze anos cheios de amor e sensibilidade acabou por tornar  vivo e presente naquela festa O Menino Jesus, que pareceu sorrir para ele, acabada que foi a Oração que faltara no início da festa.



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