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segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

"Trabalhadores do Mar"



Foto da Revista "Mundo Gráfico" 
Ano II nº 24 - 30 de Setembro de 1941


Na Literatura portuguesa dedicada ao mar, mas sobretudo, dedicada aos homens que o enfrentam nas artes da pesca para seu sustento e para o público em geral, existem dois vultos que merecem ser lembrados.

 Raul Brandão - cujo avô morreu no mar - e ao qual dedicou o seu livro: "Os Pescadores" e António Nobre, em cuja poesia o mar e os pescadores mereceram a honra - no "Só" - de lhe terem merecido a menção que bem mereceram a estes dois insignes literatos, algo que tem andado esquecido nos homens de Estado que temos tido por não terem dado aos esforçados "trabalhadores do mar" o estatuto que era merecido pelo seu labor e audácia.

Leiamos o que nos diz Raul Brandão num dos capítulos de "Os Pescadores" quando apresenta aos seus leitores a preparação de uma campanha, a que ele chama, simplesmente: 


IDA AO MAR
5 de Setembro

Se fecho os olhos sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite húmida e cerrada. Não vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e ouço-lhe ao longe o clamor. No primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, lá ao fundo distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde irrompe de quando em quando um grito. De noite apaga-se o mundo e só esta voz enche o mundo... São três horas. O moço anda de porta em porta batendo com um seixo. E vai chamando na cerração: – Ó sê Manuel, cá pra baixo pró mar! – E mais afastado torna outra vez a sair do escuro o apelo prolongado, como se fosse o mar que os chamasse uma um: – Ó sê José... cá pra baixo pró mar! – O arrais leva-me pela mão até à lingueta viscosa, e salto dentro da catraia. Rumor. Vultos. Alguns homens ajeitam-se nos bancos, outros fincam os remos nas pedras para afastarem o barco.
Mais perto, sempre mais perto, o bafo salgado... Uma lufada, uma onda, – um ah monstruoso – o clamor negro e espesso – e saímos a barra. Chego-me para o arrais, que não larga da mão a cana do leme, imóvel e atento. Mete-me medo o negrume que não tem limites de escuridão e de vida e de que me separa a espessura de uma tábua. A maré vaza. O arrais manda:

– Iça a vela! Os homens saltam nos bancos e o pano bate no escuro.
– Ó iça! ó iça!...


A escota range no moitão e a grande vela triangular sobe, debate-se, enche-se de vento. A catraia mete a borda. Uma hesitação na marcha e logo nos entranhamos na agitação infinita, na noite infinita. A luz da lanterna remexem sombras indecisas. São os homens que se deitam nos bancos ou no fundo do cavername entre os baldes, os batedores, e o grande cabo do mar de oitenta braças, que serve para largar o ancorote quando a barra se fecha à entrada. Só o arrais continua agarrado ao leme, de olhos fixos na agulha de marear. Chego-me mais para ele... Água negra, respiração negra. Um frémito de vida, uma humidade que se cola à boca e às mãos, e a escuridão, mas a escuridão como um ser imenso que não distingo e de que sinto o contacto – um fôlego cego e vivo que remexe lá ao longe, cheio de mistério, de u – u – u desordenado e que desaba em montanhas e salpicos amargos. Vem até mim. Rodeia-me. Quase lhe vejo as mãos enormes. Escuto o negrume cheio de rumores, de vozes, de sombras movediças, que se debruçam para nós como um che... che... mais alto, mais baixo, que não cessa. Um grito parece vir de muito longe, da vida monstruosa e profunda em que me entranho. Mas já me não mete medo o mar. O lampião ilumina a cara do arrais, rude e grave, serena. E a meu lado a água escorrega no costado, chape-que-chape, sempre como mesmo ruído monótono que adormece e embala.


António Nobre por outras palavras de que fez poesia, relata o mesmo sentimento e não deixa de ser enternecedor o epíteto que ele dá aos pescadores da Póvoa - Poveirinhos - aos quais dedica este soneto que mantemos com a grafia do tempo. seguindo-se-lhe o convite que ele faz a - Georges - que não é, naturalmente, alguém inventado, mas alguém que o poeta conheceu e ao qual queria mostrar e engrandecer a sua Pátria de marinheiros e pescadores.


Poveiro

Poveirinhos! meus velhos pescadores!
Na Agoa quizera com vocês morar:
Trazer o lindo gorro de trez cores,
Mestre da lancha Deixem-nos passar!

Far-me-ia outro, que os vossos interiores
De ha tantos tempos, devem já estar
Calafetados pelo breu das dores,
Como esses pongos em que andaes no mar!

Ó meu Pae, não ser eu dos poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser, poveiro,
Mail-Irmão do «Senhor de Mattozinhos»!

No alto mar, ás trovoadas, entre gritos,
Promettermos, si o barco fôri intieiro,
Nossa bela á Sinhora dos Afflictos!

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Georges! 
anda ver meu país de Marinheiros

Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
A espera da maré,
Que não tarda hí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força,
Clamam todos à uma: "Agôra! agôra! agôra!"
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(As vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento, e todas à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Snra. Nagonia!

Olha, acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Da guarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Loenor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!
Senhora d'ajuda!
Ora'pro nobis!
Caluda!
Sêmos probes!
S.hr dos ramos!
Istrella do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Snra. da Luz!
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
E tal qual ela, se lhe dá o Sol!
S.hr dos Passos!
Sinhora da Ora!

Aguias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fóra...

S.hr dos Navegantes!
Senhor de Matozinhos!

Os mestres ainda são os mesmos d'antes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mail-os quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Martir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

Ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jéques, o Pardal, na Nam te perdes.
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
"As armas e os barões assinalados..."

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com ele
Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus!

in, Só


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