Foto da Revista "Mundo Gráfico"
Ano II nº 24 - 30 de Setembro de 1941
Na Literatura portuguesa dedicada ao mar, mas sobretudo, dedicada aos homens que o enfrentam nas artes da pesca para seu sustento e para o público em geral, existem dois vultos que merecem ser lembrados.
Raul Brandão - cujo avô morreu no mar - e ao qual dedicou o seu livro: "Os Pescadores" e António Nobre, em cuja poesia o mar e os pescadores mereceram a honra - no "Só" - de lhe terem merecido a menção que bem mereceram a estes dois insignes literatos, algo que tem andado esquecido nos homens de Estado que temos tido por não terem dado aos esforçados "trabalhadores do mar" o estatuto que era merecido pelo seu labor e audácia.
Leiamos o que nos diz Raul Brandão num dos capítulos de "Os Pescadores" quando apresenta aos seus leitores a preparação de uma campanha, a que ele chama, simplesmente:
IDA
AO MAR
5 de
Setembro
Se fecho os olhos
sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite húmida e cerrada. Não
vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e ouço-lhe ao longe o
clamor. No primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, lá ao fundo
distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde irrompe
de quando em quando um grito. De noite apaga-se o mundo e só esta voz enche o mundo...
São três horas. O moço anda de porta em porta batendo com um seixo. E vai chamando
na cerração: – Ó sê Manuel, cá pra baixo pró mar! – E mais afastado torna outra
vez a sair do escuro o apelo prolongado, como se fosse o mar que os chamasse uma
um: – Ó sê José... cá pra baixo pró mar! – O arrais leva-me pela mão até à
lingueta viscosa, e salto dentro da catraia. Rumor. Vultos. Alguns homens
ajeitam-se nos bancos, outros fincam os remos nas pedras para afastarem o
barco.
Mais perto,
sempre mais perto, o bafo salgado... Uma lufada, uma onda, – um ah monstruoso –
o clamor negro e espesso – e saímos a barra. Chego-me para o arrais, que não
larga da mão a cana do leme, imóvel e atento. Mete-me medo o negrume que não tem
limites de escuridão e de vida e de que me separa a espessura de uma tábua. A
maré vaza. O arrais manda:
– Iça a vela! Os
homens saltam nos bancos e o pano bate no escuro.
– Ó iça! ó
iça!...
A escota range no
moitão e a grande vela triangular sobe, debate-se, enche-se de vento. A catraia
mete a borda. Uma hesitação na marcha e logo nos entranhamos na agitação
infinita, na noite infinita. A luz da lanterna remexem sombras indecisas. São
os homens que se deitam nos bancos ou no fundo do cavername entre os baldes, os
batedores, e o grande cabo do mar de oitenta braças, que serve para largar o
ancorote quando a barra se fecha à entrada. Só o arrais continua agarrado ao
leme, de olhos fixos na agulha de marear. Chego-me mais para ele... Água negra,
respiração negra. Um frémito de vida, uma humidade que se cola à boca e às
mãos, e a escuridão, mas a escuridão como um ser imenso que não distingo e de
que sinto o contacto – um fôlego cego e vivo que remexe lá ao longe, cheio de
mistério, de u – u – u desordenado e que desaba em montanhas e salpicos
amargos. Vem até mim. Rodeia-me. Quase lhe vejo as mãos enormes. Escuto o
negrume cheio de rumores, de vozes, de sombras movediças, que se debruçam para
nós como um che... che... mais alto, mais baixo, que não cessa. Um grito parece
vir de muito longe, da vida monstruosa e profunda em que me entranho. Mas já me
não mete medo o mar. O lampião ilumina a cara do arrais, rude e grave, serena.
E a meu lado a água escorrega no costado, chape-que-chape, sempre como mesmo
ruído monótono que adormece e embala.
António Nobre por outras palavras de que fez poesia, relata o mesmo sentimento e não deixa de ser enternecedor o epíteto que ele dá aos pescadores da Póvoa - Poveirinhos - aos quais dedica este soneto que mantemos com a grafia do tempo. seguindo-se-lhe o convite que ele faz a - Georges - que não é, naturalmente, alguém inventado, mas alguém que o poeta conheceu e ao qual queria mostrar e engrandecer a sua Pátria de marinheiros e pescadores.
Poveiro
Poveirinhos! meus velhos
pescadores!
Na Agoa quizera com vocês
morar:
Trazer o lindo gorro de trez
cores,
Mestre da lancha Deixem-nos
passar!
Far-me-ia outro, que os vossos
interiores
De ha tantos tempos, devem já
estar
Calafetados pelo breu das
dores,
Como esses pongos em que andaes
no mar!
Ó meu Pae, não ser eu dos
poveirinhos!
Não seres tu, para eu o ser,
poveiro,
Mail-Irmão do «Senhor de
Mattozinhos»!
No alto mar, ás trovoadas,
entre gritos,
Promettermos, si o barco fôri
intieiro,
Nossa bela á Sinhora dos
Afflictos!
Georges!
anda ver meu país de
Marinheiros
Georges! anda ver meu país de
Marinheiros,
O meu país das Naus, de
esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e
gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que
o remo torça,
A espera da maré,
Que não tarda hí, avista-se lá
fora!
E quando a onda vem, fincando-o
a toda a força,
Clamam todos à uma:
"Agôra! agôra! agôra!"
E, a pouco e pouco, as lanchas
vão saindo
(As vezes, sabe Deus, para não
mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo!
que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento, e todas à
porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem
manchas,
Rosário de velas, que o vento
desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das
Lanchas:
Snra. Nagonia!
Olha, acolá!
Que linda vai com seu erro de
ortografia...
Quem me dera ir lá!
Senhora Da guarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da
Loenor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe
a espingarda
O caçador!
Senhora d'ajuda!
Ora'pro nobis!
Caluda!
Sêmos probes!
S.hr dos ramos!
Istrella do mar!
Cá bamos!
Parecem Nossa Senhora, a andar.
Snra. da Luz!
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
E tal qual ela, se lhe dá o
Sol!
S.hr dos Passos!
Sinhora da Ora!
Aguias a voar, pelo mar dentro
dos espaços
Parecem ermidas caiadas por
fóra...
S.hr dos Navegantes!
Senhor de Matozinhos!
Os mestres ainda são os mesmos
d'antes:
Lá vai o Bernardo da Silva do
Mar,
A mail-os quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a
ensaiar...
Senhora dos aflitos!
Martir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!
Ó lanchas, Deus vos leve pela
mão!
Ide em paz!
Ainda lá vejo o Zé da Clara, os
Remelgados,
O Jéques, o Pardal, na Nam te
perdes.
E das vagas, aos ritmos
cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor
das águas verdes
"As armas e os barões
assinalados..."
Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na
dianteira...
Como ela corre! com que força o
Vento a impele:
Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! ide e
voltai com ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!
in, Só
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