Faz hoje 20 anos que faleceu Miguel Torga.
Transmontano de gema, um dos traços mais vincados da sua obra, mormente a de prosa, é o seu apego ao meio rural que lhe ficou pintado nos sentidos durante toda a vida em que a paisagem está presente nos textos que escreveu e dela encheu páginas de amor natal nos seus "Diários", em que as fragas e os escarpados, conviveram sempre com ele, a par das árvores e dos animais, que no conjunto formaram um paraíso natural recheado de valores e da força humana das suas gentes.
No "Diário XV", como se o visse num retrato fala assim do carácter do homem transmontano:
"Heróis altivos, cingidos às leis da condição, desde o nascimento que estão acostumados a enfrentar os caprichos do destino por sua conta e risco, mesmo quando afiançados. [...] Portugueses, como é evidente, viram a luz do dia nas terras altas de Trás-os-Montes [...]. Têm, pois, todos os traços fisionómicos da região. Duros e terrosos.
E é este carácter que o leva a recalcar a mesma ideia na obra "Traço de União"
No "Diário XV", como se o visse num retrato fala assim do carácter do homem transmontano:
"Heróis altivos, cingidos às leis da condição, desde o nascimento que estão acostumados a enfrentar os caprichos do destino por sua conta e risco, mesmo quando afiançados. [...] Portugueses, como é evidente, viram a luz do dia nas terras altas de Trás-os-Montes [...]. Têm, pois, todos os traços fisionómicos da região. Duros e terrosos.
E é este carácter que o leva a recalcar a mesma ideia na obra "Traço de União"
"Onde estiver um
transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? Porque, mesmo transplantado, ele
ressuma a seiva de onde brotou. Corre-lhe nas veias a força que recebeu dos
penhascos, hemoglobina que nunca se descora.
Herdeiro da terra que o viu nascer em S. Martinho de Anta, tudo quanto deixou dito da sua pertença à ruralidade do meio onde nasceu é sempre, um grito da alma onde lhe ferve o sangue, o que o leva a afirmar, convictamente, no "Diário XVI"
Não tenho fronteiras espirituais,
mas trago gravados nos cromossomas os marcos da minha freguesia e a fisionomia
dos meus conterrâneos, tendo este amor à terra telúrica ficado gravado para sempre, a ponto de ter exclamado: Este Trás-os-Montes da
minha alma! Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso.
Era assim que ele sentia sempre que regressava ao seu paraíso, como o diz no poema:
REGRESSO
Regresso às fragas de onde me roubaram.
Ah! Minha serra, minha dura
infância!
Como os duros carvalhos me
acenaram,
Mal eu surgi, cansado, na
distância!
Cantava cada fonte à sua porta:
O poeta voltou!
Atrás ia ficando a terra
morta
Dos versos que o desterro
esfarelou.
Depois o céu abriu-se num
sorriso,
E eu deitei-me no colo dos
penedos
A contar aventuras e segredos
Aos deuses do meu velho paraíso
.
Socialista - sem nunca se ter filiado - dizendo mesmo que o fora toda a
vida, como afirma no discurso de abertura do primeiro comício socialista
realizado em Coimbra em 1-6-1974 e se encontra publicado no seu livro: "Ensaios e
Discursos" esclareceu que o era, mas mais sensível a uma ética do que a
uma ideologia.
O grande homem das Letras Portuguesas andou pela minha Beira, concretamente pela vila de Arganil a cujo Hospital da Misericórdia durante vários anos prestou serviços médicos da sua especialidade, o que lhe possibilitou ter travado laços afectivos e profissionais com o Doutor Fernando Vale, fundador do PS e dali natural, sem contudo se imiscuir na política partidária que por aqueles lados - no pós 25 de Abril - fervilhava, embora tivesse acedido, como convidado à abertura de uma Assembleia de cariz político realizada na Vila de Arganil no dia 2 de Março de 1975
No início das palavras então proferidas afirmou-se como um calcorreador assíduo das serras e montados a que o Alva e o Ceira refrescam a secura. Do Piódão aos Cepos, da Teixeira à Esculca, de Vila Cova às Medas, do Sarzedo a Pombeiro, todas as fragas e urzes me são familiares. Conheço, portanto, como médico e andarilho a gente arganilense e o meio em que se move. E sei da sua pobreza e honradez, da sua tenacidade, dos seus costumes, das suas crenças, das suas emigrações e do seu arreigado amor ao chão nativo. Por isso, é com muita alegria que me vejo entre ela, a dirigir uma assembleia de boas vontades, em que uns irão dizer como é possível enfrentar os problemas nacionais, onde se inserem os regionais, e outros ajuizar das soluções propostas.(...)
Por fim, a concluir, disse:
(...) Na verdade os oradores a quem vou dar a palavra são devotados combatentes de um ideal de que fui sempre também fiel servidor; aqueles a quem se dirigem são meus velhos conhecidos dos caminhos cruzados da vida, filhos dum rincão da Beira onde já quase criei raízes. (...)
Os velhos conhecidos dos caminhos cruzados eram os seus companheiros dos serões e das caçadas a que ele se entregava através das serras beirãs, como se visse ali, transplantado o seu paraíso transmontano.
Poeta invulgar, neste dia de homenagem à sua memória ficam aqui estampados alguns dos poemas que os ares transmontanos da sua terra natal ou os daquela terra da Beira, onde já quase criei raízes - como ele disse - lhe terão inspirado no calcorrear dos montes como se fosse um dos Faunos empenhado na resolução da equação entre o homem e o desconhecido - de que nos fala o livro de Aquilino "Andam Faunos Pelos Montes" e, embora a não a tendo resolvido, não se coibiu de falar do divino como acontece na estrofe "I" do opúsculo: LAMENTAÇÃO.
Agora, tu, Senhor-Homem,
que tanto gritas em mim!
Agora tu, com dentes que me
comem
e tripas que me consomem!
Agora tu, coveiro do meu fim!
Como um rafeiro vil, eis-me a
teus pés
(Depois de Deus, só tu...)
nú,
a dizer-te quem és!
....................................................
Conquista
Livre não sou, que nem a própria
vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a
liberdade.
Trago-a dentro de mim como um
destino.
E vão lá desdizer o sonho do
menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Miguel Torga, in 'Cântico do
Homem'
Liberdade
— Liberdade, que estais no
céu...
Rezava o padre-nosso que sabia,
A pedir-te, humildemente,
O pio de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.
— Liberdade, que estais na
terra...
E a minha voz crescia
De emoção.
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.
Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude,
deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
— Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso
nome.
Miguel Torga, in 'Diário XII'
Frustração
Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno
estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera.
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.
Miguel Torga, in 'Diário XV'
Inocência
Vou aqui como um anjo, e
carregado
De crimes!
Com asas de poeta voa-se no
céu...
De tudo me redimes,
Penitência
De ser artista!
Nada sei,
Nada valho,
Nada faço,
E abre-se em mim a força deste
abraço
Que abarca o mundo!
Tudo amo, admiro e compreendo.
Sou como um sol fecundo
Que adoça e doira, tendo
Calor apenas.
Puro,
Divino
E humano como os outros meus
irmãos,
Caminho nesta ingénua confiança
De criança
Que faz milagres a bater as
mãos.
Miguel Torga, in 'Penas do
Purgatório
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