Estátua de Lutero inaugurada em 1883 em Eisleben
(in, Revista "O Occidente"de 1 de Janeiro de 1884
Ao tempo que o Papa Emérito Bento XVI fez a sua viagem apostólica à Alemanha em 2011, católicos e protestantes divergiram sobre a possibilidade de Lutero, o monge reformista do século XVI a quem se deve o início da divisão da cristandade no Ocidente poder vir a ser reabilitado pela Igreja Católica da qual foi expulso pelo Papa Leão IX em 1521.
Na altura o Papa Bento XVI num discurso proferido em Erfurt, onde nalgumas passagens referiu Lutero, expressou-se do seguinte modo, de acordo com o texto que se reproduz "Ipsis-verbis", com a ressalva de serem nossos os sublinhados.
22-25 DE SETEMBRO DE
2011
ENCONTRO COM OS
REPRESENTANTES DO CONSELHO
DA «IGREJA EVANGÉLICA
NA ALEMANHA»
DISCURSO DO PAPA
BENTO XVI
Sala do Capítulo do
ex-Convento dos Agostinianos de Erfurt
Sexta-feira, 23 de
Setembro de 2011
Ilustres Senhoras e Senhores!
Ao tomar a palavra, quero antes
de mais nada agradecer cordialmente esta oportunidade de nos encontrarmos aqui.
A minha particular gratidão vai para Vossa Excelência, amado Irmão Presidente
Schneider, que me deu as boas-vindas e, com suas palavras, me acolheu no vosso
meio. Com toda a franqueza do seu coração, Vossa Excelência exprimiu
abertamente a fé verdadeiramente comum, o desejo de unidade. E nós sentimo-nos
felizes ainda porque considero que esta assembleia e os nossos encontros são
celebrados também como a festa da fé que temos em comum. Além disso quero
agradecer a todos pelo vosso dom de podermos conversar juntos como cristãos
aqui, neste lugar histórico.
Para mim, como Bispo de Roma, é
um momento de profunda emoção encontrar-vos aqui, no antigo convento
agostiniano de Erfurt. Como acabámos de ouvir, Lutero estudou teologia aqui.
Aqui celebrou a sua primeira missa. Contra a vontade do pai, abandonou os
estudos de jurisprudência para estudar teologia e encaminhar-se para o
sacerdócio na Ordem de Santo Agostinho. E a incentivá-lo neste caminho não era
um pormenor ou outro; o que não lhe dava paz era a questão sobre Deus, que
constituiu a paixão profunda e a mola da sua vida e de todo o seu itinerário.
«Como posso ter um Deus misericordioso?»: tal era a pergunta que lhe
atravessava o coração e estava por detrás de cada pesquisa teológica e de cada
luta interior. Para Lutero, a teologia não era mera questão académica, mas a
luta interior consigo mesmo, que, no fim de contas, era uma luta a propósito de
Deus e com Deus.
«Como posso ter um Deus
misericordioso?» O facto que esta pergunta tenha sido a força motriz de todo o
seu caminho, não cessa de maravilhar o meu coração. Com efeito, hoje quem se
preocupa ainda com isto, mesmo entre os cristãos? Que significa a questão de
Deus na nossa vida, no nosso anúncio? Hoje a maioria das pessoas, mesmo
cristãs, dá por suposto que Deus, em última análise, não se interessa dos
nossos pecados e das nossas virtudes. Ele bem sabe que todos nós não passamos
de carne. Se se acredita ainda num além e num juízo de Deus, praticamente quase
todos pressupõem que Deus terá de ser generoso e, no fim de contas, na sua
misericórdia ignorar as nossas pequenas faltas. A questão já não nos preocupa.
Mas, verdadeiramente são assim pequenas as nossas faltas? Porventura não está o
mundo a ser devastado pela corrupção dos grandes, mas também dos pequenos, que
pensam apenas na própria vantagem? Porventura não é ele devastado por causa do
poder da droga, que vive, por um lado, da ambição de vida e de dinheiro e, por
outro, da avidez de prazer das pessoas que a ela se abandonam? Não está ele
porventura ameaçado por uma crescente predisposição à violência que não raro se
dissimula sob a aparência de religiosidade? Poderiam a fome e a pobreza
devastar assim regiões inteiras do mundo, se estivesse mais vivo em nós o amor
de Deus e, derivado dele, o amor ao próximo, às criaturas de Deus que são os
homens? E poderiam continuar as perguntas nesta linha. Não, o mal não é uma
ridicularia. Mas não seria forte, se verdadeiramente colocássemos Deus no
centro da nossa vida. Esta pergunta que desinquietava Lutero – Qual é a posição
de Deus a meu respeito, como apareço a seus olhos? – deve tornar-se de novo,
certamente numa forma diversa, também a nossa pergunta, não académica mas
concreta. Penso que este constitui o primeiro apelo que deveremos escutar no
encontro com Martinho Lutero.
Depois é importante também isto: Deus, o único
Deus, o Criador do céu e da terra, é algo de diverso duma hipótese filosófica
sobre a origem do universo. Este Deus tem um rosto e falou-nos. No homem Jesus
Cristo, Ele tornou-Se um de nós: verdadeiro Deus e, simultaneamente, verdadeiro
homem. O pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente
cristocêntrica. Para Lutero, o critério hermenêutico decisivo na interpretação
da Sagrada Escritura era «aquilo que promove Cristo». Mas isto pressupõe que
Cristo seja o centro da nossa espiritualidade e que o amor por Ele, o viver
juntamente com Ele, oriente a nossa vida.
Ora poder-se-ia talvez dizer:
Está bem, mas o que é que tudo isto tem a ver com a nossa situação ecuménica?
Porventura não será tudo isto apenas uma tentativa de iludir, com uma inundação
de palavras, os problemas urgentes onde se esperam progressos práticos,
resultados concretos? A respeito disto, respondo: a coisa mais necessária para
o ecumenismo é primariamente que, sob a pressão da secularização, não percamos,
quase sem dar por isso, as grandes coisas que temos em comum, que por si mesmas
nos tornam cristãos e que nos ficaram como dom e tarefa. O erro do período
confessional foi ter visto, na maior parte das coisas, apenas aquilo que
separa, e não ter percebido de modo existencial o que temos em comum nas
grandes directrizes da Sagrada Escritura e nas profissões de fé do cristianismo
antigo. Para mim, isto constitui o grande progresso ecuménico dos últimos
decénios: termo-nos dado conta desta comunhão e, no rezar e cantar juntos, no
compromisso comum em prol da ética cristã face ao mundo, no testemunho comum do
Deus de Jesus Cristo neste mundo, reconhecermos tal comunhão como o nosso comum
e imorredouro alicerce.
É certo que o perigo de a perder
não é irreal. Queria brevemente fazer notar dois aspectos. Nos últimos tempos,
a geografia do cristianismo mudou profundamente e continua a mudar. Perante uma
forma nova de cristianismo, que se difunde com um dinamismo missionário imenso,
por vezes preocupante nas suas formas, as Igrejas confessionais históricas
ficam muitas vezes perplexas. Trata-se de um cristianismo de escassa densidade
institucional, com pouca bagagem racional, sendo ainda menor a bagagem
dogmática, e também com pouca estabilidade. Este fenómeno mundial – que me é
continuamente descrito pelos bispos de todo o mundo – põe-nos a todos perante esta
questão: Que tem a dizer-nos de positivo e de negativo esta nova forma de
cristianismo? Em todo o caso, coloca-nos novamente perante a pergunta sobre o
que permanece sempre válido e o que pode ou deve ser mudado, perante a questão
relativa à nossa opção fundamental na fé.
Mais profundo e, no nosso país,
mais inquietante é o segundo desafio para toda a cristandade; dele quero agora
falar-vos: trata-se do contexto do mundo secularizado, em que temos hoje de
viver e testemunhar a nossa fé. A ausência de Deus na nossa sociedade faz-se
mais pesada; a história da sua revelação, de que nos fala a Escritura, parece
colocada num passado que se distancia sempre mais. Porventura será preciso
ceder à pressão da secularização, tornar-se moderno através duma mitigação da
fé? Naturalmente, a fé deve ser repensada e sobretudo vivida hoje de um modo
novo, para se tornar uma realidade que pertença ao presente. Para isso ajuda
não a mitigação da fé, mas somente o vivê-la integralmente no nosso hoje. Esta
constitui uma tarefa ecuménica central, na qual nos devemos ajudar mutuamente:
a crer de modo mais profundo e vivo. Não serão as tácticas a salvar-nos, a
salvar o cristianismo, mas uma fé repensada e vivida de modo novo, através da
qual Cristo, e com Ele o Deus vivo,
entre neste nosso mundo. Tal como os mártires do período nazista nos
aproximaram uns dos outros e suscitaram a primeira grande abertura ecuménica,
assim também hoje a fé, vivida a partir do íntimo de nós mesmos, num mundo
secularizado, é a força ecuménica mais poderosa que nos reúne, guiando-nos para
a unidade no único Senhor. E por isso Lhe pedimos a graça de aprender de novo
viver a fé, para assim nos podermos tornar um só.
Este foi o discurso do Papa Bento XVI que não o tendo, por si só, podido reabilitar, deixou uma porta que ficou entreaberta e que eu - leigo que sou - gostaria de a ver aberta de par-a-par ainda nos anos que Deus me dará de vida, tendo em conta a linha ecuménica do fundador da Igreja Católica que se pressente existir na Oração Final quando agonizava na Cruz e rezou a grande prece de oblação e de intercessão a Deus por todos os homens:
Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu
em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me
enviaste. (Jo 17, 21)
Lutero foi, é verdade, um rebelde.
Mas o que deve ser meditado é o motivo porque a sua rebeldia nasceu, um dia, dentro da própria Igreja Católica que ele serviu, tendo sido da árvore da Teologia aprendida no Convento dos Agostinianos de Erfurt que ele colheu o fruto das suas contendas contra o Papa a quem devia a obediência que ele quebrou.
Lutero foi um rebelde obstinado ou um rebelde consciente?
Dele, Bento XVI diz no seu discurso: O pensamento de Lutero, a sua espiritualidade inteira era totalmente cristocêntrica e, que, o critério da interpretação da Sagrada Escritura era "aquilo que promove Cristo".
Quando acontecerá a reabilitação do antigo monge?
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