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segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos!



Gravura publicada pela Revista "O Occidente" 
de 21 de Junho de 1883



Todos nós e, neste caso, especialmente os homens, são para as suas mães o lírio entre os abrolhos, mas como ninguém, Gonçalves Crespo (1846-1883), falecido quase na mocidade, soube cantar - à sua mãe - esta ternura de se sentir assim e ser para ela - uma mestiça escrava casada com um comerciante português radicado no Brasil -  a vida e a luz dos olhos.

Gonçalves Crespo no pouco tempo que viveu em Portugal - apenas 27 anos e onde  se formou em Direito e exerceu o jornalismo e deu asas leves à sua veia de Poeta centrada na escola parnasiana - teve a dita do público português que o estimava ter apreciado as suas "Obras Completas" publicada pela sua própria mulher, Maria Amália Vaz de Carvalho.

Como homenagem ao Poeta que admiro desde a minha juventude, neste momento em que a curva da vida se vai acentuando, deixo ficar das "Miniaturas" algumas composições, a começar por esse "ALGUÉM", a sua mãe brasileira que ele imortalizou num soneto de uma inspiração que só acontece aos homens que Deus fadou para serem exemplos e testemunhos da vida que viveram e da Vida que ele sempre viu existir na mística toada que ele ouvia quando rezava  "O ROSÁRIO", uma outra das suas celebradas composições poéticas onde o etéreo desfiar lhe mostrava presa nos seus dedos a Cruz ebúrnea onde agonizava o Cristo.

Eu curvo-me, respeitosamente, por quem - como ele - viu e sentiu daquele modo o Cristo do Calvário!


ALGUÉM

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais de Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos,
E, se na Terra existe, é porque existo.

Esse alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando, alta noite, me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.

Chovam bênçãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! esse alguém
É de meus olhos a esplendente aurora;
És tu, doce velhinha, ó minha mãe!

in, Miniaturas



O ROSÁRIO

Quando à noite contemplo taciturno
estas contas antigas, o rosário
das minhas orações,
vejo em minh'alma o poema legendário
dos velhos tempos das longínquas eras
de santas devoções.

A cruz ebúrnea, onde agoniza o Cristo,
é de um lavor subtil que nos revela
um génio magistral,
obra de monge em merencória cela,
piedoso artista há muito adormecido
em velha catedral.

Tem séculos; talvez que nestes contas
passasse outrora suas mãos esguias
a castelã senil,
pensando triste nos saudosos dias
em que a seus pés um menestrel vibrava
o mimoso arrabil.

Talvez que este rosário minorasse
as saudades da noiva lacrimante
que debalde esperou
em cada nau, que vinha do Levante,
o seu donzel amado que partira
e nunca mais voltou.

Sobre a cota de um jovem cavaleiro,
que o beijava por noite estreladas
pensando em sua mãe,
ele assistiu às guerras das cruzadas,
atravessou talvez a Terra Santa
e viu Jerusalém.

Talvez alguma freira, em triste claustro,
de seus anos na doce primavera
só dele confiou
seus loucos sonhos de falaz quimera,
e, apertando o rosário ao peito ansioso,
consolada expirou.

Isto o que leio no rosário antigo;
e, quando melancólico lhe beijo
as contas de marfim,
no ar escuto indefinido arpejo,
e então a crença, a mística toada,
murmura dentro em mim.

in, Miniaturas



A SESTA

Na rede, que um negro moroso balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e dormita,
enquanto a mucamba nos ares agita
um leque de plumas.

Na rede perpassam as trémulas sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso embalada,
pendidos os braços da rede nevada
mimosos e nus.

Na rede, suspensa dos ramos erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de flores;
aos guinchos dá saltos na esteira de cores
felpudo sagui.

Na rede, por vezes, agita-se a bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes, saudosas,
que triste colono por noites formosas
descanta chorando.

A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros, cerrados,
de negros cativos os cantos magoados
soluçam no ar.

Na rede olorosa... Silêncio! Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede serena;
mestiça, teu leque de plumas acena
de manso, de manso...

O vento que passe tranquilo, de leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto sentido;
as rodas do «engenho» não façam ruído,
que dorme a sinhá!


in, Miniaturas



UM NÚMERO DE 
INTERMEZZO

Ria tomando o chá em torno à mesa
Da Sociedade a flor;
E no campo de estéticas opostas
Discutia-se o Amor.

«O amor deve ser etéreo e puro»,
O conselheiro diz:
Sorrindo a conselheira um ai! abafa
Com gestos de infeliz.

Diz o cónego: «o amor destrói, mas quando
Sensual, já se vê!»
A donzela pergunta ingenuamente:
«Reverendo, porquê?»

A condessa murmura em voz dolente:
« O amor é uma paixão.»
E lânguida uma chávena oferece
Ao pálido barão.

Era vago um lugar em torno à mesa
Era o teu, minha flor!
Tu, só tu, poderias, se quisesses.
Dizer o que era Amor!

in, Miniaturas


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