in, Revista "Portugal Colonial" nºs 7 e 8 - Ano I - Setembro e Outubro de 1931
(Revista Mensal de Propaganda e Expansão do Império Português)
As voltas que o Mundo dá.
Era Director desta Revista o Comandante Henrique Galvão que, como sabemos, se viria a indispor com o Estado Novo com as razões que se conhecem, as quais não importa aqui referir, mas tão só, assinalar como o tempo e o homem podem ser realidades volúveis quando este se dispõe a desafiar a hora que passa.
Foi o que aconteceu!
A velha gravura fica aqui, apenas para ilustrar os mares por onde andamos e, se, como Fernando Pessoa, pergunta na "MENSAGEM" quando invoca o "Mar Português" se todo este mar por onde andamos tem como ele diz "lágrimas de Portugal" - para as ter - se valeu a pena termos andado por tão longe paragens, para hoje, termos ficado tão perto uns dos outros que nos conhecemos todos?
Mas, porque tudo isto foi verdade e Portugal escreveu uma página da História Universal de que se deve honrar, aqui fica (sic) a extraordinária composição poética desse génio que foi Fernando Pessoa, para que as gerações mais novas olhando a velha gravura que se reproduz possam entender melhor o que diz o Poeta.
Mas, porque tudo isto foi verdade e Portugal escreveu uma página da História Universal de que se deve honrar, aqui fica (sic) a extraordinária composição poética desse génio que foi Fernando Pessoa, para que as gerações mais novas olhando a velha gravura que se reproduz possam entender melhor o que diz o Poeta.
Mensagem - Mar Português
MAR PORTUGUÊS
Possessio Maris
I. O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra
nasce.
Deus quis que a terra fosse toda
uma,
Que o mar unisse, já não
separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a
espuma,
E a orla branca foi de ilha em
continente,
Clareou, correndo, até ao fim do
mundo,
E viu-se a terra inteira, de
repente,
Surgir, redonda, do azul
profundo.
Quem te sagrou criou-te
português.
Do mar e nós em ti nos deu
sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se
desfez.
Senhor, falta cumprir-se
Portugal!
II. Horizonte
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e
arvoredos.
Desvendadas a noite e a
cerração,
As tormentas passadas e o
mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul
sidério
’Splendia sobre as naus da
iniciação.
Linha severa da longínqua costa
—
Quando a nau se aproxima
ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada
tinha;
Mais perto, abre-se a terra em
sons e cores:
E, no desembarcar, há aves,
flores,
Onde era só, de longe a
abstracta linha.
O sonho é ver as formas
invisíveis
Da distância imprecisa, e, com
sensíveis
Movimentos da esp’rança e da
vontade,
Buscar na linha fria do
horizonte
A árvore, a praia, a flor, a
ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.
III. Padrão
O esforço é grande e o homem é
pequeno
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal
moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é
imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e
aos céus
Que, da obra ousada, é minha a
parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui
vês,
Que o mar com fim será grego ou
romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que
me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna
calma
O porto sempre por achar.
IV. O mostrengo
O mostrengo que está no fim do
mar
Na noite de breu ergueu-se a
voar;
À roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou
entrar
Nas minhas cavernas que não
desvendo,
Meus tectos negros do fim do
mundo?”
E o homem do leme disse,
tremendo:
«El-Rei D. João Segundo!»
“De quem são as velas onde me
roço?
De quem as quilhas que vejo e
ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três
vezes,
Três vezes rodou imundo e
grosso.
«Quem vem poder o que só eu
posso,
Que moro onde nunca ninguém me
visse
E escorro os medos do mar sem
fundo?»
E o homem do leme tremeu, e
disse:
«El-Rei D. João Segundo!»
Três vezes do leme as mãos
ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três
vezes:
«Aqui ao leme sou mais do que
eu:
Sou um povo que quer o mar que é
teu;
E mais que o mostrengo, que me a
alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao
leme,
De El-Rei D. João Segundo!»
V. Epitáfio de Bartolomeu Dias
Jaz aqui, na pequena praia
extrema,
O Capitão do Fim. Dobrado o
Assombro,
O mar é o mesmo: já ninguém o
tema!
Atlas, mostra alto o mundo no
seu ombro.
VI. Os Colombos
Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a eles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz dele história.
E por isso a sua glória
É justa auréola dada
Por uma luz emprestada.
VII. Ocidente
Com duas mãos — o Acto e o
Destino —
Desvendámos. No mesmo gesto, ao
céu
Uma ergue o fecho trémulo e
divino
E a outra afasta o véu.
Fosse a hora que haver ou a que
havia
A mão que ao Ocidente o véu
rasgou,
Foi a alma a Ciência e corpo a
Ousadia
Da mão que desvendou.
Fosse Acaso, ou Vontade, ou
Temporal
A mão que ergueu o facho que
luziu,
Foi Deus a alma e o corpo
Portugal
Da mão que o conduziu.
VIII. Fernão de Magalhães
No vale clareia uma fogueira.
Uma dança sacode a terra
inteira.
E sombras disformes e
descompostas
Em clarões negros do vale vão
Subitamente pelas encostas,
Indo perder-se na escuridão.
De quem é a dança que a noite
aterra?
São os Titãs, os filhos da
Terra,
Que dançam da morte do
marinheiro
Que quis cingir o materno vulto
—
Cingi-lo, dos homens, o primeiro
—,
Na praia ao longe por fim
sepulto.
Dançam, nem sabem que a alma
ousada
Do morto ainda comanda a armada,
Pulso sem corpo ao leme a guiar
As naus no resto do fim do
espaço:
Que até ausente soube cercar
A terra inteira com seu abraço.
Violou a Terra. Mas eles não
O sabem, e dançam na solidão;
E sombras disformes e descompostas,
Indo perder-se nos horizontes,
Galgam do vale pelas encostas
Dos mudos montes.
IX. Ascensão de Vasco da Gama
Os Deuses da tormenta e os
gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da
sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se
ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da
névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois
um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos,
ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em
nuvens e clarões.
Em baixo, onde a terra é, o
pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz
de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do
Argonauta.
X. Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães
choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo
deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
XI. A Última Nau
Levando a bordo El-Rei D.
Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o
pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol
aziago
Erma, e entre choros de ânsia e
de pressago
Mistério.
Não voltou mais. A que ilha
indescoberta
Aportou? Voltará da sorte
incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do
futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho
escuro
E breve.
Ah, quanto mais ao povo a alma
falta,
Mais a minha alma atlântica se
exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem
tempo ou ’spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto
baço
Que torna.
Não sei a hora, mas sei que há a
hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma
embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa
finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
XII. Prece
Senhor, a noite veio e a alma é
vil.
Tanta foi a tormenta e a
vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio
hostil,
O mar universal e a saudade.
Mas a chama, que a vida em nós
criou,
Se ainda há vida ainda não é
finda.
O frio morto em cinzas a
ocultou:
A mão do vento pode erguê-la
ainda.
Dá o sopro, a aragem — ou
desgraça ou ânsia —
Com que a chama do esforço se
remoça,
E outra vez conquistaremos a
Distância —
Do mar ou outra, mas que seja
nossa!
Texto Integral da obra
«Mensagem» de Fernando Pessoa - Mar Português - Segunda de Três Partes da obra
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