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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Quando os sapateiros eram profetas...


O Sapateiro Santo 
(1510-1576)
Quadro de Manuel Maria Bordalo Pinheiro 
publicado pela Revista "O Occidente" 4º Ano - Vol. IV nº 82 - 1 de Abril de 1881


Diz a notícia de o "Occidente" que o quadro representa o sapateiro Simão Gomes, um dos grandes sapateiros profetas do século XVI, desse tempo em que o ler o futuro andava junto no deitar de meias solas, e dando consulta na sua loja da Rua Larga de S. Roque, ouvem atentos o sapateiro profeta dois velhos cavalheiros e mulheres do povo que tem naquele mestre o seu oráculo.
Não deixa o articulista, sem citar, com alguma crítica à mistura, que à porta um jesuita escuta a ver se o sapateiro Gomes recita bem a sua lição, porque como muito bem se sabe estes profetas da tripeça não passavam de uns instrumentos poderosos do jesuitismo.

Se a critica da Revista "Occidente" faz ou não sentido quanto à utilidade dele perante os padres jesuítas não o podemos confirmar, mas que ele foi uma personagem que teve a sua aura, parece certo que a mesma existiu e a fazer juízo da notícia é dito que a sua inteligência era menos brilhante que a do Bandarra, mas em compensação era dotado de mais virtude no que dizia respeito a coisas da Igreja.

Ainda de acordo, com a notícia, naquele tempo teria a sua loja na Rua Larga de S. Roque e não ser natural de Lisboa, pois noutro ponto, a notícia coeva refere que Simão Gomes era natural do Marmeleiro, próximo a Tomar, oriundo de uma família pobre (...) dizendo, ainda: Com fama de santidade morreu Simão Gomes em dia de S. Lucas Evangelista a 18 de Outubro de 1576 e foi sepultado na Igreja de S. Roque, junto à grade do cruzeiro, adiante do altar da Virgem.

Uma notícia que se transcreve "ipsis-verbis" do site http://www4.cm-evora.pt, - Câmara Municipal de Évora - com efeito corrobora isto e apresenta-o, como residente em Évora, sendo conhecido pelo "Sapateiro da Rua Nova" e, de uma forma breve, mas explícita dá-nos mais dados desta personagem popular.

A meio do século XVI viveu e foi muito conhecido em Évora o então chamado Sapateiro Santo, mestre deste ofício cujo nome era Simão Gomes. Nascido por volta de 1510, no lugar de Marmeleiro, pertencente a Tomar, já em adulto, este devoto a Deus, a quem consideravam profeta, veio para Évora e aqui casou e permaneceu 14 anos, morando sempre na Rua Nova, na “casa da cova”, e tendo vindo a ser o primeiro Guarda ou Corrector da Universidade de Évora.
O Padre António Franco descreve a sua vida como tendo sido “(…) cheia de singulares virtudes, maravilhas e espírito profético” e o padre jesuíta Manuel da Veiga fez em livro a sua biografia. Nos escritos de ambos e em todas as referências à sua figura, Simão Gomes é descrito como um homem muito simples, de grande modéstia e humildade, que desde a adolescência revelou tendências proféticas e terá predito factos como o desaparecimento de D. Sebastião, o domínio de Castela e a aclamação de D. João IV.
O rei D. Sebastião muito o consultava, em matérias espirituais e políticas, chamando-o até a Conselhos de Estado. Este monarca e várias individualidades o quiseram beneficiar, mas o virtuoso sapateiro, que nunca deixou de exercer o mister, sempre recusou, e só já idoso aceitou ir para Lisboa, onde faleceu, a 18 de Outubro de 1576, tendo sido sepultado na Igreja de S. Roque.
O cardeal D. Henrique nomeou-o seu escudeiro com moradia e sapateiro de sua pessoa e concedeu-lhe o título de enfermeiro de seus criados e durante cerca de 200 anos as suas profecias foram veneradas. No século XVIII foram, porém, consideradas falsas e foi ordenada a destruição dos seus apontamentos, por isso a sua fama e as suas previsões se esbateram no tempo, incluindo em Évora.

Texto adaptado do original de Manuel Carvalho Moniz, in Dominicais eborenses. Évora: Câmara Municipal de Évora, 1999, (Col. Novos Estudos Eborenses, 4), p. 128.


Na mesma época viveu em Trancoso o sapateiro Conçalo Annes Bandarra (1500-1566), conhecido por "O Bandarra" e que, tal como Simão Gomes, gozou de uma fama popular que chegou a merecer as boas graças do Padre António Vieira no tempo em que ele defendeu, com base numa profecia de Daniel - mas com grande aceitação "As Profecias do Bandarra" a instauração de um "Quinto Império" destinado a Portugal.

As Profecias do Bandarra e o Messianismo Português

A utopia era no tempo, um poderoso motor que impulsionava a mística da luta pela causa da autonomia perdida, perpassando sobre isto uma mística imperial assente na linha da fé, proclamando-se um expansionismo do catolicismo à escala universal sob a égide de um rei português que estaria presente após a décima sexta gestação, onde caía a Restauração que havia de pôs Portugal no trilho das glórias de antanho.

Nas suas interpretações messiânicas o grande jesuíta serviu-se, para tanto, de elementos milenaristas, joaquimitas, nacionais e judaicos para formular as concepções messiânicas que confluíram para a formação de um messianismo português, tendo em Bandarra seu maior expoente, redundando tanto no sebastianismo do século XVI como no discurso legitimador de Vieira, no século seguinte, como se infere do facto de não lhe ter passado despercebida a previsão de Bandarra que D. João seria esse novo rei alevantado, e aclamado em finais dos anos quarenta.

De facto D. João IV seria aclamado em 1640, um facto que levou a Sé de Lisboa a ter um retrato seu exposto no Templo, não admirando, por isso, que sobre ele o Padre António Vieira escrevesse: Bandarra foi verdadeiro profeta, pois profetizou e escreveu tantos anos antes tantas coisas, tão exactas, tão miúdas e tão particulares, que vemos todos cumpridas com os nossos olhos.
Estas palavras tinham latente o velho sonho de dar a Portugal a grandeza antiga e perdida para o consulado filipino, o que o terá levado a crer firmemente que o  Quinto Império só podia ser português, seguindo na esteira dos quatro Impérios até então desaparecidos: o assírio, o persa, o grego e o romano.

Vieira não escapou, por causa desta crença aos cárceres da Inquisição, que  utilizou como pretexto para o processo inquisitorial a sua Carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mundo”, datada de fins de 1659, escrita em Belém do Pará, resumindo-se a carta a um silogismo com base no Bandarra, que profetizava que El-Rei D. João o quarto há de obrar muitas coisas, e que estas se realizariam, concluindo deste modo a sua convicção, tendo em mira a ressurreição política do Reino de Portugal:  logo, El-Rei D. João o quarto há-de ressuscitar.

Tinham como causa as suas opiniões bem conhecidas a respeito dos cristãos novos e, também, as tendências extravagantes da sua fértil imaginação e do seu subtilíssimo espírito que se comprazia em adivinhações, necromancias e explicações proféticas das escrituras, isto, ainda no tempo em que ele era protegido pelo rei D. João IV, sendo os autores das denúncias, nesse ano, Martim Leitão, António de Serpa, Pedro Álvares, Lopo Sardinha, João Pizarro, Manuel Caldeira e Francisco de Andrade; em 1650, Francisco de Santa Maria, Pedro de Almeida e o mesmo Martim Leitão; em 1651, Lourenço de Castro; em 1652, Manuel Álvares Carrilho.
Quando Vieira parte em 1652 para Belém do Pará, já  tinha conhecimento dos delatores e do  cerco que a Inquisição lhe fazia.
Quando dez anos depois regressa a Portugal, com a queda da Rainha, vem encontrar um ambiente hostil. Sente que se acabara o privilégio de que gozara até então na corte portuguesa.

Comentários de Vieira às Profecias do Bandarra

Na continuação da sua defesa, apresenta aos inquisidores a segunda parte da sua argumentação, escrita em terras brasileiras no ano de 1659, tinha Vieira 51 anos. Nesta carta expõe ao amigo, Bispo do Japão, a sua visão sobre o Quinto Império do Mundo, com base numa profecia de Bandarra e subordinada ao título:

Esperanças de Portugal,
QUINTO IMPÉRIO DO MUNDO,
primeira e segunda vida de
El-Rei D. João, o quarto. Escritas por
GONSALIANES BANDARRA, e comentadas pelo
Padre António Vieira da Companhia
de Jesus, e remetidas pelo dito ao Bispo
do Japão, o Padre André Fernandes.

Em 1660 o Padre André Fernandes é intimado a entregar o escrito no Santo Ofício, organizando-se um processo para o prender.
Esta segunda parte da narrativa vieiriana é extensa e de tal modo assenta no pormenor das proposições do sonho profético do Bandarra, que tal facto, embora não cabendo por inteiro neste trabalho – dada a sua extensão - sobre as mesmas e de um modo sucinto tecem-se os seguintes comentários:

Dirigindo-se ao seu particular amigo, começa desta forma: Conta-me vossa senhoria prodígios do mundo, e esperanças de felicidades a Portugal, e diz vossa senhoria que todas se referem à vinda D'el-Rei D. Sebastião, em cuja dúvida e vida tenho já dito a vossa senhoria o que sinto. Por fim me ordena vossa senhoria, que lhe mande alguma maior clareza do que tantas vezes tenho repetido a vossa senhoria da futura ressurreição do nosso bom amo El-Rei D. João, o 4.° A matéria é muito larga, mas para se escrever tão de caminho como eu o faço, em uma canoa em que vou navegando no rio das Amazonas, para mandar este papel em outra que possa alcançar o navio que está no Maranhão de partida para Lisboa, e resumindo tudo a um silogismo fundamental, digo assim:

O Bandarra é verdadeiro profeta, o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o 4.° há de obrar muitas coisas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando.
E na continuação expende o seguinte raciocínio: Prova-se a consequência deste silogismo com um discurso claro e evidente, de que se Bandarra é verdadeiro profeta, como se supõe, se hão de cumprir suas profecias, e que há de obrar El-Rei D. João as coisas que Bandarra dele tem profetizado. (…)

E continua, apresentando o silogismo e a primeira proposição que faz parte do primeiro sonho de Bandarra:

Antes que cerrem quarenta
Erguer-se-á grã tormenta (…)

Há nisto uma alusão perfeita aos quarenta anos subsequentes ao início do século XVII e a um tempo situado ao ano anterior a 1640, quando os conjurados restauradores já se reuniam com o fim de expulsar de Portugal o domínio filipino.
Profetizou mais Bandarra – continua a dissertação de Vieira -  que o nosso rei havia de ser da casa de infantes, e que havia de ter por nome D. João, que havia de ser feliz e bem andante, e que com suma brevidade lhe haviam de vir novas de todas as conquistas a que ele chama terras presadas, as quais se declarariam pelo novo rei, e que dali por diante estariam firmes por ele, como tudo se tem visto inteiramente: os versos são no mesmo sonho:

Saia saia esse infante
Bem andante,
O seu nome é D. João
Tire e leve o pendão,
E o guião:
Poderoso e triunfante (…)
que não nomeio.

……………………………………………………………….

Termina, assim, a longa exposição das trovas:
 Finalmente, supõe Bandarra que há de haver glosadores ao seu texto, e eu suponho que haverá muitos mais à minha glosa, deixando entrever que um e outro teriam de se haver com as incompreensões e a hostilidade dos que não criam nas trovas do sapateiro de Trancoso e não entendiam a sua aceitação das mesmas.
Na sua despedida ao Bispo, diz Vieira:
Guarde Deus a vossa senhoria muitos anos, como desejo, e como estas cristandades hão de mister.
Camutá do Rio das Amazonas 29 de abril de 1659 anos.
O padre António Vieira

da Companhia de Jesus

Dir-se-á, a concluir, que se Simão Gomes foio um aríete do jesuitismo do seu tempo que o tinha à mão, tal não parece ter acontecido com "o Bandarra" cujas profecias foram devidamente consideradas pelo grande orador que foi o Padre António Vieira (1608-1697) que não foi seu contemporâneo, mas no qual acreditou de tal sorte que teve problemas sérios com a Inquisição.


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