Gravura publicada pela Revista "O Occidente"
de 21 de Junho de 1883
Todos nós e, neste caso, especialmente os homens, são para as suas mães o lírio entre os abrolhos, mas como ninguém, Gonçalves Crespo (1846-1883), falecido quase na mocidade, soube cantar - à sua mãe - esta ternura de se sentir assim e ser para ela - uma mestiça escrava casada com um comerciante português radicado no Brasil - a vida e a luz dos olhos.
Gonçalves Crespo no pouco tempo que viveu em Portugal - apenas 27 anos e onde se formou em Direito e exerceu o jornalismo e deu asas leves à sua veia de Poeta centrada na escola parnasiana - teve a dita do público português que o estimava ter apreciado as suas "Obras Completas" publicada pela sua própria mulher, Maria Amália Vaz de Carvalho.
Como homenagem ao Poeta que admiro desde a minha juventude, neste momento em que a curva da vida se vai acentuando, deixo ficar das "Miniaturas" algumas composições, a começar por esse "ALGUÉM", a sua mãe brasileira que ele imortalizou num soneto de uma inspiração que só acontece aos homens que Deus fadou para serem exemplos e testemunhos da vida que viveram e da Vida que ele sempre viu existir na mística toada que ele ouvia quando rezava "O ROSÁRIO", uma outra das suas celebradas composições poéticas onde o etéreo desfiar lhe mostrava presa nos seus dedos a Cruz ebúrnea onde agonizava o Cristo.
Eu curvo-me, respeitosamente, por quem - como ele - viu e sentiu daquele modo o Cristo do Calvário!
ALGUÉM
Para alguém sou o lírio entre
os abrolhos,
E tenho as formas ideais de
Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz
dos olhos,
E, se na Terra existe, é porque
existo.
Esse alguém, que prefere ao
namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de
vós!
Quando, alta noite, me reclino
e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse alguém abre as asas no meu
leito,
E o meu sono desliza perfumado.
Chovam bênçãos de Deus sobre a
que chora
Por mim além dos mares! esse
alguém
É de meus olhos a esplendente
aurora;
És tu, doce velhinha, ó minha
mãe!
in, Miniaturas
O ROSÁRIO
Quando à noite contemplo
taciturno
estas contas antigas, o rosário
das minhas orações,
vejo em minh'alma o poema
legendário
dos velhos tempos das
longínquas eras
de santas devoções.
A cruz ebúrnea, onde agoniza o
Cristo,
é de um lavor subtil que nos
revela
um génio magistral,
obra de monge em merencória
cela,
piedoso artista há muito adormecido
em velha catedral.
Tem séculos; talvez que nestes
contas
passasse outrora suas mãos
esguias
a castelã senil,
pensando triste nos saudosos
dias
em que a seus pés um menestrel
vibrava
o mimoso arrabil.
Talvez que este rosário
minorasse
as saudades da noiva lacrimante
que debalde esperou
em cada nau, que vinha do
Levante,
o seu donzel amado que partira
e nunca mais voltou.
Sobre a cota de um jovem
cavaleiro,
que o beijava por noite
estreladas
pensando em sua mãe,
ele assistiu às guerras das
cruzadas,
atravessou talvez a Terra Santa
e viu Jerusalém.
Talvez alguma freira, em triste
claustro,
de seus anos na doce primavera
só dele confiou
seus loucos sonhos de falaz
quimera,
e, apertando o rosário ao peito
ansioso,
consolada expirou.
Isto o que leio no rosário
antigo;
e, quando melancólico lhe beijo
as contas de marfim,
no ar escuto indefinido arpejo,
e então a crença, a mística
toada,
murmura dentro em mim.
in, Miniaturas
A SESTA
Na rede, que um negro moroso
balança,
qual berço de espumas,
formosa crioula repousa e
dormita,
enquanto a mucamba nos ares
agita
um leque de plumas.
Na rede perpassam as trémulas
sombras
dos altos bambus;
e dorme a crioula, de manso
embalada,
pendidos os braços da rede
nevada
mimosos e nus.
Na rede, suspensa dos ramos
erguidos,
suspira e sorri
a lânguida moça, cercada de
flores;
aos guinchos dá saltos na
esteira de cores
felpudo sagui.
Na rede, por vezes, agita-se a
bela,
talvez murmurando
em sonhos as trovas cadentes,
saudosas,
que triste colono por noites
formosas
descanta chorando.
A rede nos ares do novo flutua,
e a bela a sonhar!
Ao longe nos bosques escuros,
cerrados,
de negros cativos os cantos
magoados
soluçam no ar.
Na rede olorosa... Silêncio!
Deixai-a
dormir em descanso!...
Escravo, balança-lhe a rede
serena;
mestiça, teu leque de plumas
acena
de manso, de manso...
O vento que passe tranquilo, de
leve,
nas folhas do ingá;
as aves que abafem seu canto
sentido;
as rodas do «engenho» não façam
ruído,
que dorme a sinhá!
in, Miniaturas
UM NÚMERO DE
INTERMEZZO
Ria tomando o chá em torno à
mesa
Da Sociedade a flor;
E no campo de estéticas opostas
Discutia-se o Amor.
«O amor deve ser etéreo e
puro»,
O conselheiro diz:
Sorrindo a conselheira um ai!
abafa
Com gestos de infeliz.
Diz o cónego: «o amor destrói,
mas quando
Sensual, já se vê!»
A donzela pergunta
ingenuamente:
«Reverendo, porquê?»
A condessa murmura em voz
dolente:
« O amor é uma paixão.»
E lânguida uma chávena oferece
Ao pálido barão.
Era vago um lugar em torno à
mesa
Era o teu, minha flor!
Tu, só tu, poderias, se
quisesses.
Dizer o que era Amor!
in, Miniaturas