AO EXCELENTISSIMO SENHOR ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO
POR
Antero do Quental
Acabo de ler um escrito de v.
exa, onde, a propósito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se falia com
áspera censura da chamada escola literária de Coimbra, e entre dois nomes
ilustres se cita o meu, quase desconhecido e sobre tudo desambicioso.
Esta minha obscuridade faz com
que a parte de censura que me cabe seja sobre maneira diminuta: em quanto que,
por outro lado, a minha despreocupação de fama literária, os meus hábitos de
espirito e o meu modo do vida, me tornam essa mesma pequena parte que me resta
tão indiferente, que é como que se a nada a reduzíssemos.
Estas circunstancias pareceriam
suficiente para me imporem um silencio, ou modesto ou desdenhoso. Não o são,
todavia. Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que
a minha posição independentíssima de homem sem pretensões literárias me dá para
julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não
pretendo logra algum, mesmo ínfimo, na brilhante falange
1 No livro do Sr. Pinheiro Chagas
— Poema da Mocidade.
2 Os Srs. Teófilo Braga o Vieira
de Castro. . das reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora,
posso como ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais
luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso também falar livremente. E não é
esta uma pequena superioridade neste tempo de conveniências, de precauções, de
reticencias—ou, digamos a cousa pelo seu nome, de hipocrisia e falsidade. Livre
das vaidades, das ambições, das misérias d'uma posição, que não pretendo, posso
falar nas misérias, nas ambições, nas vaidades d'esse mundo tão estranho para
mim, atravessando por meio d'elas e saindo puro, limpo e inocente.
A este primeiro motivo, que é um
direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave meais obrigatório,
porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos
leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o
interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que
acreditamos a justiça. É ela que me manda falar. Não que a justiça e a verdade
se ofendessem com v. exa ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão
tão altas, que não têm olhos com que vejam as pequenas cousas e os pequenos
homens das ínfimas questiúnculas literárias d'um ignorado canto de terra, a que
ainda se chama Portugal.
Não é isso o que as ofende. Mas
as idas que estão por de trás dos homens; o mal profundo que as cousas apenas
miseráveis representam; uma grande doença moral acusada por uma pequenez
intelectual; as desgraças, tanto para reflexões lamentosas, d'esta terra,
reveladas pelas misérias, tão merecedoras de desprezo, dos que cuidam
domina-la; isso é que aflige excessivamente a razão e o sentimento, o que
prende o olhar ainda o mais desdenhoso a estas baças intrigas; isso é que
levanta esta questão do raso das personalidades para a elevar até á
altura.d'uma questão de princípios, e que dá ás ridículas chufas, que entre si
trocam uns tristes literatos, todo o valor d'uma discussão de filosofia e de
historia.
Sim, Exmo. Sr. Eu não sei se v.
exa tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a inteligência dos
hábeis, dos prudentes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em lhe faltando
uma cousa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes — a boa-fé.
A luz dela, porem, eu hei de
sempre ver uma péssima Acão, digna de toda a importância d'um castigo, nas
impensadas e infelizes palavras de v. exa, dignas quando muito d'um sorriso de
desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incomodo de erguer a
cabeça cie cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não
perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a
desonesta Acão de v. exa
Porque é uma Acão desonesta. O
que se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo v. exa o ignore, porque há
malévolos inocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma opinião
literária menos provada, uma conceção poética mais atrevida, um estilo ou uma
ida. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se á independência irreverente
de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos
mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A guerra faz-se
ao escândalo inaudito d'uma literatura desaforada, que cuidou poder correr
mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grão-mestres oficiais. A guerra
faz-se á impiedade destes hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade
dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não
escreveu nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende
pensar por si e ser só responsável por seus catos e palavras...
Agora quem move estes ridículos
combates de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o
espirito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é
a banalidade que quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a
vulgaridade que cuida que a forçam — nós só lhe queremos puxar as orelhas!
Isto, resumido em poucas
palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do
negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua retidão moral, do atentado
de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e
pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem ás virtudes de respeito
humilde ás vaidades omnipotentes, de submissão estupida, de baixeza e pequenez
moral e intelectual.
V. exa, com a imparcialidade que
todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal
feita, mas também pequena e miseravelmente feita. Mas é que a escola de Coimbra
cometeu efetivamente alguma cousa pior de que um crime — cometeu uma grande
falta: quis inovar. Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações
estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas,
do que envenenar com o erro as fontes do espirito publico, do que pensar mal,
do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa falta de querer caminhar
por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar. Por que? Porque
todos os outros crimes eram contra as idas: haveria sempre um perdão para eles.
Mas esta falta era contra as pessoas: e essas tais são imperdoáveis. Inovar é
dizer aos profetas, aos reveladores encartados: e há alguma cousa que vós
ignorais; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; há mundo além do
circulo que se vê com os vossos óculos de teatro; há mundo maior do que os
vossos sistemas, mais profundo do que os vossos folhetins; há universo um pouco
mais extenso e mais agradável sobre tudo do que os vossos livros e os vossos
discursos. » Isto, sim, que é intolerável! Isto, sim, que é infame e revoltante
e impio c subversivo! Contra isto, sim, ás armas, ergamo-nos na nossa força,
mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos três folhetins e um
prologo!...
V. exa fez-se chefe d'esta
cruzada 'tão desgraçada e tão mesquinha. Não posso senão dar-lhe os pêsames por
ião triste papel. Mas se eu, como homem, desprezo e esqueço, como escritor é
que não posso calar-me; porque atacar a independência do pensamento, a
liberdade dos espíritos, é não só ofender o que há de mais santo nos
indivíduos, mas é ainda levantar mão roubadora contra o património sagrado da
humanidade—o futuro.-^E secar as nascentes da fonte aonde as gerações futuras
têm de
beber. É cortar a raiz da arvore
a que os vindoiros tinham de pedir sombra e sossego. E atrofiar as idas e os
sentimentos das cabeças e dos corações que têm de vir.
O contrario d'isto tudo é que ò a
bela, a imensa missão do escritor. É um sacerdócio, um oficio publico e
religioso de guarda incorruptível das idas, dos sentimentos, dos costumes, das
obras e das palavras. Para isso toda a altura, toda a nobreza interior são
pouco ainda. Para isso toda a independência de espirito, toda a despreocupação
de vaidades, toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de autoridades,
nunca será de mais. O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o ouro
entre as areias grossas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos astros
o caminho da não por entre as ondas incertas. O sacerdote quer o coração limpo
de paixões, de interesses, para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O
escritor quer o espirito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e
respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só
assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o logra de
censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas
inconstantes e injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres,
mas elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de
si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o
belo, o verdadeiro.
Este é o escritor, o poeta, o
apostolo. Se o obrigassem a respeitos convencionais, a terrores supersticiosos
diante de certos homens, a espantos cegos diante de certas cousas; se o
fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar a porta do Panteno literário;
ele, o pobre, ficaria sempre curvo e submisso, humilde e sem força própria,
servo de alheias idas e apostolo apenas de palavras decoradas e vazias d'alma.
Como se havia ele pois erguer, entre seus irmãos, tão alto que seus olhos
fossem uns como parões para todos os outros olhos, a sua fronte uma como
montanha de luz; tão alto que as palavras de sua boca caíssem sobre as cabeças
como uma chuva benéfica e fecundante? Seria, depois das provas e das torturas,
das genuflexões e das baixezas da iniciação no grémio dos senhores, seria um
aleijão e não gigante, um aborto em vez de herói e, em vez de sobe exceder a
todos com a fronte, andaria sumido entre eles, visitado escassamente pelo sol e
pela luz. Elei, que não soubera procurar para si o seu caminho, como poderia
ele alumiar o dos outros? Elei, humilde, como ensinaria a altivez e a
dignidade? Respeitador de conveniências estéreis, como daria o exemplo das
revoltas fecundas? Sem alma, como a insuflaria no peito dos tristes e humilhados?
Sem vontade, como resistiria ás tiranias da opinião omnipotente, ao capricho
dos grandes, ás ambições, ás tentações?
As grandes, as belas, as boas
cousas só se fazem quando se é bom, belo e grande. Mas a condição da grandeza,
da beleza, da bondade, a primeira e indispensável condição, não é o talento,
nem a ciência, nem a experiencia: é a elevação, moral, a virtude da altivez
interior, a independência da alma e a dignidade do pensamento e do caracter.
Nem aos mestres, aos que a maioria boçal aponta como ilustres, nem á opinião, á
critica sem ciência nem consciência das turbas, do maior numero, deve pedir
conselhos e aprovação, mas 'só ao seu entendimento, á sua meditação, ás suas
crenças. Nesta escola do trabalho, da dignidade, das altas convicções, se
formam os homens em cujos peitos a humanidade encontra sempre um vasto lago
onde farte a sede de verdade, de consolações, de ensinos para a inteligência e
confortos para o coração.
No peito dos outros, dos que
andam de capella em capella na lida afanosa de incensar cada dia todos os
ídolos, dos que fazem da gloria uma bastilha para aventureiros levarem de
assalto, e não púlpito aonde se suba com respeito e amor, no peito d'esses não
habita mais do que ambição, vaidade, endurecimento e miséria. Esses lisonjeiam
os grandes; e os grandes dão-lhes a mão para que subam, e desprezam-nos depois.
Lisonjeiam as maiorias; e as maiorias inconstantes lançam-lhes no regaço um
pouco de ouro e algum aplauso de momento, e depois passam e esquecem. Afagam
todas as vaidades ; e têm em cada vicio humano um capital, cujo juro dissipam
em quanto vivos, porque essa moeda corrompida para mais ninguém serve. Em fim,
nos quinze ou vinte anos em que dão que falar ás gazetas, aos botequins, aos
grémios, a todos os vadios, a todos os fúteis, folgam, vivem alegres e
esquecidos de tudo quanto não seja a satisfação do que há no homem de mais
pequeno — a vaidade e o interesse.
Para os outros a obscuridade, e a
miséria muita vez — mas a estima dos melhores entre os homens pelo espirito, e,
o que excede tudo, a posse d'uma consciência superior a quanto não seja a
verdade, a justiça e a formosura. As idas serenas brilham-lhes na escuridão do
isolamento e alumiam-lhes com uma luz doce mas imensa toda a sua obscuridade.
Dão-se a desbaratar o mal dos outros homens, como muitos se dão a aumentar o
seu bem próprio. Vivem na região das bênçãos, escutando as palavras da boca
invisível, e com os ecos d'essa voz celeste Compse os humanos de esperança e de
amor para a humanidade. Morrem; mas morrem nobres c puros. Tudo isto porque
foram independentes. Não pertenceram a corrilhos; não elogiaram ninguém para
que os elogiassem a eles; não incensaram os fetiches dos ridículos pagodes
literários. Foram honrados. Foram simples.
A estes tais chamo eu poetas.
Porque nos ensinam o bem. Porque são originais e dizem sempre alguma cousa nova
á nossa curiosidade de saber. Porque dão com a elevação das vidas confirmação á
sublimidade dos escritos. Porque são tão poéticos como os seus poemas. Porque
vão adiante abrindo á luz e ao amor novos horizontes. Porque não conhecem
ambições nem orgulhos. Porque têm a cabeça do génio e o coração da inocência. E
por isso tudo que lhes chamo poetas.
Os outros adoram a palavra, que
ilude o vulgo, e desprezam a ida, que custa muito e nada luz. São apóstolos do
dicionário, e têm por evangelho um tratado de metrificação. Fazem da poesia o
instrumento de suas vaidades. Pregam o bem por uso e convenção literária,
porque se presta á declamação poética, mas praticam o egoísmo por índole e por
vontade. Fazem-nos descrer da grandeza humana, porque são uns sofismas que nos
mostram a pequenez e a má fé aonde as aparências são todas de nobreza. Preferem
imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir. Repetem o que está dico
há mil anos, e fazem-nos duvidar se o espirito humano será uma estéril e
constante banalidade. São os enfeitadores das ninharias luzidias. Põem os nadas
em pé para parecerem alguma cousa. São os ídolos literários da multidão que mal
sabe ler. São os filósofos queridos da turba que nunca pensou. São, em fim,
génios no Brasil como v. exa
Estes tais escusam da nobreza e
da dignidade: têm a habilidade e a finura. Para a obra que fazem, isso lhes
basta. Mas a obra, Exmo. Sr., é que é uma obra vulgar: bem feita para agradar
ao ouvido, mas estéril para o espirito. Osa bem, mas não ensina nem eleva. Ora
a humanidade precisa que a levantem e que a doutrinem. São, pois, necessárias
outras e melhores obras.
Mas, se já alguma hora da
historia impos aos que faliam alto entre os povos obrigações de seriedade, de
profunda abnegação, de sacrifício do eu ás tristezas e misérias da humanidade,
de trabalho e silencioso pensamento; se alguma hora lhes mandou serem graves,
puros, crentes, é certamente esta do dia de hoje, deidade de transformação
dolorosa, de asceticismo, de abaixamento moral, de descrença, que é o nosso
seculo. Refundem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idas.
Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O
futuro não aparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas
incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem-,
menos dispostas ao sacrifício e ás abnegações da consciência. Há toda uma
humanidade em dissolução, de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã,
crente e formosa.
Para este grande trabalho é que
se querem os grandes homens. Sairão esses herodes das academias literárias? das
arcádias? das sinecuras opulentas? dos corrilhos do elogio-mutuo? Sairão as
aguias das capoeiras? Saltarão as idas salvadoras do choque das maledicências e
dos doestos? Nascerão as dedicações do casamento das vaidades? Darão a grande
novidade os ledores de Horácio? Inventarão as novas formulas os que decoram as
frases rabugentas dos livros bolorentos que chamam clássicos? E os Sócrates' e
os Epicteto descerão para as suas missões das cadeiras almofadadas, das
rendosas conezias literárias, das prebendas, das explorações?
Fora dessa atmosfera corrupta, e,
quando não corrupta, pelo menos esterilizadora, é mais provável encontrarem-se
as condições que precisam para viver e crescer os homens uteis e necessários ás
transformações do espirito humano.
Não é traduzindo os velhos poetas
sensualistas da Grécia e de Roma;1 requentando fabulas insossas diluídas em
milhares de versos semsabores;1 não é com idílios grotescos sem expressão nem
originalidade, com alusões mitológicas que já faziam bocejar nossos avós;! com
frases e sentimentos postiços de académico erhetorico;4 com visualidades
infantis e puerilidades vãs;6 com prosas imitadas das algaravias místicas de
frades estonteados;' com banalidades;7 com ninharias;' não é, sobre tudo,
lisonjeando o mão gosto e as péssimas idas das maiorias, indo atrás d'elas,
tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as
ideias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a humanidade
contemporânea precisa para se reformar como uma fogueira a que a lenha vai
faltando.
Mas fora de tudo isto, d'estas
necedades tradicionais, é o nevoeiro, é o metafísico, é o inatingível—diz v.
ex."
Todavia, quem pensa e sabe hoje
na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim.
Não é a nossa divertida Academia das Ciências, que revolve, decompõe,
classifica e explica o mundo dos factos e das idas. É o Instituto de França, é
a Academia Cientifica de Berlim, são as escolas de filosofia, de historia, de
matemática, de física, de biologia, de todas as ciências e de todas as artes,
em França, em Inglaterra, em Alemanha. Pois bem: a Alemanha, a Inglaterra, a
França, comprazem-se no nevoeiro, são incompreensiva
1 Alude ás traduções de Ovídio e
Anacreonte.
2 Alude ás Cartas d'Exo e
Narciso.
3 Alude á Primavera.
4 Alude ao Tributo Português na
morte de Pedro V.
5 Alude aos tratados de Metrificação
e Mnemónica.
6 Alude a todas as obras em
prosa. 'Alude a todas as obras em verso.
7 Alude a todas as obras juntas,
prosa e verso.
viés e ridículas, são metafísicas
também. As três grandes nações pensantes são risíveis diante da critica
fradesca do Sr. Castilho. Os grandes génios modernos são grotescos e
desprezíveis aos olhos baços do banal metrificador português.
O grande espirito filosófico do
nosso tempo, a grande criação original, imensa da nossa idade, não passa de
confusão e imbróglio desprezível para o professor de ninharias, que cuida que
se fustiga Hegel, Stuart Mil, Augusto Comte, Herde, Golf, Vico, Michele,
Proudhon, Lite é, Feuerbach, Cruze, Strauss, Taine, Renan, Bucheira, Quinte, a
filosofia alemã, a critica francesa, o positivismo, o naturalismo, a historia,
a metafísica, as imensas criações da alma moderna, o espirito mesmo da nossa
civilização.... que se fustiga tudo isto e se ridiculariza e se derriba com a
mesma sem-cerimónia com que ele dá palmatoadas nos seus meninos de 30, 40 e 50
anos, de Lisboa, do Grémio, da Revista Contemporânea!
Quem seguir tudo isto vai com o
pensamento moderno; com as tendências da ciência; com os resultados de trinta
anos de critica; com a nova escola histórica; com a renovação filosófica; com
os pensadores; com os sábios; com os génios; vai com a França; vai com a
Alemanha — mas que importa? não vai com o Sr. Castilho! não vai com o novo
método repentista! não vai com o moderno folhetim português!
O metrificador das Cartas d'Exo
diz ao pensador da Filosofia da natureza — tira-te do meu sol! — O mitólogo do
dicionário da fabula diz ao profundo descobridor da Simbólica — és um ignorante
! — A retorica portuguesa diz á ciência, ao espirito moderno —cala-te d'aí,
papelão!
É que tudo isto não passa de idas.
Ora há uma cousa que o Sr. Castilho tomou á sua conta, que não deixa em paz,
que nos prometeu destruir... é a metafísica... é o ideal...
O ideal! palavra mística; de
gótica configuração; quási impalpável; espiritualista; impopular; que o artigo
de fundo repele; que desacreditaria o deputado do centro que a empregasse; que
Victor Hugo adora e de que se riem os localistas; que não chega para um
folhetim e que enche o maior poema; imensa aos olhos dos que a veem com os
olhos fechados e que nunca viram os que os trazem sempre arregalados; palavra
péssima para uma rima de madrigal; palavra que-faz desmaiar as beatas ;
grotesca num botequim; disforme numa sala; medonha numa assembleia de literatos
horacianos... decididamente v. exa devia odiar esta desgraçada palavra!
O ideal quer dizer isto: desprezo
das vaidades; amor desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do grande e
do bom; desdém do fútil, do convencional; boa fé; desinteresse; grandeza
d'alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberaníssimo bom senso...
tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras — ideal.
Por todos estes motivos ela é
sobremaneira odiável; ela é desprezível por todas estas causas; e v. exa tem
toda a razão, chacoteando, bigodeando, pulverizando esse miserável ideal. •
Ele, com efeito, nada do que ele
é ou do que vem dele, serve ou pode servir jamais para alguma cousa do que se
procura na vida, do que nela procuram os homens graves, os homens sérios, os
homens de senso e gosto como v. exa, que nada querem com ideais ou com idas,
mas só com realidades e com factos; para captar a admiração das turbas; o
aplauso das multidões; para formar um grande nome composto de pequeninas
letras; para merecer os encómios dos gramaticasses e o assombro dos burgueses;
para ser das academias; das arcádias; comendador; citado pelos brasileiros
retirados do comercio; decorado pelos diretores de colégio; o Tirteu dos
merceeiros e um Homero constitucional.
Para isto é que não serve o
ideal. E é por isso, pela sua absurda inutilidade, que v. exa o apeia com tanta
sem cerimonia do pedestal aonde, para o adorarem, o têm posto os loucos que
nunca foram nada neste mundo, nem das academias nem do conselho de instrução
publica, um Cristo, um Sócrates, um Homero...
Por isso é que v. exa faz muito
bem em o destruir, a esse pobre diabo do ideal; de o pôr fora de casa a
bofetões; de o banir das suas obras, que não há ver por lá nem a mais leve
sombra dele. Agradam a todos assim. Os versos de v. exa não têm ideal — mas
começam por letra pequena. As suas criticas não têm idas — mas têm palavras
quantas bastem para um dicionário de sinónimos. Os seus poemas líricos não são
metafísicos, não precisam d'uma excessiva atenção, de esforços de pensamento
para se compreenderem — e têm a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal.
Nas suas obras todas há uma falta tão completa d'essas incompreensibilidades,
que deve pôr muito á sua vontade os leitores que v. exa têm no Brasil. V. exa
diz tudo quanto se pode dizer sem idas — boa, excelente receita para não cair
nas nebulosidades do ideal. Os seus escritos são optemos escritos — menos as
idas: e é v. exa um grande homem — menos o ideal.
Dante, que era um bárbaro, e
Shakespeare, que era um selvagem, que rechearam as suas obras de ideal. Victor
Hugo também cá muito nesse defeito. V. exa é que o tem sempre evitado
cautelosamente, e por isso não é um bárbaro como Dante, nem selvagem como
Shakespeare, nem um mau poeta como Victor Hugo. Não é Dante, nem Shakespeare,
nem Hugo — mas é amigo do Sr. Vale, que fala latim como Mévio e Bávio.
Mas, Exmo. Sr., será possível
viver sem ideias? Esta é que é a grande questão. Em Lisboa, no curso de letras,
na academia, no conselho superior, no grémio, nos saraus de- v. exa, dizem-me
que sim, e que é mesmo uma condição para viver bem. Fora de Lisboa, isto é, no
resto do mundo, em Paris, Berlim, Londres, Turim, Goettingue, New-York, Boston,
países mais desfavorecidos da sorte, na velha Grécia também e mesmo na Bom
antiga, é que nunca poderão passar sem essas magnificas inutilidades. Elas o
muito que têm feito é servirem de entretenimento aos visionários como Cristo
(um metafísico bem nebuloso), como Sócrates, como Çakia-Mouni, como Maomet,
como Confúcio e outros sujeitos de nenhuma consideração social, que se
entretinham fazendo sistemas com elas, e com os sistemas religiões, e com as
religiões povos, e com os povos civilizações, e com as civilizações códigos,
leis, sentimentos, amores, paixões, crenças, a alma em fim da humanidade, cousa
que se não vê nem rende, e é também inútil e incompreensível. Eis aí o mais a
que as idas têm chegado. Creio que pouco mais ou nada mais têm feito do que
isto.
Em Lisboa é que nem isto. Não sei
se tem havido quem tente introduzi-las nessa capital. V. exa é que eu tenho a
certeza de que não era capaz d'essa má Acão. Por isso Lisboa não ache como
chairam Atenas e Roma, por causa das suas idas", e Jerusalém e outras
cidades infelizes, cujos poetas tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só
cousa ficou d'elas: uma memoria grande, honrosa, nobilíssima. Chairam, mas
deram ao mundo um espetáculo raro—o espirito e a consciência humana triunfando
da matéria e brilhando no meio das ruinas como a chama que se alimenta da
destruição da lenha d'onde sache e que a gerou. Eu não sei se v. exa acha isto
sensato e de bom gosto. Cuido que não. O que eu sei somente é que isto é
sublime
Paro aqui, Exmo. Sr. Muito tinha
eu ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a v.
exa, aos seus cabelos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra frase
não tão reverente e tão lisonjeira como eu desejara. Mas é que realmente não
sei como hei de dizer, sem parecer ensinar, certas cousas elementares a um
homem de sessenta anos; dizê-las eu com os meus vinte e cinco! V. exa aturou-me
em tempo no seu colégio do Pórtico, tinha eu ainda dez anos, e confesso que
devo á sua muita paciência o pouco francês que ainda hoje sei. Lembra-se, pois,
da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria agora pode-lo seguir
humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e filosofia como
outrora em gramatica francesa, na compreensão das verdades eternas como em
outro tempo no entendimento das fabulas de La Fontaine. Vejo, porem, com
desgosto que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco anos do culto das
autoridades dos dez; e que saber explicar bem Telémaco a crianças não é
precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a homens o que sejam
razão e gosto. Concluo d'aqui que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a
madureza das ideias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco
anos têm-me as verduras de v. exa convencido valerem pelo menos os seus
sessenta. Posso pois falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos brancos
de v. exa passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as
garridas e pequeninas cousas, que sabem dele, confesso não me merecerem nem
admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me
tanto como a gravidade numa criança. V. exa precisa menos cinquenta anos de
idade, ou então mais cinquenta de reflexão.
E por estes motivos todos que
lamento do fundo d'alma não me poder confessar, como desejava, de v. exa
Coimbra 2 de Novembro de 1865.
Nem admirador nem respeitador
Antero do Quental
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BOM-SENSO E BOM-GOSTO
RESPOSTA Á CARTA QUE O SR.
ANTHERO DO QUENTAL DIRIGIU AO Exmo. SR. ANTÓNIO FEL1CIANO DE CASTILHO
Por: MANUEL ROUSSADO
Achando-se de tempo exausta a
edição da carta, que sob o titulo Bom-senso e bom-gosto, resposta ao Sr. Antero
do Quental, escrevera o Sr. M. Roussado, determinámos reimprimi-la, para
satisfazer ao desejo e exigências de muitos, que pretendem inteirar em coleção
as peças todas deste notável processo literário. Ao realizar o propósito ocorreu-nos
que prestaríamos á curiosidade do publico um agradável serviço adicionando a
esta nova edição uma interessante missiva, que de pais estranho recebêramos há meses
sobre o assumpto sujeito, e que no voto de pessoas inteligentes a quem a
mostramos foi tida por digníssima de vulgarização, com quanto seu autor não a
destinasse de certo a ver a luz da imprensa. Como pois nem temos autorização
sua, nem contamos obtê-la, quando a solicitássemos, porque da sua provada modéstia
só tínhamos a esperar uma recusa formal, aí a damos anonima, e não sem bastante
pesar da nossa parte. Os que a lerem melhor poderão julgar se é ou não exato o
conceito que de quem a escreveu expressava não há muito tempo em obra impressa
um dos nossos escritores de maior vulto, qualificando-o de «mancebo tão
«erudito como talentoso, que deve exclusivamente á mais «firme e honrosa
vontade, e aos seus únicos recursos o largo «adiantamento literário a que vai
subindo, e que promete «ás letras pátrias um primoroso cultor.»
E d'aqui lhe pedimos desculpa, se
n'isto o ofendemos.
o Editor. Lisboa 11 de junho de
1866.
……………………………………………………………………………………………………………..
Acabo de ler as obras de v. sã, e,
pasmado ainda com os raios luminosos que me deram de chapa nos olhos do
espirito, pego na pena para expandir os eflúvios da minha admiração, como quem
abre uma válvula de segurança, para evitar quaisquer detonações d'esta preciosa
machinha, que em linguagem rasteira se chama homem, e a que v. sã nas suas admiráveis
Odes chama—proscrito rei, mendigo escuro.
Eu aceito esta denominação,
apesar de não ser trigueiro, e de ter os meus seis vinténs.
Não sei se v. sã se escandaliza
por não lhe dar excelência, mas eu que me sinto banzado ao elevar a minha
palavra até uma das mais brilhantes estrelas da constelação coimbrã, ignoro também
por falta de uso que tratamento pertence pela Constituição do Idealismo aos que
voam lá por cirna, atravessando os espaços infinitos aonde não chegam as exalações
mefíticas do lodaçal mundano, nem o tratado de civilidade, nem as futilidades
da gramatica terrena, nem as pequices da metrificação sublimar.
Desculpe-me pois v. sã se o não
trato como devo, acreditando nas expansões sinceras do meu eu, que se confessa
humilde criado do eu de v. sã
Ainda não tinha lido as Odes
modernas, quando me chegou ás mãos a carta que v. sã escreveu ao Sr. António
Feliciano de Castilho, a esse caturra intolerável que teima na guerra desleal
contra os inovadores que vem do norte, anunciando a nova aurora da independência
literária, em que serão quebrados os ferros que algemam a Ieda, e os seus apóstolos
rasgarão os horizontes luminosos sem o auxilio inútil da instrução secundaria.
Não tinha lido as Odes que v. sã
atirou aos ventos da publicidade, e fui logo compra-las, porque a aludida carta
tinha chocado a minha alma, que para logo concebeu o feto preciosíssimo do
Ideal. Fui compra-las, e o próprio livreiro que más vendeu, tocado sem duvida
pela sublimidade da poesia, e pelo levantamento do espirito que se admira no
parto de v. sã, envergonhou-se ao dizer-me o preço do livro; voltou o rosto,
tapou os olhos ao estender a mão tremente ao baixo e vilíssimo cruzado.
Quanto a mini, sabe Deus o que também
me custou aquilo
Ah l não foi dinheiro perdido. Aqueles
quatro tostões foram sementes de seara nova do meu espirito, e os benéficos
resultados da semeadura milagrosa estou-os já sentindo, porque olho desdenhoso
para tudo que me cerca, porque já vendi o Dicionário de Moraes que me obstruía
a mesa do trabalho, porque estou com vontade de trocar os nomes ás coisas, e já
me doe o pescoço de olhar lá .para cima onde há montanhas de luz, e aonde o vocabulário
é ad libi tum de quem falia,
Não, não foi dinheiro deitado á
rua esse que o livreiro me aceitou envergonhado pelas odes com que eu hei de ir
remando para as praias do futuro, em cujas ago as cristalinas se levantarão cálices
arrendados de safira e prata, que servirão para barcas de banhos, e como a pág.
55 v. s." diz:
«Com seu olhar d'amor quem se
vestiu?»
Creio que na poesia (Teças
futuras Deusas dos mares as vistas puríssimas do amor hão de substituir as
camisolas de baeta e as cocas de algodão.
Este arrojo da poesia inovadora
faz-me lembrar uma historia que eu peço licença para contar a v. sã Dois
beberrões celebres apostaram entre si que beberia de graça meia canada aquele
que a bebesse sobre comida mais insignificante. O primeiro comeu uma azeitona e
despejou o copo, o segundo cheirou uma azeitona e enxugou o sino grande.
Entre os selvagens, uns vestem-se
com três quartas de pano cru, outros com um bracelete, alguns com um simples búzio,
o Sr. Antero do Quental, sublime como o homem que cheirou a azeitona, veste com
um olhar a geração futura.
E não digam os homens da prosa
que o vestuário será então igual para todos, porque a diversidade das toilettes
imprimiu-a Deus na elegância visual das criaturas, fazendo dos olhos outros
tantos alfaiates. O olhar da virgem formosíssima corresponde á tesoura do Kiel,
a vista ordinária da mulher do povo será uma espécie de remendão de escada.
E como v. sã rasga a membrana que
envolve o ovário da geração contemporânea, na qual germina p futuro! E o trajo
da gente voltará á simplicidade primitiva; e o olhar d'amor tomará o logra da
parra nos Apolos de gesso; e os defluxos abandonarão a raça humana; e as
lavadeiras fugirão espavoridas em procura de gente que se vista por diverso
teor.
Há de ser a idade dos aos. A
completa independência do pensamento, que v. sã prega na sua preciosíssima
carta, não podia deixar de trazer a independência da peite humana. A nudez da
alma, que bate as azas cândidas para as regiões do infinito, não podia deixar
de ser acompanhada pela nudez do corpo, que demanda os bafejos continuados das
brizas; porque os tecidos são enfeites e ninharias luzidias, como os preceitos banais
da arte o são para o pensamento.
As aspirações de v. sã hão de ser
realizadas. No futuro a Ieda será livre: esta rainha esplendida, a que v. sã
presta o devido culto, pisando as regras de uma ortografia medíocre, para a
escrever com I grande, será a dominadora do universo.
Os vates abandonados a si mesmos
terão a elevação moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma.
Tudo será independência e liberdade, os versos parecerão prosa, como v. sã tas
ver em centenares de exemplos tais como o seguinte da la pagina das Odes
Modernas:
«Vai, mas ignora sempre quem o
leva e o da pagina 11:
«Deus, não pôde durar mais que
alguns anos.
Não haverá medição para os
versos, como v. sã, sublime adivinhador, já faz ver por exemplo no seguinte hendecassílabo:
«E como o que n'uma mina vai de
bruços;
Ou n'estoutros, não menos
significativos:
«Do pôr do sol astrónomos do passado.... «A
aurora é o Suruí corda do universo.... «Este, e aquele deixa-lo em meio da
rua
As dificuldades estupidas da rima
desaparecerão por uma vez; as palavras rimarão comigo mesmas, como por exemplo
na seguinte colexa a pág. 23 do precioso livro de v. sã:
«É porque um Ceo maior nos mostre, e c nosso..
Esse Ceo e esse espaço! é tudo nosso!
v
N'essa cidade os Deuses serão
rebaixados á condição de letreiros, como se vê da seguinte quadra a pág. 43.
«A pálida coorte dos proscritos Que tem nos
rostos estampada a forno; Que em quanto o frio os ore e os consome. Trazem no
coração Deuses escritos.
E a regeneração há de chegar aos
domínios da Astronomia. Os raios andarão com as estreitas ao eólio, como muito
bem se pôde ver do seguinte verso de v. sã a pág. 47:
«Erguendo um filio: como um raio
a estrela.>
Que as leis da gravitação
universal serão banidas, adivinhasse pelos seguintes versos a pág. 52:
«Entre os astros, e os astros como ateis Já nos
querem mais lei que o infinito.
Os estofadores tomarão parte no sistema
planetário, e, o que ainda é mais, os doceis e as bambinelas ficarão por
debaixo das camas, como se conhece da seguinte quadra a pág. 57:
• Oh! o noivado bárbaro! o noivado Sublime! aonde os Ceos, os coos
ingentes, Serão leito de amor—tendo pendentes Os astros por dossel e
cortinado!
E os cometas descerão ã nossa atmosfera
e girarão por ela como balões. Vid. pág. 89:
«Os cometas que ao ar andam
subidos.
E assim como os olhares constituirão
o vestuário, as almas serão xailes-mantas, e os peitos serão transformados em trapézio.
Vid. pág. 63:
«Estendei vossas almas como manto? Sobre a
cabeça d'eles... e do peito Fazei-lhes o degrau, onde com jeito Possam subir a
ver os astros santos...
O Sr. Antero do Quental refere-se
aos poetas do futuro, e muito bem fez em recomendar-lhes o jeito n'esses voos
de Léotard.
E outras mil coisas hão de
acontecer, como v. s.*, que é o prometido das letras, anuncia brilhantemente á
terra e aos astros nas suas admiráveis profecias.
V. sã não pôde conter a
indignação quando viu a carta do Sr. António Feliciano de Castilho publicada conjuntamente
com o Poema da Mocidade do Sr. Pinheiro Chagas, carta em que o tradutor de Ovídio
alcunhou de nevoeiro e de inatingível o estilo que fulge lá para as bandas do
norte, e que em borbotões de luz ameaça iluminar tudo. V. s." indignou-se
e veio lançar por terra esta chancelaria literária de Lisboa, aonde só se
passam títulos de capacidade aos insignificantes que não progridem, nem inovam
como v. sã
Diz v. sã na sua inimitável
carta: «Refluem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idas.
Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O
futuro não aparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas
incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem,
menos dispostas ao sacrifício, e ás abnegações da consciência. Há toda uma
humanidade em dissolução, de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã,
crente e formosa. Para este grande trabalho é que se querem os grandes homens.»
Isto diz v. sã, e como tudo está
abalado, e a humanidade em dissolução, é que v. sã tão acremente censura o Sr. António
Feliciano de Castilho, por não acordar ao toque de rebate, por não meter mãos á
grande obra do futuro alistando-se sob o cominando dos que assentaram as suas
trincheiras contra o senso comum, e deixar-se ficar na paz estéril com as suas traduções
de Ovídio, com a sua Primavera, com os seus Tratados de Metrificação.
Enquanto o Sr. Castilho assim se
conserva inabalável no meio das ondas revolucionarias, v. sã Sr. Antero, famoso
Quixote da Poesia, combate pela Ieda, e derruba os moinhos de vento, que se opõem
á sua passagem.
E há de vencer: quem tem os
arrojos de v. sã pôde muito bem chamar seu ao mundo.
Refundem-se as crenças antigas e
os antigos costumes, por isso v. sã começou o seu poema com a partícula adversativa
mas
«Mas o homem, se é certo que o
conduz.
É este o primeiro verso do seu tesouro
de inesgotáveis riquezas. E v. sã não para; a extração da humanidade viva e
formosa precisa de v. sã, e por isso o seu novo poema há de naturalmente
começar por ponto e virgula.
Ah l abençoados quatro tostões
que o livreiro me lesse
béu envergonhado em troca das
deliciosas profecias da v. sã! Com a leitura das obras do Sr. Quental a
humanidade há de brevemente sentir o espirito aberto para o belo ideal, e a inteligência
fechada para as secções em que se divide a gramatica mundana.
E eu estou desconfiado de que lá
em cima por onde v. s.* anda, isto de se falar acerca do impalpável consiste em
uma espécie de sorteio, como eu já tinha ensaiado antes de haver lido as Odes
Modernas.
Tinha eu imaginado a Deus dizendo
ao Universo a grande missa da criação. Precisava de um pensamento condigno do
assumpto e não o achava. Deitei n'um chapo três palavras Er três papelinhos
para ver o que sabia. As palavras eram: estala, veste, infinito, e como estas
palavras precisavam de colchetes que as ligassem, deitei mais no chapo em
quatro papelinhos diferentes o tempero seguinte: a—do—que—o.
Chocalhei tudo, tirei ao acaso
papelinho por papelinho e saiu-me:
«O que veste a estola do
infinito:
Bravo! exclamei; e qual foi a
minha admiração quando a pág. 39 das profecias de v. s.* encontro exatamente o
mesmo verso!
Teria v. sã para o fazer usado da
mesma gíria que eu usei? Creio que sim, creio que a grande musa do acaso, é que
é a inspiradora dos vates idealistas que fulguram em Coimbra.
«O que veste a estola do infinito
(!)
Os reptis do charco inundo da
vida dizem naturalmente que é asneira, mas eu estou com v. sã, digo que é
sublime.
Vão lá tapar a boca aos
maldizentes de Lisboa, os quase andam por aí a gritar que deu o mal das vinhas
na literatura coimbrã, que é preciso serem enxofrados os vates idealistas e inovadores
das margens do Mondego, e que ás autoridades de Lisboa cumpre estabelecer o
cordão sanitário que nos preserve da invasão, da epidemia!
Caminhe v. sã, progrida com as
suas inovações desentranhando as sociedades do futuro; e deixe bradar no
deserto estes imbecis. Perdoe-lhes, Ilmo. Sr., que eles não sabem o que fazem.
Ignoram que o que é grande lá em cima por onde v. sã anda, é pequeno cá embaio
por onde rastejam.
A linguagem transcendental que abre
os horizontes imensos do futuro é estranha cá nos arruamentos de Lisboa, e por
isso, quando o povo ignaro a escuta na boca de um ou outro, exclama:
coitadinho, tem aduela de menos.
Eu porém, que os admiro, peço
licença para erguer-lhes aqui um momentozinho no seguinte
SONETO
Cabelo era desalinho, hirsuto e farto,
A face macilenta, o olhar
incerto,
Distingue uns vates CTT
estrangeiro enxerto,
Que ao mundo impingem
transcendente parto.
Tremem nas lycras os bordões de
esparto
Do místico aranzel rompe o
concerto;
Um diz que o sol é hóstia, um
mais esperto
Diz que o Ceo é quintal e o Deus
lagarto.
Outro de ventas no ar, imóvel,
hirto,
Clama que o Padre Eterno é
semimorto,
Aquele aos astros chama etéreo mirto.
Deixam com seu cantar o vulgo
absorto,
Que esse grupo fatal, com magoa
advirto,
Das hortas do Ideal regressa
torto.
Por tudo e por muito mais se
confessa admirador permanente
MANOEL ROUSSABO.
CARTA AO EDITOR
.... SR. A. M. PEREIRA Lio de
Janeiro, 24 de janeiro de 1866.
Agradeço a v. ter-se lembrado de
mim com a remessa do folheto Bom-senso e bom-gosto, acudindo d'Este modo á
natural impaciência em que previu que eu ficaria por tomar conhecimento da
questão.
Igual favor desejarei merecer-lhe
sempre que alguma novidade como esta, e a do casamento civil, venha pôr em
alvoroço a republica das letras, republica em todo o rigor do sentido popular
que damos á palavra. Eu sou, já de anos, por gosto e sistema, colecionador
d'estas curiosidades literárias. Bem o sabe v. , que tanto me tem ajudado na
minha inofensiva paixão, pois é aos seus pacientes esforços que principalmente
devo o ver a esta hora tão medrados alguns corpos de processos celebres, tais
como Verdadeiro Octófido de Estudar, Camões e José Agostinho, Eu e o Clero,
Ordens religiosas, Irmãs da caridade, União Ibérica, Pena de morte, Bíblias
protestantes, etc. Por isso mesmo recomendo instantemente a v. que não deixe de
enviar-me o que for aparecendo, não só com referencia a qualquer dos assunptos
notados, mas ainda á Vida de Jesus de Renan, ao padroado do Oriente, ao folheto
do Bom-senso, e bem assim tudo o que houver agora publicado sobre a questão do
casamento civil.
Dizem-me que o folhetim do Sr.
Pinheiro Chagas cm resposta aos inovadores de Coimbra, saiu avulso, e eu
desejaria obter a todo o preço um exemplar.
Quanto a mim é a cousa mais
substancial que até aqui se tem escrito, posto haja paginas excelentes, pelo
vigor e pela eloquência, no folheto do Sr. Júlio de Castilho, e rasgos de humor
caustico deliciosos no do Sr. Roussado. O folhetim do Sr. Teixeira de Vasconcelos
acende uma vela a Deus e outra ao diabo. Aos seus olhos o autor das Odes
modernas mede a mesma estatura do Sr. A. F. de Castilho, e entre um e outro
nome o folhetim não ousa decidir-se l As Teocracias Literárias, essas
parecem-me a composição mais pífia, mais peca, e mais seca que a polemica tem
brotado de si.
O Sr. conselheiro Castilho
terminou a publicação das dez cartas sobre escola Coimbra. São o comentário
lacerante de muitos dos infinitos disparates em que enxameiam as produções do Sr.
Quental. Depois d'esta formidável fustigação seguia-se a vez do Sr. Teófilo
Braga. Pudemos porém persuadir o Sr. Castilho a gastar olhem te operam mais
proveitosamente.
Eu sou um admirador sincero dos
talentos poéticos do autor da Visão dos Tempos. Intendo, porém, como toda a
gente, que os seus escritos em verso não tem a intenção, o alcance filosófico,
que o poeta lhes quer atribuir, e creio que sem os aparatos de que ele os
precede, sem as estéticas, as tricotomias, as asceses, as géneses, as sindéreses,
as relatividades e as absolutiva ades, os simbolismos telúricos e as expressões
mórficas, o publico lh'os aceitaria e aplaudiria de muito melhor grado.
Qual é o homem de mediana
erudição em Portugal, que, pondo diante dos olhos, não digo já as Antiguidades
do direito além, mas simplesmente a obra com que Michele tornou conhecido o
livro de Garim, não seria capaz de escrever acerca das origens a que se conveio
em chamar poéticas do direito português uma obra mais farta, mais instrutiva, e
sobretudo muito mais amena que a do Sr. Teófilo Braga?
Apesar do mau estilo em que são escritos,
há merecimento—quem o nega?—nos seus artigos de literatura portuguesa. Mas, já
o Sr. Pinheiro Chagas o disse, esses artigos não dão um passo para além dos prólogos
de Garrett. Veja-se por exemplo o que versa sobre a lenda do Fausto. A ida mãe
deparou-alva um dito das Viagens na minha terra: a obra francesa de Mary sobre
as Lendas da idade-média; o drama de Marlote na versão francesa do filho de V.
Hugo, e a versão francesa da Mística de Gores fizeram o resto. Quem tiver visto
na sua nova edição a Historie de Ia literatura eu colporragia de Carlos Missar,
pasma necessariamente da penúria do artiguito acerca da literatura de cordel.
Entretanto, com que facilidade e felicidade, com que graça, com que sabor não
foi o assumpto indicado por Garrett á frente do jornal A Ilustração! A que se
reduzem pois as invenções do Sr. Teófilo Braga? Quase são os sistemas, os
pontos de vista novos, os factos que ele não achasse já apurados ás margens do
Sena pelos seus autores preferidos? Um: a influencia do ciclo greco-romano na
poesia portuguesa, que o ilustro critico foi estudar a Cascais, d'onde no-la
trouxe comprovada (a tal influencia e também a tradição da vinda de Ulisses)
com um documento incontrastável, um documento histórico gravíssimo e vetustíssimo—as
decimas que principiam:
• «Ulisses, herói matreiro,
Andava apanhando ninhos, E vendia os
passarinhos Por avultado dinheiro....!!!
Voltando porém, ao folheto do
Bom-senso. Que repreende o Sr. A. F. de Castilho á escola de Coimbra? A
escuridade dos conceitos e da linguagem. A este, o verdadeiro, o único ponto da
questão, com que responde o Sr. Quental? Com um rol de nomes de autores
forasteiros — Quinte, Lite é, Proudhon, Taine, etc.
Mas Taine, Lite é, Quinte e Renan
são claríssimos. Más á suma elegância, á perspicuidade suprema do seu estilo
deveu Proudhon a difusão das suas idas revolucionarias, das suas doutrinas, dos
seus paradoxos destruidores. Os mesmos dotes nas obras que firmaram a reputação
de Michele, o qual apenas em algum livro moderno (Torceie, Bill de l'humaniu)
me parece deslizar d'essa grande virtude
da clareza, a que ele próprio
chama a probidade das línguas, e que com muito mais razão deve ser a probidade
do escritor.
Se no idioma próprio Stuart Mil
se nos afigura menos límpido que nas paginas de Dupont-White, a culpa não a
imputemos a olhe, mas ao nosso escasso inglês. Dos autores alemães não falo. Os
inovadores de Coimbra leem-nos reu francês como eu leio alguns, sem que por
isso me declare alistado nu legião dos pequenos deuses bastantemente satisfatórios,
que substituíram Jeová, o defunto Sénior dos Exércitos. E tanto é verdade que
só em francês os leem, que o Sr. Quental até os cita em francês, como se pôde
ver nas Odes modernas, a pág. 6.
Ora, dos escritores tenebrosos
com que a escola de Coimbra se defende, qual é o que, fora da circunscrição geográfica
do seu pais, em França por exemplo, conseguiu fazer-se recebido, sem se
subordinar ás exigências do espirito daquela nação, sem se transformar, sem se acomodar
ao «gosto francês?»
Ferrari enriquecera de notas
explicativas a sua edição da Ciência Nova; os princípios d'Este livro tinham
sido expostos por Balance; e todavia o nome de Viço permaneceu ignorado até ao
momento em que Michele tomou a si explicar e vulgarizar as suas idas. O estilo
das obras alemãs de H. Heiner é por ventura o das versões feitas a seus olhos,
ou o das obras escritas anos mais tarde em Paris?
Quanto á Simbólica de Guingão,
sabe-se que é antes um labor de interpretação original do que a versão da obra
de Cruze. Vera, o tradutor da Filosofia da natureza, viu que não bastava dar em
francês as obras de Hegel. Ei-lo logo a repetir explanação sobre explanação, volume
sobre volume—Introdução á Logica, Comentário perpetuo, Iiitroducção d Filosofia,
O hegelianismo c. a filosofia—que servissem de glossa e fossem um passaporte
dos escritos do reformador de Stuttgard... Pois nem assim creio que conseguisse
melhorar em nossos dias a posição do seu autor, o qual bem se conhecia, e como
tal, diz um critico francês, se plagiante, de som vivente, de favor até compres
que par um Setil discipline, qui meme 1'avait Recomprais.—Mas, quer v. um
exemplo mais vivo da dificuldade com que se fazem aceitas ao resto da Europa as
especulações, as caligens da filosofia germânica? A versão da Vida de Vestis de
Strauss, publicada em 1839, só dezassete anos depois teve segunda edição. E contudo
o tradutor chamava-se Emílio Lite é.— Aparece em 1863 a obra de Renan, obra condenada
pelo próprio Proudhon (Do príncipe de Var, l,° volume, das obras póstumas) e
pelos racionalistas da Alemanha, obra cem vezes inferior, em valor cientifico,
á de Strauss, e em cinco meses exarem-se nove edições! O estilo fizera a
reputação d'esse livro inconsistente e contraditório, prenhe de frases
dubitativas, de alegações falsas e de risíveis conjeturas.—Mas não é tudo. Na
mesma língua, de francês para francês, se tem visto serem ás vezes necessários
estes trabalhos de tradução—o trabalho de Dumas filho vertendo na admirável
língua dramática do Suplicio de uma mulher a conceção absurda de E. de Girardes.—Assim
é que as difusas e obscuras teorias do fundador do positivismo, Augusto Comte,
careceram de ser depuradas, resumidas e aclaradas pela elegante pena de Lite é,
sem o que parece que ainda hoje o não intenderiam no seu pais.
Mas agora reparo, que tenho
levado a tagarelar sem tom nem som por todo este papel. Cinjo-me já á resposta
das cartas de v. , e peço desculpa da minha enfadonha verbiagem.
Confrontando a sua correspondência
com a conta corrente que me acaba de enviar, vejo (Omite-se o resto da carta,
por versar exclusivamente sobre negócios de interesse particular e comercial),
Sempre
De v.
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