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segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Questão Coimbrâ - Carta de Antero a Castilho e resposta de Manuel Roussado


CARTA  BOM SENSO E BOM GOSTO
AO EXCELENTISSIMO SENHOR ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO

POR
Antero do Quental


Acabo de ler um escrito de v. exa, onde, a propósito de faltas de bom-senso e de bom-gosto, se falia com áspera censura da chamada escola literária de Coimbra, e entre dois nomes ilustres  se cita o meu, quase desconhecido e sobre tudo desambicioso.

Esta minha obscuridade faz com que a parte de censura que me cabe seja sobre maneira diminuta: em quanto que, por outro lado, a minha despreocupação de fama literária, os meus hábitos de espirito e o meu modo do vida, me tornam essa mesma pequena parte que me resta tão indiferente, que é como que se a nada a reduzíssemos.
Estas circunstancias pareceriam suficiente para me imporem um silencio, ou modesto ou desdenhoso. Não o são, todavia. Eu tenho para falar dois fortes motivos. Um é a liberdade absoluta que a minha posição independentíssima de homem sem pretensões literárias me dá para julgar desassombradamente, com justiça, com frieza, com boa-fé. Como não pretendo logra algum, mesmo ínfimo, na brilhante falange

1 No livro do Sr. Pinheiro Chagas — Poema da Mocidade.

2 Os Srs. Teófilo Braga o Vieira de Castro. . das reputações contemporâneas, é por isso que, estando de fora, posso como ninguém avaliar a figura, a destreza e o garbo ainda dos mais luzidos chefes do glorioso esquadrão. Posso também falar livremente. E não é esta uma pequena superioridade neste tempo de conveniências, de precauções, de reticencias—ou, digamos a cousa pelo seu nome, de hipocrisia e falsidade. Livre das vaidades, das ambições, das misérias d'uma posição, que não pretendo, posso falar nas misérias, nas ambições, nas vaidades d'esse mundo tão estranho para mim, atravessando por meio d'elas e saindo puro, limpo e inocente.

A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, acresce um outro, e mais grave meais obrigatório, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos a justiça. É ela que me manda falar. Não que a justiça e a verdade se ofendessem com v. exa ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão tão altas, que não têm olhos com que vejam as pequenas cousas e os pequenos homens das ínfimas questiúnculas literárias d'um ignorado canto de terra, a que ainda se chama Portugal.

Não é isso o que as ofende. Mas as idas que estão por de trás dos homens; o mal profundo que as cousas apenas miseráveis representam; uma grande doença moral acusada por uma pequenez intelectual; as desgraças, tanto para reflexões lamentosas, d'esta terra, reveladas pelas misérias, tão merecedoras de desprezo, dos que cuidam domina-la; isso é que aflige excessivamente a razão e o sentimento, o que prende o olhar ainda o mais desdenhoso a estas baças intrigas; isso é que levanta esta questão do raso das personalidades para a elevar até á altura.d'uma questão de princípios, e que dá ás ridículas chufas, que entre si trocam uns tristes literatos, todo o valor d'uma discussão de filosofia e de historia.

Sim, Exmo. Sr. Eu não sei se v. exa tem olhos para ver tudo isto. Cuido que não: porque a inteligência dos hábeis, dos prudentes, dos espertíssimos é muitas vezes cega em lhe faltando uma cousa bem pequena, que se encontra nos simples e nos humildes — a boa-fé.

A luz dela, porem, eu hei de sempre ver uma péssima Acão, digna de toda a importância d'um castigo, nas impensadas e infelizes palavras de v. exa, dignas quando muito d'um sorriso de desdém e do esquecimento. E se eu nem sequer me daria ao incomodo de erguer a cabeça cie cima do meu trabalho para escutar essas palavras, entendo que não perco o meu tempo, que sirvo a moral e a verdade, censurando, verberando a desonesta Acão de v. exa

Porque é uma Acão desonesta. O que se ataca na escola de Coimbra (talvez mesmo v. exa o ignore, porque há malévolos inocentes e inconscientes), o que se ataca não é uma opinião literária menos provada, uma conceção poética mais atrevida, um estilo ou uma ida. Isso é o pretexto, apenas. Mas a guerra faz-se á independência irreverente de escritores, que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência. A guerra faz-se ao escândalo inaudito d'uma literatura desaforada, que cuidou poder correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grão-mestres oficiais. A guerra faz-se á impiedade destes hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não escreveu nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser só responsável por seus catos e palavras...

Agora quem move estes ridículos combates de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o espirito de rotina violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a forçam — nós só lhe queremos puxar as orelhas!

Isto, resumido em poucas palavras, quer dizer: combatem-se os hereges da escola de Coimbra por causa do negro crime de sua dignidade, do atrevimento de sua retidão moral, do atentado de sua probidade literária, da impudência e miséria de serem independentes e pensarem por suas cabeças. E combatem-se por faltarem ás virtudes de respeito humilde ás vaidades omnipotentes, de submissão estupida, de baixeza e pequenez moral e intelectual.

V. exa, com a imparcialidade que todos lhe conhecemos, deve confessar que uma guerra assim feita é não só mal feita, mas também pequena e miseravelmente feita. Mas é que a escola de Coimbra cometeu efetivamente alguma cousa pior de que um crime — cometeu uma grande falta: quis inovar. Ora, para as literaturas oficiais, para as reputações estabelecidas, mais criminoso do que manchar a verdade com a baba dos sofismas, do que envenenar com o erro as fontes do espirito publico, do que pensar mal, do que escrever pessimamente, pior do que isto é essa falta de querer caminhar por si, de dizer e não repetir, de inventar e não de copiar. Por que? Porque todos os outros crimes eram contra as idas: haveria sempre um perdão para eles. Mas esta falta era contra as pessoas: e essas tais são imperdoáveis. Inovar é dizer aos profetas, aos reveladores encartados: e há alguma cousa que vós ignorais; alguma cousa que nunca pensastes nem dissestes; há mundo além do circulo que se vê com os vossos óculos de teatro; há mundo maior do que os vossos sistemas, mais profundo do que os vossos folhetins; há universo um pouco mais extenso e mais agradável sobre tudo do que os vossos livros e os vossos discursos. » Isto, sim, que é intolerável! Isto, sim, que é infame e revoltante e impio c subversivo! Contra isto, sim, ás armas, ergamo-nos na nossa força, mostremos o que somos e o que podemos... escrevamos três folhetins e um prologo!...

V. exa fez-se chefe d'esta cruzada 'tão desgraçada e tão mesquinha. Não posso senão dar-lhe os pêsames por ião triste papel. Mas se eu, como homem, desprezo e esqueço, como escritor é que não posso calar-me; porque atacar a independência do pensamento, a liberdade dos espíritos, é não só ofender o que há de mais santo nos indivíduos, mas é ainda levantar mão roubadora contra o património sagrado da humanidade—o futuro.-^E secar as nascentes da fonte aonde as gerações futuras têm de

beber. É cortar a raiz da arvore a que os vindoiros tinham de pedir sombra e sossego. E atrofiar as idas e os sentimentos das cabeças e dos corações que têm de vir.

O contrario d'isto tudo é que ò a bela, a imensa missão do escritor. É um sacerdócio, um oficio publico e religioso de guarda incorruptível das idas, dos sentimentos, dos costumes, das obras e das palavras. Para isso toda a altura, toda a nobreza interior são pouco ainda. Para isso toda a independência de espirito, toda a despreocupação de vaidades, toda a liberdade de jugos impostos, de mestres, de autoridades, nunca será de mais. O mineiro quer os braços soltos para cavar buscando o ouro entre as areias grossas. O piloto quer os olhos desvendados para ler nos astros o caminho da não por entre as ondas incertas. O sacerdote quer o coração limpo de paixões, de interesses, para aconselhar, guiar, julgar, imparcial e justo. O escritor quer o espirito livre de jugos, o pensamento livre de preconceitos e respeitos inúteis, o coração livre de vaidades, incorruptível e intemerato. Só assim serão grandes e fecundas as suas obras: só assim merecerá o logra de censor entre os homens, porque o terá alcançado, não pelo favor das turbas inconstantes e injustas, ou pelo patronato degradante dos grandes e ilustres, mas elevando-se naturalmente sobre todos pela ciência, pelo paciente estudo de si e dos outros, pela limpeza interior duma alma que só vê e busca o bem, o belo, o verdadeiro.

Este é o escritor, o poeta, o apostolo. Se o obrigassem a respeitos convencionais, a terrores supersticiosos diante de certos homens, a espantos cegos diante de certas cousas; se o fizessem baixar a cabeça e as costas para entrar a porta do Panteno literário; ele, o pobre, ficaria sempre curvo e submisso, humilde e sem força própria, servo de alheias idas e apostolo apenas de palavras decoradas e vazias d'alma. Como se havia ele pois erguer, entre seus irmãos, tão alto que seus olhos fossem uns como parões para todos os outros olhos, a sua fronte uma como montanha de luz; tão alto que as palavras de sua boca caíssem sobre as cabeças como uma chuva benéfica e fecundante? Seria, depois das provas e das torturas, das genuflexões e das baixezas da iniciação no grémio dos senhores, seria um aleijão e não gigante, um aborto em vez de herói e, em vez de sobe exceder a todos com a fronte, andaria sumido entre eles, visitado escassamente pelo sol e pela luz. Elei, que não soubera procurar para si o seu caminho, como poderia ele alumiar o dos outros? Elei, humilde, como ensinaria a altivez e a dignidade? Respeitador de conveniências estéreis, como daria o exemplo das revoltas fecundas? Sem alma, como a insuflaria no peito dos tristes e humilhados? Sem vontade, como resistiria ás tiranias da opinião omnipotente, ao capricho dos grandes, ás ambições, ás tentações?

As grandes, as belas, as boas cousas só se fazem quando se é bom, belo e grande. Mas a condição da grandeza, da beleza, da bondade, a primeira e indispensável condição, não é o talento, nem a ciência, nem a experiencia: é a elevação, moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma e a dignidade do pensamento e do caracter. Nem aos mestres, aos que a maioria boçal aponta como ilustres, nem á opinião, á critica sem ciência nem consciência das turbas, do maior numero, deve pedir conselhos e aprovação, mas 'só ao seu entendimento, á sua meditação, ás suas crenças. Nesta escola do trabalho, da dignidade, das altas convicções, se formam os homens em cujos peitos a humanidade encontra sempre um vasto lago onde farte a sede de verdade, de consolações, de ensinos para a inteligência e confortos para o coração.

No peito dos outros, dos que andam de capella em capella na lida afanosa de incensar cada dia todos os ídolos, dos que fazem da gloria uma bastilha para aventureiros levarem de assalto, e não púlpito aonde se suba com respeito e amor, no peito d'esses não habita mais do que ambição, vaidade, endurecimento e miséria. Esses lisonjeiam os grandes; e os grandes dão-lhes a mão para que subam, e desprezam-nos depois. Lisonjeiam as maiorias; e as maiorias inconstantes lançam-lhes no regaço um pouco de ouro e algum aplauso de momento, e depois passam e esquecem. Afagam todas as vaidades ; e têm em cada vicio humano um capital, cujo juro dissipam em quanto vivos, porque essa moeda corrompida para mais ninguém serve. Em fim, nos quinze ou vinte anos em que dão que falar ás gazetas, aos botequins, aos grémios, a todos os vadios, a todos os fúteis, folgam, vivem alegres e esquecidos de tudo quanto não seja a satisfação do que há no homem de mais pequeno — a vaidade e o interesse.

Para os outros a obscuridade, e a miséria muita vez — mas a estima dos melhores entre os homens pelo espirito, e, o que excede tudo, a posse d'uma consciência superior a quanto não seja a verdade, a justiça e a formosura. As idas serenas brilham-lhes na escuridão do isolamento e alumiam-lhes com uma luz doce mas imensa toda a sua obscuridade. Dão-se a desbaratar o mal dos outros homens, como muitos se dão a aumentar o seu bem próprio. Vivem na região das bênçãos, escutando as palavras da boca invisível, e com os ecos d'essa voz celeste Compse os humanos de esperança e de amor para a humanidade. Morrem; mas morrem nobres c puros. Tudo isto porque foram independentes. Não pertenceram a corrilhos; não elogiaram ninguém para que os elogiassem a eles; não incensaram os fetiches dos ridículos pagodes literários. Foram honrados. Foram simples.

A estes tais chamo eu poetas. Porque nos ensinam o bem. Porque são originais e dizem sempre alguma cousa nova á nossa curiosidade de saber. Porque dão com a elevação das vidas confirmação á sublimidade dos escritos. Porque são tão poéticos como os seus poemas. Porque vão adiante abrindo á luz e ao amor novos horizontes. Porque não conhecem ambições nem orgulhos. Porque têm a cabeça do génio e o coração da inocência. E por isso tudo que lhes chamo poetas.

Os outros adoram a palavra, que ilude o vulgo, e desprezam a ida, que custa muito e nada luz. São apóstolos do dicionário, e têm por evangelho um tratado de metrificação. Fazem da poesia o instrumento de suas vaidades. Pregam o bem por uso e convenção literária, porque se presta á declamação poética, mas praticam o egoísmo por índole e por vontade. Fazem-nos descrer da grandeza humana, porque são uns sofismas que nos mostram a pequenez e a má fé aonde as aparências são todas de nobreza. Preferem imitar a inventar; e a imitar preferem ainda traduzir. Repetem o que está dico há mil anos, e fazem-nos duvidar se o espirito humano será uma estéril e constante banalidade. São os enfeitadores das ninharias luzidias. Põem os nadas em pé para parecerem alguma cousa. São os ídolos literários da multidão que mal sabe ler. São os filósofos queridos da turba que nunca pensou. São, em fim, génios no Brasil como v. exa

Estes tais escusam da nobreza e da dignidade: têm a habilidade e a finura. Para a obra que fazem, isso lhes basta. Mas a obra, Exmo. Sr., é que é uma obra vulgar: bem feita para agradar ao ouvido, mas estéril para o espirito. Osa bem, mas não ensina nem eleva. Ora a humanidade precisa que a levantem e que a doutrinem. São, pois, necessárias outras e melhores obras.

Mas, se já alguma hora da historia impos aos que faliam alto entre os povos obrigações de seriedade, de profunda abnegação, de sacrifício do eu ás tristezas e misérias da humanidade, de trabalho e silencioso pensamento; se alguma hora lhes mandou serem graves, puros, crentes, é certamente esta do dia de hoje, deidade de transformação dolorosa, de asceticismo, de abaixamento moral, de descrença, que é o nosso seculo. Refundem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idas. Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O futuro não aparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem-, menos dispostas ao sacrifício e ás abnegações da consciência. Há toda uma humanidade em dissolução, de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã, crente e formosa.

Para este grande trabalho é que se querem os grandes homens. Sairão esses herodes das academias literárias? das arcádias? das sinecuras opulentas? dos corrilhos do elogio-mutuo? Sairão as aguias das capoeiras? Saltarão as idas salvadoras do choque das maledicências e dos doestos? Nascerão as dedicações do casamento das vaidades? Darão a grande novidade os ledores de Horácio? Inventarão as novas formulas os que decoram as frases rabugentas dos livros bolorentos que chamam clássicos? E os Sócrates' e os Epicteto descerão para as suas missões das cadeiras almofadadas, das rendosas conezias literárias, das prebendas, das explorações?

Fora dessa atmosfera corrupta, e, quando não corrupta, pelo menos esterilizadora, é mais provável encontrarem-se as condições que precisam para viver e crescer os homens uteis e necessários ás transformações do espirito humano.

Não é traduzindo os velhos poetas sensualistas da Grécia e de Roma;1 requentando fabulas insossas diluídas em milhares de versos semsabores;1 não é com idílios grotescos sem expressão nem originalidade, com alusões mitológicas que já faziam bocejar nossos avós;! com frases e sentimentos postiços de académico erhetorico;4 com visualidades infantis e puerilidades vãs;6 com prosas imitadas das algaravias místicas de frades estonteados;' com banalidades;7 com ninharias;' não é, sobre tudo, lisonjeando o mão gosto e as péssimas idas das maiorias, indo atrás d'elas, tomando por guia a ignorância e a vulgaridade, que se hão de produzir as ideias, as ciências, as crenças, os sentimentos de que a humanidade contemporânea precisa para se reformar como uma fogueira a que a lenha vai faltando.

Mas fora de tudo isto, d'estas necedades tradicionais, é o nevoeiro, é o metafísico, é o inatingível—diz v. ex."

Todavia, quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim. Não é a nossa divertida Academia das Ciências, que revolve, decompõe, classifica e explica o mundo dos factos e das idas. É o Instituto de França, é a Academia Cientifica de Berlim, são as escolas de filosofia, de historia, de matemática, de física, de biologia, de todas as ciências e de todas as artes, em França, em Inglaterra, em Alemanha. Pois bem: a Alemanha, a Inglaterra, a França, comprazem-se no nevoeiro, são incompreensiva

1 Alude ás traduções de Ovídio e Anacreonte.
2 Alude ás Cartas d'Exo e Narciso.
3 Alude á Primavera.
4 Alude ao Tributo Português na morte de Pedro V.
5 Alude aos tratados de Metrificação e Mnemónica.
6 Alude a todas as obras em prosa. 'Alude a todas as obras em verso.
7 Alude a todas as obras juntas, prosa e verso.

viés e ridículas, são metafísicas também. As três grandes nações pensantes são risíveis diante da critica fradesca do Sr. Castilho. Os grandes génios modernos são grotescos e desprezíveis aos olhos baços do banal metrificador português.

O grande espirito filosófico do nosso tempo, a grande criação original, imensa da nossa idade, não passa de confusão e imbróglio desprezível para o professor de ninharias, que cuida que se fustiga Hegel, Stuart Mil, Augusto Comte, Herde, Golf, Vico, Michele, Proudhon, Lite é, Feuerbach, Cruze, Strauss, Taine, Renan, Bucheira, Quinte, a filosofia alemã, a critica francesa, o positivismo, o naturalismo, a historia, a metafísica, as imensas criações da alma moderna, o espirito mesmo da nossa civilização.... que se fustiga tudo isto e se ridiculariza e se derriba com a mesma sem-cerimónia com que ele dá palmatoadas nos seus meninos de 30, 40 e 50 anos, de Lisboa, do Grémio, da Revista Contemporânea!

Quem seguir tudo isto vai com o pensamento moderno; com as tendências da ciência; com os resultados de trinta anos de critica; com a nova escola histórica; com a renovação filosófica; com os pensadores; com os sábios; com os génios; vai com a França; vai com a Alemanha — mas que importa? não vai com o Sr. Castilho! não vai com o novo método repentista! não vai com o moderno folhetim português!

O metrificador das Cartas d'Exo diz ao pensador da Filosofia da natureza — tira-te do meu sol! — O mitólogo do dicionário da fabula diz ao profundo descobridor da Simbólica — és um ignorante ! — A retorica portuguesa diz á ciência, ao espirito moderno —cala-te d'aí, papelão!

É que tudo isto não passa de idas. Ora há uma cousa que o Sr. Castilho tomou á sua conta, que não deixa em paz, que nos prometeu destruir... é a metafísica... é o ideal...

O ideal! palavra mística; de gótica configuração; quási impalpável; espiritualista; impopular; que o artigo de fundo repele; que desacreditaria o deputado do centro que a empregasse; que Victor Hugo adora e de que se riem os localistas; que não chega para um folhetim e que enche o maior poema; imensa aos olhos dos que a veem com os olhos fechados e que nunca viram os que os trazem sempre arregalados; palavra péssima para uma rima de madrigal; palavra que-faz desmaiar as beatas ; grotesca num botequim; disforme numa sala; medonha numa assembleia de literatos horacianos... decididamente v. exa devia odiar esta desgraçada palavra!

O ideal quer dizer isto: desprezo das vaidades; amor desinteressado da verdade; preocupação exclusiva do grande e do bom; desdém do fútil, do convencional; boa fé; desinteresse; grandeza d'alma; simplicidade; nobreza; soberano bom gosto e soberaníssimo bom senso... tudo isto quer dizer esta palavra de cinco letras — ideal.

Por todos estes motivos ela é sobremaneira odiável; ela é desprezível por todas estas causas; e v. exa tem toda a razão, chacoteando, bigodeando, pulverizando esse miserável ideal. •

Ele, com efeito, nada do que ele é ou do que vem dele, serve ou pode servir jamais para alguma cousa do que se procura na vida, do que nela procuram os homens graves, os homens sérios, os homens de senso e gosto como v. exa, que nada querem com ideais ou com idas, mas só com realidades e com factos; para captar a admiração das turbas; o aplauso das multidões; para formar um grande nome composto de pequeninas letras; para merecer os encómios dos gramaticasses e o assombro dos burgueses; para ser das academias; das arcádias; comendador; citado pelos brasileiros retirados do comercio; decorado pelos diretores de colégio; o Tirteu dos merceeiros e um Homero constitucional.

Para isto é que não serve o ideal. E é por isso, pela sua absurda inutilidade, que v. exa o apeia com tanta sem cerimonia do pedestal aonde, para o adorarem, o têm posto os loucos que nunca foram nada neste mundo, nem das academias nem do conselho de instrução publica, um Cristo, um Sócrates, um Homero...

Por isso é que v. exa faz muito bem em o destruir, a esse pobre diabo do ideal; de o pôr fora de casa a bofetões; de o banir das suas obras, que não há ver por lá nem a mais leve sombra dele. Agradam a todos assim. Os versos de v. exa não têm ideal — mas começam por letra pequena. As suas criticas não têm idas — mas têm palavras quantas bastem para um dicionário de sinónimos. Os seus poemas líricos não são metafísicos, não precisam d'uma excessiva atenção, de esforços de pensamento para se compreenderem — e têm a vantagem de não deixarem ver nem um só ideal. Nas suas obras todas há uma falta tão completa d'essas incompreensibilidades, que deve pôr muito á sua vontade os leitores que v. exa têm no Brasil. V. exa diz tudo quanto se pode dizer sem idas — boa, excelente receita para não cair nas nebulosidades do ideal. Os seus escritos são optemos escritos — menos as idas: e é v. exa um grande homem — menos o ideal.

Dante, que era um bárbaro, e Shakespeare, que era um selvagem, que rechearam as suas obras de ideal. Victor Hugo também cá muito nesse defeito. V. exa é que o tem sempre evitado cautelosamente, e por isso não é um bárbaro como Dante, nem selvagem como Shakespeare, nem um mau poeta como Victor Hugo. Não é Dante, nem Shakespeare, nem Hugo — mas é amigo do Sr. Vale, que fala latim como Mévio e Bávio.

Mas, Exmo. Sr., será possível viver sem ideias? Esta é que é a grande questão. Em Lisboa, no curso de letras, na academia, no conselho superior, no grémio, nos saraus de- v. exa, dizem-me que sim, e que é mesmo uma condição para viver bem. Fora de Lisboa, isto é, no resto do mundo, em Paris, Berlim, Londres, Turim, Goettingue, New-York, Boston, países mais desfavorecidos da sorte, na velha Grécia também e mesmo na Bom antiga, é que nunca poderão passar sem essas magnificas inutilidades. Elas o muito que têm feito é servirem de entretenimento aos visionários como Cristo (um metafísico bem nebuloso), como Sócrates, como Çakia-Mouni, como Maomet, como Confúcio e outros sujeitos de nenhuma consideração social, que se entretinham fazendo sistemas com elas, e com os sistemas religiões, e com as religiões povos, e com os povos civilizações, e com as civilizações códigos, leis, sentimentos, amores, paixões, crenças, a alma em fim da humanidade, cousa que se não vê nem rende, e é também inútil e incompreensível. Eis aí o mais a que as idas têm chegado. Creio que pouco mais ou nada mais têm feito do que isto.

Em Lisboa é que nem isto. Não sei se tem havido quem tente introduzi-las nessa capital. V. exa é que eu tenho a certeza de que não era capaz d'essa má Acão. Por isso Lisboa não ache como chairam Atenas e Roma, por causa das suas idas", e Jerusalém e outras cidades infelizes, cujos poetas tiveram um amor demasiado ao ideal... Uma só cousa ficou d'elas: uma memoria grande, honrosa, nobilíssima. Chairam, mas deram ao mundo um espetáculo raro—o espirito e a consciência humana triunfando da matéria e brilhando no meio das ruinas como a chama que se alimenta da destruição da lenha d'onde sache e que a gerou. Eu não sei se v. exa acha isto sensato e de bom gosto. Cuido que não. O que eu sei somente é que isto é sublime

Paro aqui, Exmo. Sr. Muito tinha eu ainda que dizer: mas temo, no ardor do discurso, faltar ao respeito a v. exa, aos seus cabelos brancos. Cuido mesmo que já me escapou uma ou outra frase não tão reverente e tão lisonjeira como eu desejara. Mas é que realmente não sei como hei de dizer, sem parecer ensinar, certas cousas elementares a um homem de sessenta anos; dizê-las eu com os meus vinte e cinco! V. exa aturou-me em tempo no seu colégio do Pórtico, tinha eu ainda dez anos, e confesso que devo á sua muita paciência o pouco francês que ainda hoje sei. Lembra-se, pois, da minha docilidade e adivinha quanto eu desejaria agora pode-lo seguir humildemente nos seus preceitos e nos seus exemplos, em poesia e filosofia como outrora em gramatica francesa, na compreensão das verdades eternas como em outro tempo no entendimento das fabulas de La Fontaine. Vejo, porem, com desgosto que temos muitas vezes de renegar aos vinte e cinco anos do culto das autoridades dos dez; e que saber explicar bem Telémaco a crianças não é precisamente quanto basta para dar o direito de ensinar a homens o que sejam razão e gosto. Concluo d'aqui que a idade não a fazem os cabelos brancos, mas a madureza das ideias, o tino e a seriedade: e, neste ponto, os meus vinte e cinco anos têm-me as verduras de v. exa convencido valerem pelo menos os seus sessenta. Posso pois falar sem desacato. Levanto-me quando os cabelos brancos de v. exa passam diante de mim. Mas o travesso cérebro que está debaixo e as garridas e pequeninas cousas, que sabem dele, confesso não me merecerem nem admiração nem respeito, nem ainda estima. A futilidade num velho desgosta-me tanto como a gravidade numa criança. V. exa precisa menos cinquenta anos de idade, ou então mais cinquenta de reflexão.

E por estes motivos todos que lamento do fundo d'alma não me poder confessar, como desejava, de v. exa

Coimbra 2 de Novembro de 1865.

Nem admirador nem respeitador

Antero do Quental

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BOM-SENSO E BOM-GOSTO

RESPOSTA Á CARTA QUE O SR. ANTHERO DO QUENTAL DIRIGIU AO Exmo. SR. ANTÓNIO FEL1CIANO DE CASTILHO

Por: MANUEL ROUSSADO


Achando-se de tempo exausta a edição da carta, que sob o titulo Bom-senso e bom-gosto, resposta ao Sr. Antero do Quental, escrevera o Sr. M. Roussado, determinámos reimprimi-la, para satisfazer ao desejo e exigências de muitos, que pretendem inteirar em coleção as peças todas deste notável processo literário. Ao realizar o propósito ocorreu-nos que prestaríamos á curiosidade do publico um agradável serviço adicionando a esta nova edição uma interessante missiva, que de pais estranho recebêramos há meses sobre o assumpto sujeito, e que no voto de pessoas inteligentes a quem a mostramos foi tida por digníssima de vulgarização, com quanto seu autor não a destinasse de certo a ver a luz da imprensa. Como pois nem temos autorização sua, nem contamos obtê-la, quando a solicitássemos, porque da sua provada modéstia só tínhamos a esperar uma recusa formal, aí a damos anonima, e não sem bastante pesar da nossa parte. Os que a lerem melhor poderão julgar se é ou não exato o conceito que de quem a escreveu expressava não há muito tempo em obra impressa um dos nossos escritores de maior vulto, qualificando-o de «mancebo tão «erudito como talentoso, que deve exclusivamente á mais «firme e honrosa vontade, e aos seus únicos recursos o largo «adiantamento literário a que vai subindo, e que promete «ás letras pátrias um primoroso cultor.»

E d'aqui lhe pedimos desculpa, se n'isto o ofendemos.
o Editor. Lisboa 11 de junho de 1866.

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Acabo de ler as obras de v. sã, e, pasmado ainda com os raios luminosos que me deram de chapa nos olhos do espirito, pego na pena para expandir os eflúvios da minha admiração, como quem abre uma válvula de segurança, para evitar quaisquer detonações d'esta preciosa machinha, que em linguagem rasteira se chama homem, e a que v. sã nas suas admiráveis Odes chama—proscrito rei, mendigo escuro.

Eu aceito esta denominação, apesar de não ser trigueiro, e de ter os meus seis vinténs.

Não sei se v. sã se escandaliza por não lhe dar excelência, mas eu que me sinto banzado ao elevar a minha palavra até uma das mais brilhantes estrelas da constelação coimbrã, ignoro também por falta de uso que tratamento pertence pela Constituição do Idealismo aos que voam lá por cirna, atravessando os espaços infinitos aonde não chegam as exalações mefíticas do lodaçal mundano, nem o tratado de civilidade, nem as futilidades da gramatica terrena, nem as pequices da metrificação sublimar.

Desculpe-me pois v. sã se o não trato como devo, acreditando nas expansões sinceras do meu eu, que se confessa humilde criado do eu de v. sã

Ainda não tinha lido as Odes modernas, quando me chegou ás mãos a carta que v. sã escreveu ao Sr. António Feliciano de Castilho, a esse caturra intolerável que teima na guerra desleal contra os inovadores que vem do norte, anunciando a nova aurora da independência literária, em que serão quebrados os ferros que algemam a Ieda, e os seus apóstolos rasgarão os horizontes luminosos sem o auxilio inútil da instrução secundaria.

Não tinha lido as Odes que v. sã atirou aos ventos da publicidade, e fui logo compra-las, porque a aludida carta tinha chocado a minha alma, que para logo concebeu o feto preciosíssimo do Ideal. Fui compra-las, e o próprio livreiro que más vendeu, tocado sem duvida pela sublimidade da poesia, e pelo levantamento do espirito que se admira no parto de v. sã, envergonhou-se ao dizer-me o preço do livro; voltou o rosto, tapou os olhos ao estender a mão tremente ao baixo e vilíssimo cruzado.

Quanto a mini, sabe Deus o que também me custou aquilo

Ah l não foi dinheiro perdido. Aqueles quatro tostões foram sementes de seara nova do meu espirito, e os benéficos resultados da semeadura milagrosa estou-os já sentindo, porque olho desdenhoso para tudo que me cerca, porque já vendi o Dicionário de Moraes que me obstruía a mesa do trabalho, porque estou com vontade de trocar os nomes ás coisas, e já me doe o pescoço de olhar lá .para cima onde há montanhas de luz, e aonde o vocabulário é ad libi tum de quem falia,

Não, não foi dinheiro deitado á rua esse que o livreiro me aceitou envergonhado pelas odes com que eu hei de ir remando para as praias do futuro, em cujas ago as cristalinas se levantarão cálices arrendados de safira e prata, que servirão para barcas de banhos, e como a pág. 55 v. s." diz:

«Com seu olhar d'amor quem se vestiu?»

Creio que na poesia (Teças futuras Deusas dos mares as vistas puríssimas do amor hão de substituir as camisolas de baeta e as cocas de algodão.

Este arrojo da poesia inovadora faz-me lembrar uma historia que eu peço licença para contar a v. sã Dois beberrões celebres apostaram entre si que beberia de graça meia canada aquele que a bebesse sobre comida mais insignificante. O primeiro comeu uma azeitona e despejou o copo, o segundo cheirou uma azeitona e enxugou o sino grande.



Entre os selvagens, uns vestem-se com três quartas de pano cru, outros com um bracelete, alguns com um simples búzio, o Sr. Antero do Quental, sublime como o homem que cheirou a azeitona, veste com um olhar a geração futura.

E não digam os homens da prosa que o vestuário será então igual para todos, porque a diversidade das toilettes imprimiu-a Deus na elegância visual das criaturas, fazendo dos olhos outros tantos alfaiates. O olhar da virgem formosíssima corresponde á tesoura do Kiel, a vista ordinária da mulher do povo será uma espécie de remendão de escada.

E como v. sã rasga a membrana que envolve o ovário da geração contemporânea, na qual germina p futuro! E o trajo da gente voltará á simplicidade primitiva; e o olhar d'amor tomará o logra da parra nos Apolos de gesso; e os defluxos abandonarão a raça humana; e as lavadeiras fugirão espavoridas em procura de gente que se vista por diverso teor.

Há de ser a idade dos aos. A completa independência do pensamento, que v. sã prega na sua preciosíssima carta, não podia deixar de trazer a independência da peite humana. A nudez da alma, que bate as azas cândidas para as regiões do infinito, não podia deixar de ser acompanhada pela nudez do corpo, que demanda os bafejos continuados das brizas; porque os tecidos são enfeites e ninharias luzidias, como os preceitos banais da arte o são para o pensamento.

As aspirações de v. sã hão de ser realizadas. No futuro a Ieda será livre: esta rainha esplendida, a que v. sã presta o devido culto, pisando as regras de uma ortografia medíocre, para a escrever com I grande, será a dominadora do universo.

Os vates abandonados a si mesmos terão a elevação moral, a virtude da altivez interior, a independência da alma. Tudo será independência e liberdade, os versos parecerão prosa, como v. sã tas ver em centenares de exemplos tais como o seguinte da la pagina das Odes Modernas:

«Vai, mas ignora sempre quem o leva e o da pagina 11:
«Deus, não pôde durar mais que alguns anos.

Não haverá medição para os versos, como v. sã, sublime adivinhador, já faz ver por exemplo no seguinte hendecassílabo:

«E como o que n'uma mina vai de bruços;

Ou n'estoutros, não menos significativos:
 «Do pôr do sol astrónomos do passado.... «A aurora é o Suruí corda do universo.... «Este, e aquele deixa-lo em meio da rua 
As dificuldades estupidas da rima desaparecerão por uma vez; as palavras rimarão comigo mesmas, como por exemplo na seguinte colexa a pág. 23 do precioso livro de v. sã:
 «É porque um Ceo maior nos mostre, e c nosso.. Esse Ceo e esse espaço! é tudo nosso! 
v

N'essa cidade os Deuses serão rebaixados á condição de letreiros, como se vê da seguinte quadra a pág. 43.
 «A pálida coorte dos proscritos Que tem nos rostos estampada a forno; Que em quanto o frio os ore e os consome. Trazem no coração Deuses escritos. 
E a regeneração há de chegar aos domínios da Astronomia. Os raios andarão com as estreitas ao eólio, como muito bem se pôde ver do seguinte verso de v. sã a pág. 47:

«Erguendo um filio: como um raio a estrela.>

Que as leis da gravitação universal serão banidas, adivinhasse pelos seguintes versos a pág. 52:
 «Entre os astros, e os astros como ateis Já nos querem mais lei que o infinito. 
Os estofadores tomarão parte no sistema planetário, e, o que ainda é mais, os doceis e as bambinelas ficarão por debaixo das camas, como se conhece da seguinte quadra a pág. 57:
  • Oh! o noivado bárbaro! o noivado Sublime! aonde os Ceos, os coos ingentes, Serão leito de amor—tendo pendentes Os astros por dossel e cortinado! 
E os cometas descerão ã nossa atmosfera e girarão por ela como balões. Vid. pág. 89:

«Os cometas que ao ar andam subidos.

E assim como os olhares constituirão o vestuário, as almas serão xailes-mantas, e os peitos serão transformados em trapézio. Vid. pág. 63:
 «Estendei vossas almas como manto? Sobre a cabeça d'eles... e do peito Fazei-lhes o degrau, onde com jeito Possam subir a ver os astros santos... 
O Sr. Antero do Quental refere-se aos poetas do futuro, e muito bem fez em recomendar-lhes o jeito n'esses voos de Léotard.

E outras mil coisas hão de acontecer, como v. s.*, que é o prometido das letras, anuncia brilhantemente á terra e aos astros nas suas admiráveis profecias.

V. sã não pôde conter a indignação quando viu a carta do Sr. António Feliciano de Castilho publicada conjuntamente com o Poema da Mocidade do Sr. Pinheiro Chagas, carta em que o tradutor de Ovídio alcunhou de nevoeiro e de inatingível o estilo que fulge lá para as bandas do norte, e que em borbotões de luz ameaça iluminar tudo. V. s." indignou-se e veio lançar por terra esta chancelaria literária de Lisboa, aonde só se passam títulos de capacidade aos insignificantes que não progridem, nem inovam como v. sã

Diz v. sã na sua inimitável carta: «Refluem-se as crenças antigas. Geram-se com esforço novas idas. Desmoronam-se as velhas religiões. As instituições do passado abalam-se. O futuro não aparece ainda. E, entre estas duvidas, estes abalos, estas incertezas, as almas sentem-se menores, mais tristes, menos ambiciosas de bem, menos dispostas ao sacrifício, e ás abnegações da consciência. Há toda uma humanidade em dissolução, de que é preciso extrair uma humanidade viva, sã, crente e formosa. Para este grande trabalho é que se querem os grandes homens.»

Isto diz v. sã, e como tudo está abalado, e a humanidade em dissolução, é que v. sã tão acremente censura o Sr. António Feliciano de Castilho, por não acordar ao toque de rebate, por não meter mãos á grande obra do futuro alistando-se sob o cominando dos que assentaram as suas trincheiras contra o senso comum, e deixar-se ficar na paz estéril com as suas traduções de Ovídio, com a sua Primavera, com os seus Tratados de Metrificação.

Enquanto o Sr. Castilho assim se conserva inabalável no meio das ondas revolucionarias, v. sã Sr. Antero, famoso Quixote da Poesia, combate pela Ieda, e derruba os moinhos de vento, que se opõem á sua passagem.

E há de vencer: quem tem os arrojos de v. sã pôde muito bem chamar seu ao mundo.

Refundem-se as crenças antigas e os antigos costumes, por isso v. sã começou o seu poema com a partícula adversativa mas

«Mas o homem, se é certo que o conduz.

É este o primeiro verso do seu tesouro de inesgotáveis riquezas. E v. sã não para; a extração da humanidade viva e formosa precisa de v. sã, e por isso o seu novo poema há de naturalmente começar por ponto e virgula.

Ah l abençoados quatro tostões que o livreiro me lesse

béu envergonhado em troca das deliciosas profecias da v. sã! Com a leitura das obras do Sr. Quental a humanidade há de brevemente sentir o espirito aberto para o belo ideal, e a inteligência fechada para as secções em que se divide a gramatica mundana.

E eu estou desconfiado de que lá em cima por onde v. s.* anda, isto de se falar acerca do impalpável consiste em uma espécie de sorteio, como eu já tinha ensaiado antes de haver lido as Odes Modernas.

Tinha eu imaginado a Deus dizendo ao Universo a grande missa da criação. Precisava de um pensamento condigno do assumpto e não o achava. Deitei n'um chapo três palavras Er três papelinhos para ver o que sabia. As palavras eram: estala, veste, infinito, e como estas palavras precisavam de colchetes que as ligassem, deitei mais no chapo em quatro papelinhos diferentes o tempero seguinte: a—do—que—o.

Chocalhei tudo, tirei ao acaso papelinho por papelinho e saiu-me:

«O que veste a estola do infinito:

Bravo! exclamei; e qual foi a minha admiração quando a pág. 39 das profecias de v. s.* encontro exatamente o mesmo verso!

Teria v. sã para o fazer usado da mesma gíria que eu usei? Creio que sim, creio que a grande musa do acaso, é que é a inspiradora dos vates idealistas que fulguram em Coimbra.

«O que veste a estola do infinito (!)

Os reptis do charco inundo da vida dizem naturalmente que é asneira, mas eu estou com v. sã, digo que é sublime.

Vão lá tapar a boca aos maldizentes de Lisboa, os quase andam por aí a gritar que deu o mal das vinhas na literatura coimbrã, que é preciso serem enxofrados os vates idealistas e inovadores das margens do Mondego, e que ás autoridades de Lisboa cumpre estabelecer o cordão sanitário que nos preserve da invasão, da epidemia!

Caminhe v. sã, progrida com as suas inovações desentranhando as sociedades do futuro; e deixe bradar no deserto estes imbecis. Perdoe-lhes, Ilmo. Sr., que eles não sabem o que fazem. Ignoram que o que é grande lá em cima por onde v. sã anda, é pequeno cá embaio por onde rastejam.
A linguagem transcendental que abre os horizontes imensos do futuro é estranha cá nos arruamentos de Lisboa, e por isso, quando o povo ignaro a escuta na boca de um ou outro, exclama: coitadinho, tem aduela de menos.
Eu porém, que os admiro, peço licença para erguer-lhes aqui um momentozinho no seguinte

SONETO
 Cabelo era desalinho, hirsuto e farto,
A face macilenta, o olhar incerto,
Distingue uns vates CTT estrangeiro enxerto,
Que ao mundo impingem transcendente parto.

Tremem nas lycras os bordões de esparto
Do místico aranzel rompe o concerto;
Um diz que o sol é hóstia, um mais esperto
Diz que o Ceo é quintal e o Deus lagarto. 

Outro de ventas no ar, imóvel, hirto,
Clama que o Padre Eterno é semimorto,
Aquele aos astros chama etéreo mirto. 

Deixam com seu cantar o vulgo absorto,
Que esse grupo fatal, com magoa advirto,
Das hortas do Ideal regressa torto. 

Por tudo e por muito mais se confessa admirador permanente

MANOEL ROUSSABO.

CARTA AO EDITOR

.... SR. A. M. PEREIRA Lio de Janeiro, 24 de janeiro de 1866.

Agradeço a v. ter-se lembrado de mim com a remessa do folheto Bom-senso e bom-gosto, acudindo d'Este modo á natural impaciência em que previu que eu ficaria por tomar conhecimento da questão.

Igual favor desejarei merecer-lhe sempre que alguma novidade como esta, e a do casamento civil, venha pôr em alvoroço a republica das letras, republica em todo o rigor do sentido popular que damos á palavra. Eu sou, já de anos, por gosto e sistema, colecionador d'estas curiosidades literárias. Bem o sabe v. , que tanto me tem ajudado na minha inofensiva paixão, pois é aos seus pacientes esforços que principalmente devo o ver a esta hora tão medrados alguns corpos de processos celebres, tais como Verdadeiro Octófido de Estudar, Camões e José Agostinho, Eu e o Clero, Ordens religiosas, Irmãs da caridade, União Ibérica, Pena de morte, Bíblias protestantes, etc. Por isso mesmo recomendo instantemente a v. que não deixe de enviar-me o que for aparecendo, não só com referencia a qualquer dos assunptos notados, mas ainda á Vida de Jesus de Renan, ao padroado do Oriente, ao folheto do Bom-senso, e bem assim tudo o que houver agora publicado sobre a questão do casamento civil.

Dizem-me que o folhetim do Sr. Pinheiro Chagas cm resposta aos inovadores de Coimbra, saiu avulso, e eu desejaria obter a todo o preço um exemplar.

Quanto a mim é a cousa mais substancial que até aqui se tem escrito, posto haja paginas excelentes, pelo vigor e pela eloquência, no folheto do Sr. Júlio de Castilho, e rasgos de humor caustico deliciosos no do Sr. Roussado. O folhetim do Sr. Teixeira de Vasconcelos acende uma vela a Deus e outra ao diabo. Aos seus olhos o autor das Odes modernas mede a mesma estatura do Sr. A. F. de Castilho, e entre um e outro nome o folhetim não ousa decidir-se l As Teocracias Literárias, essas parecem-me a composição mais pífia, mais peca, e mais seca que a polemica tem brotado de si.

O Sr. conselheiro Castilho terminou a publicação das dez cartas sobre escola Coimbra. São o comentário lacerante de muitos dos infinitos disparates em que enxameiam as produções do Sr. Quental. Depois d'esta formidável fustigação seguia-se a vez do Sr. Teófilo Braga. Pudemos porém persuadir o Sr. Castilho a gastar olhem te operam mais proveitosamente.

Eu sou um admirador sincero dos talentos poéticos do autor da Visão dos Tempos. Intendo, porém, como toda a gente, que os seus escritos em verso não tem a intenção, o alcance filosófico, que o poeta lhes quer atribuir, e creio que sem os aparatos de que ele os precede, sem as estéticas, as tricotomias, as asceses, as géneses, as sindéreses, as relatividades e as absolutiva ades, os simbolismos telúricos e as expressões mórficas, o publico lh'os aceitaria e aplaudiria de muito melhor grado.

Qual é o homem de mediana erudição em Portugal, que, pondo diante dos olhos, não digo já as Antiguidades do direito além, mas simplesmente a obra com que Michele tornou conhecido o livro de Garim, não seria capaz de escrever acerca das origens a que se conveio em chamar poéticas do direito português uma obra mais farta, mais instrutiva, e sobretudo muito mais amena que a do Sr. Teófilo Braga?

Apesar do mau estilo em que são escritos, há merecimento—quem o nega?—nos seus artigos de literatura portuguesa. Mas, já o Sr. Pinheiro Chagas o disse, esses artigos não dão um passo para além dos prólogos de Garrett. Veja-se por exemplo o que versa sobre a lenda do Fausto. A ida mãe deparou-alva um dito das Viagens na minha terra: a obra francesa de Mary sobre as Lendas da idade-média; o drama de Marlote na versão francesa do filho de V. Hugo, e a versão francesa da Mística de Gores fizeram o resto. Quem tiver visto na sua nova edição a Historie de Ia literatura eu colporragia de Carlos Missar, pasma necessariamente da penúria do artiguito acerca da literatura de cordel. Entretanto, com que facilidade e felicidade, com que graça, com que sabor não foi o assumpto indicado por Garrett á frente do jornal A Ilustração! A que se reduzem pois as invenções do Sr. Teófilo Braga? Quase são os sistemas, os pontos de vista novos, os factos que ele não achasse já apurados ás margens do Sena pelos seus autores preferidos? Um: a influencia do ciclo greco-romano na poesia portuguesa, que o ilustro critico foi estudar a Cascais, d'onde no-la trouxe comprovada (a tal influencia e também a tradição da vinda de Ulisses) com um documento incontrastável, um documento histórico gravíssimo e vetustíssimo—as decimas que principiam:

• «Ulisses, herói matreiro,
 Andava apanhando ninhos, E vendia os passarinhos Por avultado dinheiro....!!! 
Voltando porém, ao folheto do Bom-senso. Que repreende o Sr. A. F. de Castilho á escola de Coimbra? A escuridade dos conceitos e da linguagem. A este, o verdadeiro, o único ponto da questão, com que responde o Sr. Quental? Com um rol de nomes de autores forasteiros — Quinte, Lite é, Proudhon, Taine, etc.

Mas Taine, Lite é, Quinte e Renan são claríssimos. Más á suma elegância, á perspicuidade suprema do seu estilo deveu Proudhon a difusão das suas idas revolucionarias, das suas doutrinas, dos seus paradoxos destruidores. Os mesmos dotes nas obras que firmaram a reputação de Michele, o qual apenas em algum livro moderno (Torceie, Bill de l'humaniu) me parece deslizar d'essa grande virtude 

da clareza, a que ele próprio chama a probidade das línguas, e que com muito mais razão deve ser a probidade do escritor.

Se no idioma próprio Stuart Mil se nos afigura menos límpido que nas paginas de Dupont-White, a culpa não a imputemos a olhe, mas ao nosso escasso inglês. Dos autores alemães não falo. Os inovadores de Coimbra leem-nos reu francês como eu leio alguns, sem que por isso me declare alistado nu legião dos pequenos deuses bastantemente satisfatórios, que substituíram Jeová, o defunto Sénior dos Exércitos. E tanto é verdade que só em francês os leem, que o Sr. Quental até os cita em francês, como se pôde ver nas Odes modernas, a pág. 6.

Ora, dos escritores tenebrosos com que a escola de Coimbra se defende, qual é o que, fora da circunscrição geográfica do seu pais, em França por exemplo, conseguiu fazer-se recebido, sem se subordinar ás exigências do espirito daquela nação, sem se transformar, sem se acomodar ao «gosto francês?»

Ferrari enriquecera de notas explicativas a sua edição da Ciência Nova; os princípios d'Este livro tinham sido expostos por Balance; e todavia o nome de Viço permaneceu ignorado até ao momento em que Michele tomou a si explicar e vulgarizar as suas idas. O estilo das obras alemãs de H. Heiner é por ventura o das versões feitas a seus olhos, ou o das obras escritas anos mais tarde em Paris?

Quanto á Simbólica de Guingão, sabe-se que é antes um labor de interpretação original do que a versão da obra de Cruze. Vera, o tradutor da Filosofia da natureza, viu que não bastava dar em francês as obras de Hegel. Ei-lo logo a repetir explanação sobre explanação, volume sobre volume—Introdução á Logica, Comentário perpetuo, Iiitroducção d Filosofia, O hegelianismo c. a filosofia—que servissem de glossa e fossem um passaporte dos escritos do reformador de Stuttgard... Pois nem assim creio que conseguisse melhorar em nossos dias a posição do seu autor, o qual bem se conhecia, e como tal, diz um critico francês, se plagiante, de som vivente, de favor até compres que par um Setil discipline, qui meme 1'avait Recomprais.—Mas, quer v. um exemplo mais vivo da dificuldade com que se fazem aceitas ao resto da Europa as especulações, as caligens da filosofia germânica? A versão da Vida de Vestis de Strauss, publicada em 1839, só dezassete anos depois teve segunda edição. E contudo o tradutor chamava-se Emílio Lite é.— Aparece em 1863 a obra de Renan, obra condenada pelo próprio Proudhon (Do príncipe de Var, l,° volume, das obras póstumas) e pelos racionalistas da Alemanha, obra cem vezes inferior, em valor cientifico, á de Strauss, e em cinco meses exarem-se nove edições! O estilo fizera a reputação d'esse livro inconsistente e contraditório, prenhe de frases dubitativas, de alegações falsas e de risíveis conjeturas.—Mas não é tudo. Na mesma língua, de francês para francês, se tem visto serem ás vezes necessários estes trabalhos de tradução—o trabalho de Dumas filho vertendo na admirável língua dramática do Suplicio de uma mulher a conceção absurda de E. de Girardes.—Assim é que as difusas e obscuras teorias do fundador do positivismo, Augusto Comte, careceram de ser depuradas, resumidas e aclaradas pela elegante pena de Lite é, sem o que parece que ainda hoje o não intenderiam no seu pais.

Mas agora reparo, que tenho levado a tagarelar sem tom nem som por todo este papel. Cinjo-me já á resposta das cartas de v. , e peço desculpa da minha enfadonha verbiagem.

Confrontando a sua correspondência com a conta corrente que me acaba de enviar, vejo (Omite-se o resto da carta, por versar exclusivamente sobre negócios de interesse particular e comercial),

Sempre
De v.

……………


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