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domingo, 15 de novembro de 2015

Os ourives da palavra: Parte do sermão de S. Roque (P. António Vieira)

De um diaporama recebido

Capela Real. Ano 1652.
Sermão de S. Roque
Tendo o autor pregado no dia do mesmo santo em S. Roque, 
Igreja da Casa Professa da Companhia de Jesus. 

 (...)
A primeira resolução de S. Roque, como se fora mais que homem, ou menos que homem, foi não querer servir a homens, nem mandar homens. Não querer servir a homens, ainda que fossem reis, parece muita soberba: não querer mandar homens, ainda que fossem vassalos, súditos, e criados próprios, parece pouco valor. Mas nem o primeiro foi arrogância, nem o segundo pusilanimidade: grande juízo, grande ânimo, grande generosidade, sim. Obrou S. Roque como homem, como cristão, como santo. 

E pois a mim me toca hoje declarar as razões que ele teve, e persuadir a que tenha imitadores, ao mesmo santo peço se digne de assistir com tal espírito ao meu discurso, que se não afaste muito dos meus pensamentos.

Primeiramente não quis S. Roque servir a homens, porque não quis deixar de ser homem. Ao homem fê-lo Deus para mandar: aos brutos para servir. E se os brutos se rebelaram contra Adão, e não quiseram servir ao homem, sendo tão inferiores, triste e miserável condição é haver um homem de servir a outro, sendo todos iguais. A primeira vez que se profetizou neste mundo haver um homem de servir a outros, foi com o nome de maldição.

Assim fadou Noé a seu neto Canaã, em castigo do pai e mais do filho. Ainda então se não sabia no mundo que coisa era servir; então se começou a entender a maldição pelo delito, e a miséria pelo castigo. 
Meios homens chamou depois o poeta lírico aos que servem, e disse bem. Toda a nobreza e excelência do homem consiste no livre alvedrio, e o servir, se não é perder o alvedrio, é cativá-lo. Razão teve logo S. Roque de não querer servir a homens, por não deixar de ser homem. (...)

O não querer servir a homens, seja embora prudente resolução, pelos motivos que apontamos; mas o não querer mandar homens, e tais homens, que fundamentos podia ter bastantes, não digo já, que aprovem uma tão extraordinária acção, mas que racionalmente a não estranhem, e ainda condenem? Bem creio que não ocorrerão facilmente as razões a ambição e apetite cego com que se governa o mundo, por isso tão mal governado. Respondo, porém, e digo que, se S. Roque teve grandes razões para não servir a homens, as mesmas, e muito maiores, teve para não querer mandar homens. E por que? Porque maior servidão é o mandá-los que o servi-los.

Falando el-rei Antígono com o príncipe seu filho sobre a administração e governo do reino, de que o havia de deixar por herdeiro, admirado o generoso moço de tamanhas obrigações e encargos, refere Eliano que lhe disse o pai: An non-novisti, fili mi, regnum nostrum esse nobilem servitutem? E ainda não sabias, filho meu, que o nosso reinar não é outra coisa que uma servidão honrada? — Honrada disse, e com grande juízo. 

Porque a servidão dos servos é servidão sem honra, e por isso menor e menos pesada. Mas, sobre o peso da servidão, haver de sustentar também o da honra, é muito maior sujeição e muito mais pesada carga. 

É servir a fama e às bocas dos homens, cujos gostos são tão vários e tão estragados, que até o maná os enfastia. Se um homem não pode servir a dois, como disse Cristo, como poderá servir a tantos mil? A cada homem deu Deus um anjo da guarda, e não mais que um homem a cada anjo: e se um anjo que move e governa com tanto concerto e ordem todo o céu das estrelas, não basta para guardar a um homem de si mesmo, e governar ordenada e concertadamente a um homem, entre os outros, como bastará um só homem para conter dentro das leis e manter em justiça a tantos homens? Não sabe o que são homens quem isto não considera e penetra; penetrou-o, porém, alta e profundamente S. Roque na verdura dos anos, com o siso e madureza que não vemos em tantas idades decrépitas.

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