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sábado, 21 de dezembro de 2013

S. Leonardo de Galafura




Foto a partir do monte de S. Leonado (de Galafura)


Mosaico no tardoz da Capela do monte  de S. Leonardo (de Galafura)


São Leonardo de Galafura

À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.

Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

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O nome deste célebre miradouro sobre os anfiteatros que se debruçam desde os 600 metros de altitude para ver o Douro passar, imponente - esteja calmo ou revolto - deve-se, ao facto de naquele local se ter erigido uma capela dedicada a S. Leonardo de Noblac, tendo-se passado a designar o local como S. Leonardo de Galafura, tomando o sobrenome daquela freguesia duriense do Peso da Régua, que assim passou a ser conhecido e, muito mais, depois de no "Diário IX" o poeta de S. Martinho de Anta o ter imortalizado.
O patrono, ali invocado era natural de Noblac e converteu-se ao cristianismo no Natal de 496, juntamente com o rei Clóvis de quem era afilhado. É lembrado pela Igreja no dia 6 de Novembro, como S. Leonardo de Limoges, por ter vivido como monge na floresta de Pavum , perto daquela localidade.
Em S. Leonardo de Galafura, Miguel Torga, passou várias vezes o seu olhar, mergulhando-o, ora no espaço azul, imenso e diáfano, ora nas encostas dos vinhedos que quase beijavam as margens do rio Douro, dele nos dando conta, chamando ao local um "excesso da natureza" espraiado naquele ambiente telúrico em que segundo o pensamento de Migurl Torga o home de devia unir à terra e ser-lhe fiel, no trato com ela e no gozo ambiental que ela lhe dava, para que a vida tivesse sentido e, por isso, o sagrado se exprimisse.
A poesia que ele dedica ao Douro a partir do imenso miradouro do monte de S. Leonardo insere-se naquele sentimento que ele expressou magistralmente naquele miradouro duriense em 8 de Abril de 1977:

O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta».

Miguel Torga in “Diário XII”

Para Torga o local de S. Leonardo de Galafura é um poema geológico. A beleza absoluta que que ele sente que navega sem pressa de chegar aos seu destino, por sentir pena da terra que vai deixar para trás.
As três estrofes do poema marcam-lhe a divisão.
Na primeira estrofe o Poeta coloca o Santo invocado no monte - S. Leonardo - a comandar um navio de penedos e a sulcar as águas do Douro como se o fizesse num mar de mosto e feliz de ver o cais humano de que lhe custa apartar-se, de tal forma que não tem dúvidas em afirmar que faz aquela viagem a contragosto,  num antecipado desengano do que o espera no cais divino, algo que ele não conhece.
Na segunda estrofe, porém, porque a viagem da vida se parece com tal navio de penedos, e porque daquele facto não há retorno, ele anima-se e afirma que lá, para onde se caminha - a eternidade - não tem socalcos, nem vinhedos e, em vez, daquela agua do rio haverá charcos de luz a que dá o nome de Envelhecida - por ser a luz que vem desde a primeira aurora dos tempos - e serão rasos, todos os montes, deixando de tal forma aplanados os horizontes que neles, por fim, um dia, até aquela vida será extinta.
Na última estrofe, assistimos a um regressar ao desejo já expresso de navegar cada vez mais devagar, porque se é mister não poder parar o navio de penedos, é preciso refrear a sua marcha, porque,

cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho!

Impressiona neste poema singular as metáfora usadas pelo Poeta, como: "navio de penedos"; "doce mar de mosto"; "ondas da eternidade"; "cais humano e divino" como se nesta bela imagens poéticas S Leonardo - posto a comandar o navio - se sinta magoado da terra linda que vai deixar, embora o espere a eternidade a par de alguma desilusão,como se a beleza desta se não pudesse parecer com aterra do Douro, vista dali, daquele miradouro sereno, onde o ar rarefeito e a paisagem, merecessem o dom de serem eternas.

O que espanta, ainda, é que o poema composto por três estrofes irregulares no verso e, consequentemente, na métrica, é regular na transmissão do pensamento que o Poeta nos quer oferecer naquela lúdica, serena e vagarosa viagem de S. Leonardo, sem pressa de alcançar a eternidade, porque o seu destino já era eterno.


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