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quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Um amor para sempre!



CONTO DE NATAL
  

Naquele fim de tarde andava pelas ruas do bairro um ruído de pessoas apressadas fazendo as compras de Natal, ora entrando, ora saindo das lojas onde abundavam numa amálgama milhares de brinquedos e de outro comércio que nesta época – mais que em nenhuma outra oferece ao público, abundantemente, todas as colecções de roupas e agasalhos – juntando-se a tudo isto, como era costume, sobre os passeios das ruas  enfeitadas do bairro a venda dos pinheiros de Natal com todos os elementos decorativos para enfeitar o Presépio.
Manuel Justino olhava tudo à sua volta, mas sem se deter, um momento que fosse.
De cima dos seus oitenta anos, lembrava os Natais antigos e os momentos vividos com a sua companheira de toda a vida, a sua querida Gertrudes, que lhe dera seis filhos dedicadíssimos e, hoje, com os seus casamentos, um montão de netos que ele muito estimava.
O ancião que havia vivido toda a sua juventude naquele bairro do centro da grande cidade, era uma referência de honestidade e rigor de atitudes, sendo, por isso, estimado por todos, os da sua idade e pelos mais novos.
Naquele fim de tarde, Manuel Justino levava, de facto, um passo apressado.
Apressado demais para a sua idade, o que lhe causava algum desajeito no modo como caminhava, torcendo o corpo magro em cada passada, fazendo crer em todos aqueles que o saudavam que avançava preocupado, dando ares de quem não queria perder a meta que todos os dias alcançava, no passeio costumado que o levava à Casa de Saúde onde estava internada a sua querida Gertrudes.
Ia de tal modo absorto nos seus pensamentos íntimos que todo o barulho e todas as luzes não eram bastantes para lhe prender a atenção, durando isto até ao momento em que o Gonçalo, o seu velho companheiro, ao cruzar-se com ele, o interpelou deste jeito:
- Que pressa a tua hoje, Manuel... para onde vais assim... quase a correr?
- Olha, sabes, aquela gente da Casa de Saúde, com estas coisas do Natal, alteraram a hora da visita diária para mais cedo. Como o soube a destempo, apresso-me para não faltar à minha Gertrudes...
- E ela, como está?
- Continua muito mal – responde de olhos no chão, Manuel Justino – Sabes, a doença dela é daquelas que incapacitam de todo... o Alzheimer é terrível, sabes lá... está assim há cinco anos e,  agora já nem sabe quem eu sou...
O Gonçalo, preocupado com o tom da conversa e sabendo que o não podia demorar, ainda assim, fez uma última pergunta seguida desta recomendação desajeitada:
- Mas, então, se ela já não te conhece... porque vais tão depressa? Se hoje a não visitasses, que mal teria?
Manuel Justino olhou o amigo de alto a baixo e sem responder àquelas palavras que eram uma ofensa ao seu grande amor pela esposa, com um modo onde apesar de tudo mostrou algum desagradado, num tom de voz o mais sereno de que foi capaz, respondeu-lhe:
- Adeus, Gonçalo, tenho de ir. Não posso perder a hora da visita...
E um pouco a frente, voltando-se para trás, rematou deste jeito o diálogo:
- É que, se ela já não me conhece eu sei bem quem ela é... e isso me basta para ir lá todos os dias, assim o Senhor me ajude. É comigo...
Gonçalo ficou apreensivo e de mal consigo mesmo.
Ao penitenciar-se das suas palavras, que  pela postura do velho amigo lhe pareceram inadequadas e duras de coração, veio-lhe à lembrança um velho conceito de Stendhal: O amor é o milagre da civilização, parecendo-lhe, imediatamente, que agira como se fosse um homem das cavernas, longe de qualquer sentimento próprio de um homem civilizado, que até era.
Lembrou-se que no dia seguinte era Dia de Natal, uma época em que o Amor, por um mistério qualquer está mais vivo, sentindo martelar na sua consciência as últimas palavras do Manuel Justino: É que se ela já não me conhece eu sei bem quem ela é... e deu consigo a pensar como é bom sentir um amor assim, dando graças a Deus pelo amor do amigo para com a velha esposa.
De imediato, correu atrás do amigo que ofendera nos seus sentimentos levando no íntimo um sentido arrependimento e um desejo de lhe pedir perdão. Só que, entretanto, ele já se sumira por entre a amálgama dos transeuntes, não lhe restando outra hipótese, senão a mais evidente: ir no seu encalço até à Casa de Saúde.
Assim aconteceu.
Ali chegado, logo à entrada estava armado o Presépio.
Nossa Senhora e S. José sorriam e o Menino entre palhas, olhava em redor, parecendo dar a todos os pormenores um profunda reparo e, de tal modo assim pareceu ao Gonçalo que ele sentiu no mais fundo do seu íntimo que aquele Menino o olhava profundamente, verberando-lhe as palavras infelizes que dera ao Manuel Justino, e que lhe martelavam a consciência, ouvindo distintamente dentro de si a resposta do amigo à sua falta de respeito pela esposa que a doença privara do conhecimento das pessoas, incluindo as mais queridas
- É que se ela já não me conhece eu sei bem quem ela é...
Ajoelhou-se ali mesmo, sem quaisquer respeitos humanos e entrou numa bela oração, só interrompida muito tempo depois, quando deu que ao pé de si estava ajoelhado o Manuel Justino que acabada a hora da visita dera com o Gonçalo naquela postura de grande recato e adoração à  Sagrada Família, que ali no átrio da Casa de Saúde, erguia um hino de Amor à gruta de Belém, onde nem faltavam ovelhas e muito menos os Reis Magos.
Os dois, ficaram ali, ainda um momento, num silêncio muito doce, mas onde foi possível ouvir, no fim, esta prece muita sentida do Gonçalo:
- Menino Jesus... se for possível – e contigo tudo é possível – faz que a Gertrudes volte a conhecer o Manuel - e uma lágrima robusta rolou quente sobre a sua face até se diluir e esconder na sua barba espessa.
Na rua, de regresso ao bairro onde ficavam as suas casas, o Gonçalo, roído de remorsos, passou o braço pela cintura do velho amigo e disse-lhe:
- Manuel, há pouco, fui inconveniente contigo ao dizer-te palavras que o teu amor pela Gertrudes não podiam consentir. Peço-te humildemente desculpa e agradeço-te a tua grande lição de amor... afinal, que mais não é, que a continuação do que tens dito e praticado ao longo da tua vida.
Manuel, de frente, com um sorriso cândido, ripostou-lhe:
- Sabes... amanhã é Dia de Natal... e neste tempo não pode haver discórdias. E até aquelas que existem entre os homens – que não são anjos – deviam ser sanadas, lembrando o nascimento de Jesus, que veio a este mundo para dar a paz a todos nós...
E os dois amigos, companheiros de uma vida inteira que começou nos bancos da Escola Primária que agora apodrece numa das ruas do seu bairro, seguiram rua fora, serenamente, um deles reconciliado consigo e o outro, feliz pelo amor que continuava a dar à sua querida Gertrudes e àquele amigo, a quem desculpara as palavras infelizes, fazendo-o em nome daquele Menino, cujo nascimento o mundo inteiro se aprestava por festejar.
Com mais vagar o Manuel Justino admirava, agora, as iluminações das ruas do seu bairro onde havia anjos, estrelas e sinos de luzes multicores, sentindo que havia no coração do Gonçalo, como havia no seu, um desejo ardente de Paz e Amor entre os homens.


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