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sábado, 28 de fevereiro de 2015

"A Vida" - Um poema de António Nobre



A Vida


Ó grandes olhos outonais! místicas luzes!
Mais tristes do que o amor, solenes como as cruzes!
Ó olhos pretos! olhos pretos! olhos cor
Da capa d'Hamlet, das gangrenas do Senhor!
Ó olhos negros como noites, como poços!
Ó fontes de luar, n'um corpo todo ossos!
Ó puros como o céu! ó tristes como levas
De degredados!

Ó Quarta-feira de Trevas!

Vossa luz é maior, que a de trez luas-cheias:
Sois vós que alumiais os presos, nas cadeias,
Ó velas do perdão! candeias da desgraça!
Ó grandes olhos outonais, cheios de Graça!
Olhos acesos como altares de novena!
Olhos de génio, aonde o Bardo molha a pena!
Ó carvões que acendeis o lume das velhinhas,
Lume dos que no mar andam botando as linhas...
Ó farolim da barra a guiar os navegantes!
Ó pirilampos a alumiar os caminhantes,
Mais os que vão na diligência pela serra!
Ó Extrema-Unção final dos que se vão da Terra!
Ó janelas de treva, abertas no teu rosto!
Turíbulos de luar! Luas-cheias d'Agosto!
Luas d'Estio! Luas negras de veludo!
Ó luas negras, cujo luar é tudo, tudo
Quanto ha de branco: véus de noivas, cal
Da ermida, velas do iate, sol de Portugal,
Linho de fiar, leite de nossas mães, mãos juntas
Que têm erguidas entre círios, as defuntas!
Consoladores dos Aflitos! Ó olhos, Portas
Do Céu! Ó olhos sem bulir como águas-mortas!
Olhos ofélicos! Dois sóis, que dão sombrinha...
Que são em preto os Olhos Verdes de Joaninha...
Olhos tranquilos e serenos como pias!
Olhos Cristãos a orar, a orar Ave Marias
Cheias de Luz! Olhos sem par e sem irmãos,
Aos quais estendo, toda a hora, as frias mãos!
Estrelas do pastor! Olhos silenciosos,
E milagrosos, e misericordiosos,
Com os teus olhos nunca há noites sem luar,
Mesmo no inverno, com chuva e a relampejar!
Olhos negros! vós sóis duas noites fechadas,
Ó olhos negros! como o céu das trovoadas...

Mas diz, meu amor! ó Dona de olhos taes!
De que te serve ter uns astros sem iguais?
Olha em redor, poisa os teus olhos! O que vês?
O mar a uivar! A espuma verde das marés!
Escarros! A traição, o ódio, a agonia, a inveja!
Toda uma catedral de lutas, uma igreja
A arder entre clarões de cóleras! O orgulho
Insuportável tal o meu, e o sol de Julho!
Jesus! Jesus! quantos doentinhos sem botica!
Quantos lares sem lume e quanta gente rica!
Quantos reis em palácio e quanta alma sem férias!
Quantas torturas! Quantas Londres de misérias!
Quanta injustiça! quanta dor! quantas desgraças!
Quantos suores sem proveito! quantas taças
A transbordar veneno em espumantes bocas!
Quantos martírios, ai! quantas cabeças loucas,
Neste manicómio do Planeta! E as orfandades!
E os vapores no mar, doidos, ás tempestades!
E os defuntos, meu Deus! que o vento trás à praia!
E aquela que não sai por ter usada a saia!
E os que sossobram entre a vaidade e o dever!
E os que têm, amanhã, uma letra a vencer!
Olha essa procissão que passa: um torturado
De Infinito! Um rapaz que ama sem ser amado,
E para ser feliz fez todos os esforços...
Olha as insónias d'uma noite de remorsos,
Como dez anos de prisão maior-celular!
Olha esse tísico a tossir, á beira-mar...
Olha o bebé que teve Torre de coral
De lindas ilusões, mas que uma águia, afinal,
Devorou, pois, ao vê-la ao longe, avermelhada,
Cuidou, ingénua! que era carne ensanguentada!
Quantos são, hoje? Horror! A lembrança das datas...
Olha essas rugas que têm certos diplomatas!
Olha esse olhar que têm os homens da politica!
Olha um artista a ler, soluçando, uma crítica...
Olha esse que não tem talento e o julga ter
E aquele outro que o tem... mas não sabe escrever!
Olha, acolá, a Estupidez! Olha a Vaidade!
Olha os Aflitos! A Mentira na Verdade!
Olha um filho a espancar o pai que tem cem anos!
Olha um moço a chorar seus cruéis desenganos!
Olha o nome de Deus, cuspido n'um jornal!
Olha aquele que habita uma Torre de sal,
Muros e andaimes feitos, não de ondas coalhadas,
Mas de outras que chorou, de lágrimas salgadas!
Olha um velhinho a carregar com a farinha
E o filho no arraial, jogando a vermelhinha!
Olha a sair a barra a galera Gentil
E a Ana a chorar p'lo João que parte p'ro Brazil!
Olha, acolá, no cais uma outra como chora:
É o marido, um ladrão, que vai «p'la barra fora!»
Olha esta noiva amortalhada, n'um caixão...

Jesus! Jesus! Jesus! o que aí vai de aflição!

Ó meu amor! é para ver tantos abrolhos,
Ó flor sem eles! que tu tens tão lindos olhos!
Ah! foi para isto que te deu leite a tua ama,
Foi para ver, coitada! essa bola de lama
Que pelo espaço vai, leve como a andorinha,
A Terra!

Ó meu amor! antes fosses ceguinha...

in, "Só"



"A Vida" é um retrato cruel que António Nobre legou às Letras Portuguesas e é, possivelmente uma das sua composições poéticas mais conhecidas e declamadas, mercê do realismo que ele lhe imprimiu, passando a fazer parte do espólio mais dramático do seu único livro "Só", sobre o qual se têm escrito alguns livros de análise literária, onde o Poeta, pela pena azeda de Albino Forjaz de Sampaio não é poupado a uma crítica acerba, por vezes, a roçar o grosseiro pela interpretação do seu carácter.

Basta ler estes dois trechos dos seu livro: "António Nobre, a sua vida e a sua obra":


Que vereda das mil que se lhe ofereciam o cativou mais ? E em qual, por fim, decidido ou vacilante, abriu a marcha ? Em nenhuma. O seu orgulho enorme, Orgulho insuportável tal o meu,. . . peça saliente, peça-mestra do seu organismo moral, não lhe permitia seguir na esteira de alguém por qualquer desses caminhos, alguém que não visse de certeza ser maior do que ele próprio, alguém que o não soubesse enfeitiçar pela mágica força dum prestígio sobre-humano. Não havendo ali pastor algum com os excelsos predicados, não se arrebanhou. Deixou partir nas várias direcções, para ali, para além, as longas caravanas dos outros poetas, e ficou-se, no meio da encruzilhada — triste, orgulhoso e só. (...)

(...) Exercendo-se, ora sobre a ridente e despreocupada quadra da infância, ora sobre a virilidade explendente da sua raça; e, para mais, com o seu organismo fraco de doente do peito, juntando a tortura física à tortura psíquica originada nos males do mundo: a poesia de António Nobre não poderia resultar diferente da que ele nos deu —triste, elegíaca, febril, ladainhante, supersticiosa, sombria, desesperada, macabra. (...)


António Nobre não mereceu estas cáusticas acusações e devia ter merecido um carinho bem maior de um companheiro das Letras que lhe sucedeu no panorama nacional, porque a doença que cedo o vitimou, tornou-o só no meio de um mundo de contrastes de que "A Vida", o seu poema exaltado perante a vida real que a sua sensibilidade não soube - ou não pode absorver - e que lhe deu motivo para que a visse na realidade dura e crua de uma "Quarta-feira de Trevas!".

Ou seja, passado o Carnaval das ilusões perdidas, passou a viver o seu tempo quaresmal da "quarta-feira de cinzas" e, ao que parece, Jesus que se deixou imolar  - e pelo qual clama por três vezes no poema - não conseguiu despertar a alma de António Nobre para o sacrifício da doença que bem cedo lhe ceifou a vida e foi, talvez, por isso, que o poema  "A Vida" foi escrito tão amargamente, mas bem longe de merecer os sarcasmos de Albino Forjaz de Sampaio, é um poema onde o Poeta não está só, porque o acompanham as dores do mundo onde ele se sentiu por inteiro metido com o seu organismo fraco de doente do peito, tal como o descreve sem dó nem piedade aquele biógrafo que viveu a vida por entre mais sombras que luzes.

Contudo, algo ficou daquele organismo fraco - a força como soube pintar um quadro da vida do seu Porto e da Foz do Douro, dos dramas dos que se iam "p'la barra fora",deixando para trás compromissos assumidos e dos que, cheios de aflições embarcavam para o Brasil, deixando para trás as suas "Anas" na esperança de achar a vida nova que lhes faltava em Portugal.

Só por isso "A Vida" vai continuar a ser lida e declamada porque é um dos monumentos da Poesia Portuguesa!


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